Paulo Cesar de Sá Coutinho. Foto: Ney Robson, 1983

Pesquisa e Texto: Por Fátima Valença (*)

Paulo Cesar Coutinho: Talento Interrompido

Uma carreira tão breve quanto a sua vida: dos 49 anos que lhe coube viver, produziu textos e roteiros para espetáculos de teatro, dança, cinema e televisão ao longo de quase 20 anos e teve o privilégio de ganhar o respeito e a admiração de todos: além dos prêmios recebidos, público, imprensa e classe o aplaudiram em cena aberta. Sabemos que nem todos têm essa sorte.

Brilhou mais intensamente nos anos 80, a década da Apple, do Macintosh e da descoberta da Aids; das Olimpíadas de Moscou e do acidente nuclear em Chernobyl; da aparição do cometa Halley e da explosão do ônibus espacial Challenger; da Guerra das Malvinas e da queda do muro de Berlim; década da fundação do Partido dos Trabalhadores, do movimento Diretas Já, da eleição e morte de Tancredo Neves; da inflação descontrolada, do Plano Cruzado, da Constituição cidadã de 1988; do fim da Guerra Fria e da perestroika de Gorbatchov; de Michael Jackson, Madonna, Fred Mercury, Paralamas do Sucesso, Barão Vermelho, Titãs; do primeiro Rock in Rio e do concerto Live Aid, a fome na África unindo os melhores do rock; década do verão da lata, do Circo voador e da seleção canarinho de 1982, que não ganhou a Copa, mas encantou o mundo.

Em 1989, às vésperas dos anos 90, os brasileiros voltam às urnas e podem enfim escolher seu presidente depois de 29 anos de espera. A disputa é acirrada entre Fernando Collor e Luiz Inácio Lula da Silva. Como em 2018, o Brasil – e seus artistas – estão divididos. Marília Pera é execrada por declarar seu apoio ao Marajá das Alagoas, que acabaria vencedor. Alguns vêm em seu socorro, liderados por Fernanda Montenegro, mas Paulo Cesar Coutinho, fiel à sua história de militância e ao partido que escolheu e pelo qual lutou, não perdoa: “É uma grande atriz encarnando um mau personagem com um péssimo texto.”

Pena não ter vivido para ver o seu candidato, líder dos metalúrgicos, ocupar enfim a cadeira da presidência, em 2002. Morreu seis anos antes, sem poder testemunhar as glórias e derrotas de seu partido no poder, mas deixando peças que até hoje são montadas e ideias que não pôde realizar. Que outras belas e provocantes obras poderia ter nos legado se mais tempo de vida lhe coubesse?

Teatro à Vista

Elenco e equipe do espetáculo Hoje é Dia de Rock

Seguindo a trilha do irmão mais velho, Renato Coutinho, que iniciara a carreira de ator em 1962, o ex militante Paulo Cesar Coutinho volta de Londres, onde voluntariamente se exila depois de viver na clandestinidade, e aos 24 anos ingressa no elenco do antológico Hoje é Dia de Rock, “partitura romance” de José Vicente que faz história no Teatro Ipanema. A participação é pequena. Enquanto o irmão se destaca junto com Nildo Parente e Ivone Hoffman, revelando – nas palavras do crítico do JB, Yan Michalsky – “uma firmeza interpretativa e uma força de presença insuspeitadas”, “ele tem pouco a fazer – mas sem a sua presença o espetáculo não seria o que é”.

Após a fugaz, porém intensa experiência em Hoje é Dia de Rock, onde compartilha o palco com monstros sagrados do tablado nacional – Rubens Correa, Ivan de Albuquerque, Klaus Vianna, Isabel Ribeiro, Luiz Carlos Ripper, Cecília Conde, Leila Ribeiro – começa a atuar na área de sua formação, a psicologia. E é trabalhando como psicólogo escolar que descobre o universo infanto-juvenil, dedicando-se a escrever peças para crianças. Uma atrás da outra: Te amo Amazônia, Queridos Monstrinhos (A Bela Aborrecida), Viagem de Caravela, Dom Quixote, O Menino do Egito, A Flauta de Pã, A Gata Roqueira (Prêmio em 83), Quem Descobriu O Brasil (1º Premio FUNARTE como Musical Infantil em 95).

Peças para Crianças e Jovens de Todas as Idades

Viagem de Caravelas

Só encontramos uma referência sobre a peça citada em site do autor. Foi no jornal Tribuna da Imprensa, em uma nota intitulada “Parque Lage faz teatro infantil”, anunciando que, aos sábados e domingos, o horário das 16h30 está reservado para Viagem de Caravelas, peça infantil de Paulo Cesar Coutinho. A encenação, dirigida por Chico Terto, é apresentada pelo Grupo de Teatro da Embratel – o Embate. As apresentações de estreia são exclusivas para os funcionários da empresa, mas nos fins de semana seguintes, abertas ao público e gratuitas.

Queridos Monstrinhos / A Bela Aborrecida

Em outubro de 1988, Paulo Cesar já é um autor reconhecido e incensado. Agora, produtores, diretores, atores querem conhecer – e até encomendar – seus novos textos. E assim surge a ideia de remontar um infantil de 1980 – Queridos Monstrinhos -, dirigida por David Pinheiro, que dera à Vera Holtz um prêmio pela sua aplaudida composição da Fadinha Aborrecida, a Bela. Aquela que, para desespero da Fada Mafalda, sua mãe, em vez de se apaixonar por um Príncipe Encantado, cai de amores por um Vampiro, amigo de Bruxa, de Lobo e de Rata! No elenco original, em cartaz nos Teatros Casa Grande e Ipanema, Suzana Queirós, Bia Montez, Mara Soto, Pedro Pianzo e Márcia Vasconcelos. “Melodiosos são os uivos e não as harpas, desagradáveis as torres e não as florestas e cavernas. Os heróis não estão mais vestidos de branco, mas a questão continua a mesma: salvar a princesa”, escreve Flora Sussekind no Caderno B do Jornal do Brasil de 23 de maio de 1980.

Um conto de fadas ao contrário, que questiona os conceitos de bem e mal, certo e errado, bonito e feio. Uma mensagem de amor sem preconceitos:  “Quem disse que as fadas são boas e as bruxas são más?”, pergunta o autor no programa da peça. “A beleza da vida está na diferença”. Rebatizada de A Bela Aborrecida, Queridos Monstrinhos reestreia no Teatro Vanucci em formato de musical com Edwin Luisi e Flávio Marinho na direção e Claudia Jimenez no papel título: “Eu adoro trabalhar para criança. Ou é fácil ou é impossível. Acho que é obrigação do artista fazer teatro infantil, pois a referência positiva na infância, de alegria e bom humor, é fundamental.” Compondo as músicas, a dupla Fafy Siqueira e Sarah Benchimol. Na trilha, muito rock and roll arranjados por Edu Morelembaum: “Não tenha medo de nada / Medo de bruxa ou de fada / Ele ou ela / Feio ou bela / Torto e louco / Tanto faz”.

Na ficha técnica – um luxo só -, Acácio Gonçalves assina cenário, figurinos e coreografias; Marcelo Marques, os adereços; Paulo Cesar Medeiros, a iluminação. As “célebres gargalhadas” de Jacqueline Laurence substituem os tradicionais 3 sinais que antecedem o início de cada espetáculo, alertando equipe e plateia de que a peça está prestes a começar. Na produção e divulgação, adivinhem? Bianca de Felippes e a saudosíssima Solange Badim. Completando o elenco, Daúde como Ratita; Pedro Pianzo no papel de Ramiro, o Vampiro; Athayde Arcoverde, como Lobinho e essa que agora relembra essa história, rendendo nossa homenagem ao autor, que conquista o Prêmio Coca Cola do ano de 1988. Cláudia Jimenez, substituída no início de 1989 por Débora Duarte, depois Iara Jamra e, finalmente, Zezé Polessa, fica com o Prêmio Coca Cola de Melhor Atriz.

A carreira de Queridos Monstrinhos / A Bela Aborrecida segue em frente, tornando-se um dos textos mais montados e premiados de Paulo Cesar, que rende inúmeras produções. Eis algumas: no primeiro dia de agosto de 1992, Leonardo Franco estreia no Teatro da Praia a sua versão do amor sem preconceitos de Bela e Ramiro, que Lucia Cerrone resume no JB como “uma mistura de conto de fadas com espantomania”. No elenco, Vânia Alexandre (Bela), Totia Meireles (Bruxa Caxuxa), André de Biasi (Ramiro), Márcio Augusto, Stella Maria Rodrigues (Lobinho e Ratita), Carla Tausz (Fada Mafalda). No mesmo ano, Ivone Hoffman monta o espetáculo em Curitiba com o grupo Caxa no mini-auditório do Teatro Guaíra: “É um texto jovem, escrito por um autor jovem, fora dos moldes convencionais, que por certo agradará crianças e adultos.” Em 1995 e 1996, a atriz e diretora Maria Isabel de Lizandra produz novo espetáculo que entra em cartaz nos Teatros Armando Gonzaga, Sesc de Nova Friburgo e Bibi Ferreira. Em 1998, o ator e diretor Marcelo Caridad também monta essa sátira aos contos de fadas no Teatro Posto Seis, em Copacabana, no Rio de Janeiro.

Bem e mal / Mal e bem / Tudo bem, tudo legal! / Ele ou ela / Feio ou bela / Torto, louco, / Tanto faz / Ver de perto / Olho aberto / É tão mais! / Não tenha medo de nada / Medo de bruxa ou de fada / Lobo, rata / Vampiro, espirro, atchim! / O monstrinho no espelho / O monstrinho ao seu lado / O monstrinho é tão bonito / Pode ser seu namorado!

Depoimentos:

“Um grande autor, um homem inteligente, que gostava de estar próximo às montagens que tinham relação com ele. Mesmo que não estivesse dirigindo, fazia questão de acompanhar o processo de criação, porque era muito especialista no que fazia. Deixou uma peça – acredito que ainda inédita – chamada A noite do meu bem. O cenário era um bar gay frequentado por homossexuais onde ocorria um assassinato e, na trilha sonora, Dolores Duran. Era um dos nossos projetos. Saudades gigantes dele e de Pedro Pianzo, meu amigo que fez praticamente todas as peças do Paulo. Na época da ditadura, ele e Paulo foram perseguidos por causa da peça, A lira dos vinte anos. Quebraram o teatro, machucaram o Pedro… Pedro morreu há dois anos em São Paulo, mas pediu para ser cremado em Guiratinga, Mato Grosso, terra onde nascemos, eu, ele e Valeria Balbino. Belo ator o Pedro. Escrevam sobre ele também.”

Ataíde Arcoverde, ator.

“Eu fiz muito teatro infantil na minha vida, mas sem dúvida nenhuma A Bela Aborrecida foi a melhor, a que me marcou mais. Era um texto inteligente, alegre, tinha humor – e o elenco era maravilhoso! O texto do Paulo dava chance para os atores brilharem. Ele jogava a bola pra gente fazer o gol! Talvez até inconscientemente, mas eu sentia isso. Cada coisa que eu falava me levava a algum lugar a mais. Eu adorei. Foi a peça infantil que eu mais gostei de fazer. Faria de novo. ”

Cláudia Jimenez, atriz.

Te Amo, Amazônia

O cenário, a floresta. Os personagens, a Onça, a Vitória Régia, a Carnaúba, o Boto, o Jabuti, o Vento, a Lua, o Rio. Todos vivendo e contracenando na mais perfeita harmonia, desfrutando as delícias da Mãe Natureza. Até que … Lá vêm eles, Figo e Mister, “personagens alienígenas representantes da cidade grande”. Encantados com a beleza da floresta – “boa de destruir!” – iniciam a devastação. Uma história que parece não ter fim, apesar dos alertas, apelos e mensagens dos ambientalistas e do próprio planeta.

Te amo Amazônia é uma “verdadeira fábula para crianças de todas as idades” que fica em cartaz em 1981 e 1982 – segundo apuramos, com diretores diferentes: Eugênio Santos e Chico Terto. A peça estreia no Parque Laje, Rio de Janeiro, em maio de 1981, com músicas e direção de João Guilherme Ripper, primo distante do cenógrafo Luis Carlos Ripper, segundo nos informa Lídia Kosovsky: “O João Guilherme fez a adaptação do Anjo Negro do Nelson Rodrigues para ópera. Na íntegra. Foi diretor e responsável pela restauração e última reforma da Sala Cecília Meireles. Em 2016, foi diretor do Teatro Municipal. Uma figura importante da cena musical erudita carioca.”

O elenco é símbolo de uma época em que as montagens primavam por grandes equipes. Além dos músicos Girafa, Itamar e Zezinho Araújo, os atores Abelardo Jacobina, Chico Terto, Eleonora Gabriel, Fernanda Caetano, Genilda Maria, Lili Kay, Marcus Vinícius, Marilisse Navarro, Mitota, Thereza Biggs. Nos cenários e figurinos, Lídia Kosovski. A mesma montagem ocupa também o Planetário da Gávea e o Teatro Armando Gonzaga, em diferentes temporadas, e é selecionada como um dos cinco melhores espetáculos do ano (1981).

Em agosto de 1983, essa autêntica fábula para crianças de todas as idades é levada ao ar pela TV Universitária numa adaptação de José Roberto Mendes. Além do elenco já citado, participam também Naylton Faria e Genilda. Em novembro de 1983, o grupo MI-RE-LA-FA-SI-DO-SOL apresenta o musical Te Amo Amazônia no Teatro da Associação Brasileira de Imprensa (ABI). Nos principais personagens, Maria Donatila, como Carnaúba, e Rita Cássia como a Onça.

Depoimento:

O espetáculo foi realizado no palco do antigo Teatro do Planetário (hoje Teatro Maria Clara Machado), que ainda não era arena, mas um bom auditório. Te amo Amazonia celebrava a descoberta, entre os criadores do teatro infantil, de um outro imaginário, não europeu, que trazia ao público os sons, cores e saberes de outras civilizações nunca dantes visitada pelas crianças dos grandes centros urbanos brasileiros: o novo-velhíssimo mundo de tradições ancestrais nativas do Brasil que despertava pesquisas inéditas para a cena infantil. Como cenógrafa e figurinista do espetáculo foi um encanto poder representar uma floresta de palmeiras tropicais, ao invés dos carvalhos, feitas com materiais inéditos – também seguindo uma nova maneira de fazer cenografia que implicava em forte pesquisa de materiais, substituindo a pintura e o papier mache. A fibra de juta, o bambu e a rede de tarrafa foram utilizados para criar a nossa floresta tropical, onde vivia nosso herói. Materiais contemporâneos foram utilizados para fazer a cachoeira, realizada com bexigas azuis e verdes, presas em cascata. Fibras como palhas da Costa se trançavam com a estopa corriqueira para compor aquele mundo desconhecido. Um mundo a ser estudado e inventado para a cena tal como aquele Brasil que Te amo Amazonia desejava descobrir – como pura invenção.

Lídia Kosowski, cenógrafa, figurinista

Dom Quixote – ou As Alegres Aventuras de um Cavaleiro Andante

“Dom Quixote adaptado por Paulo Cesar Coutinho deu uma lição domingo. Como o Cavaleiro Andante, o grupo (Moinhosqueinventam) apostou na aventura de representar para uma plateia quase vazia. E frente ao olhar cúmplice de seis espectadores igualmente solitários fizeram um belo espetáculo. A solidão, a teimosia de Dom Quixote em acreditar nas próprias aventuras e fantasias o tornam semelhante a qualquer artista. A qualquer um capaz de fazer de Alonza, Dulcinéia; de um moinho, um bruxo. A qualquer um capaz de fazer voltar Sancho Pancho, aquele que partilha como espectador de suas fantasias. Como Quixote, foi o que tentaram fazer domingo os atores da peça. Levaram adiante o espetáculo fazendo de seis pessoas casa cheia. De sua própria solidão, teatro e aventura.”

Eis a bela abertura da matéria de Flora Sussekink publicado no JB em 11 de dezembro de 1981, “Quem transformou espectadores em casas vazias?”. Felizmente, a carreira do espetáculo não é sempre assim. Ao contrário. Plateias crescem e montagens se sucedem a olhos vistos. No próprio texto, Flora saúda os jovens autores que se firmam na dramaturgia para crianças: Tônio Carvalho (vencedor do Mambembe 81), Ricardo Maurício (Sonhe com os Ratinhos), Alice Reis (Uma Pitada de Sorte e Cinco Mil Passos), André Felipe Mauro (Vira Avesso) e Paulo Cesar Coutinho (Dom Quixote e Te Amo Amazônia).

Na adaptação de Paulo Cesar, produzida por Adaury Dantas e dirigida por Pedro Pianzo, Dom Quixote e seus companheiros cantam e dançam as músicas de Edgar Bandeira, que também assina cenários, direção musical e sonoplastia. Os figurinos são de Sergio Fidalgo e Carlos Veiga; a coreografia, de Teresa Cristina Consentino; os adereços, de João Gomes; a iluminação, de Fernando Zagalo. No elenco, Lena Rodrigues, Markus Avaloni, Nelson Ávila, Pedro Pianzo, Cesar Macieira e Valéria Belpy.
Com algumas modificações na ficha técnica, a equipe batizada então de Grupo Cigano se apresenta em Curitiba no Teatro Paiol, em maio de 1982. As músicas são assinadas por Marcio Iacovo e Sueli Correia e os cenários por Mario Rubião. No elenco, Alba Flora, Iolanda Moura, Pedro Pianzo, Roberto Marconni, Ronaldo Reis e Valéria Belpy.

O Diário da Tarde aplaude a bem-vinda apresentação de um grupo “reconhecido pelo público e pela crítica”: “Dom Quixote ou As Alegres Aventuras de um Cavaleiro Andante conta, entre risos, cores e belas músicas, a história de um fidalgo que de tanto ler estórias de cavalaria resolveu sair pelo mundo à procura de aventuras. Acompanhado do fiel escudeiro Sancho Pança, realiza inúmeras façanhas, chegando a combater moinhos de vento pensando que são gigantes.”

Em abril de 1987, toda a magia e o encanto das aventuras do cavaleiro solitário e de seu fiel armador são vistos por crianças de todas as idades no Teatro da UFF.

A Flauta de Pã

A Flauta de Pã: Clelia Guerreiro, Rosa Douat, Bia Junqueira e Mauri Aklander

Maria Clara Machado leva o Prêmio Mambembe de 1984 por O Dragão Verde, mas Paulo Cesar Coutinho está entre os indicados ao prêmio pela sua fábula infanto-juvenil, A Flauta de Pã. Junto com ele, concorrendo ao mesmo prêmio, Tônio Carvalho por Mistério do Boi Surubim. Que trio, hem?

O pequeno grande musical, dirigido por Michel Robin, estreia no Teatro de Bolso Aurimar Rocha com Bia Junqueira, Cleia Guerreiro, Denise Mayer, Mauri Aklander. A luz é de Jorginho de Carvalho e, na trilha, Oswaldo Montenegro. Em maio do ano seguinte, 1985, a trupe entra em cartaz no teatro da UFF. Baseado na mitologia grega, uma das paixões de Paulo Cesar, a peça recria o mito de Pan, misto de homem e cabrito, conhecido como o inventor da flauta que, ao buscar o caminho do coração, “encontra sereias, ninfas, deusas, musas e fúrias”.

Quase dez anos depois, em maio de 1995, A Flauta de Pã atravessa o oceano e se apresenta no Teatro Trindade, em Lisboa.

O Unicórnio

Encontramos quatro notas curtas falando sobre este musical infantil. Uma delas, publicada no jornal O Estado de Mato Grosso, em fevereiro de 1985, informa que o ator Caíque Ferreira, que brilha nas telas globais com seu personagem Zeca da novela Corpo a Corpo, de Gilberto Braga, estaria no elenco da peça: “No final de março, Caíque estará no palco no papel principal da peça infantil O Unicórnio, escrita por Paulo Cesar Coutinho.”

Somente em outubro do mesmo ano, o carioca Jornal do Brasil anuncia a estreia do musical infantil no Teatro Delfin, sob a direção de Jorginho Ayer, tendo permanecido em cartaz no ano seguinte. Três anos depois, o mesmo JB publica outra brevíssima nota anunciando uma nova estreia de O Unicórnio, desta vez no Teatro da Cidade, assinada por Vitor Lemos Filho. Em nenhuma delas consta o nome dos artistas envolvidos na confecção do espetáculo.

Felizmente, tivemos a sorte de contar com a generosa colaboração do ator Ari Colatti, que conhecemos nas redes sociais e para quem a peça foi carinhosamente escrita e dedicada: “Anjo de cara suja…suja de chocolate… Essa peça é para um anjo chamado Ari Colatti”. Sujeito de sorte o nosso Ari. Recebe o texto e a dedicatória em seu aniversário de 18 ou 21 anos – “não lembro!” – num cenário querido dos artistas: a Trattoria que, na época, ficava na Bolívar. Sua famosa cozinheira Donanna tanto brilhou que abriu o seu próprio restaurante: a Cantina Donanna, que ainda hoje nos recebe de braços abertos com massas caseiras da melhor qualidade e um pãozinho de alho com molho de tomate que não tem para ninguém. Posso imaginar o sorriso tímido de Ari quando, do outro lado da tela, confessa, por escrito e pondo à parte a modéstia: “Eu era o Anjo, Fátima. Mas era um horror no personagem…”. Tomamos a liberdade de duvidar, Ari.

O ator tem mais informações para compartilhar conosco: Cristina Bittencourt, atriz filha do teatrólogo João Bittencourt, também fazia parte do elenco. E, sim, Caíque Ferreira, “que tinha paixão por unicórnios e guardava em sua casa várias imagens desse animal mitológico”, fazia parte do projeto original. Talvez a rotina puxada das gravações na emissora o tenham impedido de estrelar a peça. Sorte do Ari.

Menino do Egito

O autor agora é também produtor e, com a ajuda da Shell, monta uma superprodução infantil (300 mil cruzeiros) com 18 atores para contar a história da Rainha Hatshepsut, única mulher a tornar-se faraó no Antigo Egito. No papel título, a ex-frenética Leiloca: “Estou adorando fazer a vilã!”. Na direção, Carlos Wilson, o Damião: “É uma mini-Aída”, garante, referindo-se à célebre ópera de Giuseppe Verdi sobre a escrava e rainha etíope.

O diretor aposta na originalidade: em quase todas as cenas “os atores vão aparecer de lado, como nos afrescos encontrados nas pirâmides”. Apaixonados pelo tema, autor e diretor realizam um acalentado sonho, estreando Menino do Egito no Teatro Glauce Rocha, em 16 de julho de 1986, com músicas e direção musical de Mauro Perelman.

Combinando fato e ficção, o autor conta como a rainha usurpou o trono de Tutmés III, filho do Faraó, ainda criança, tornando-se a primeira mulher a governar o Egito. Na história de Paulo Cesar, o menino Tutmés morre e “seu espírito viaja pelo céu egípcio, passando por mil aventuras, encontrando deuses meio-homens, meio-animais, e renascendo através do amor”. “Desde que fiz mestrado de Filosofia, na PUC, que os mitos me fascinam. Essa peça fala de mitologia egípcia. A crença egípcia na imortalidade, na ressurreição. Na peça, é o amor que faz nascer de novo. Acredito plenamente que o amor tem essa força.”

Encabeçado por Dora Pellegrino, Sebastião Lemos e Toninho Lopes (depois substituído por Ettore Zuim), o elenco é formado por 17 jovens entre 16 a 25 anos:: “Rapazes e moças – todos lindos e em boa forma – vão ensinar à garotada que o povo egípcio foi o único a cumprir completamente o seu karma na Terra”, noticia a jornalista Rose Esquenazi no JB. “Foi acreditando nisso que o texto começou a surgir na cabeça do autor. O mistério do desaparecimento desse povo vai ser refletido no palco, com muito bom humor.” No papel do Deus Osíris, Lauri Prieto. A luz é de Claudio Neves, a coreografia de Daniela Visco e os figurinos de Kalma e Rita Murtinho, que “capricharam no linho, no plissado e nas cores turquesa e dourado”. Em sua crítica no Jornal do Brasil, feita dois dias depois da estreia, Eliana Yunes elogia o trabalho de mãe e filha: “Um visual extremamente cuidado e colorido, guardando fidelidade ao gosto egípcio (…) O ar geral de mistério e magia do espetáculo nasce dos figurinos”.

Autor, diretor e figurinistas são indicados ao Mambembe 1986, mas quem leva os prêmios são Lúcia Coelho (O Rei Mago), Cora Ronai (Um, Dois, Três e Já) e Rosa Magalhães (O Ovo de Colombo). Embora não tenha sido escolhido como diretor, Carlos Wilson é premiado com o troféu Grupo, Movimento e Personalidade “pelo seu trabalho sistemático e de qualidade com e para adolescentes”.

“Desse universo histórico e mágico, Paulo Cesar constrói um texto ágil em que, sobre os dados reais, abrem-se as veias da fantasia, como num imaginário passeio no tempo e pelo Nilo. Carlos Wilson (…) imprime um tom lúdico à montagem e, ao mesmo tempo que enfatiza o confronto bem x mal, o ironiza, pois a palavra sagrada já antecipou o desfecho. À sequência cabe demonstrar como o oráculo se cumprirá, sem deixar escapar a atenção do espectador.” (Eliana Yunes, JB)

A Gata Roqueira (1983) / Quem Descobriu o Brasil? (1985)
Sabemos que o especial estrelado por Claudia Raia na TV Globo, A Gata Roqueira, é inspirado em ideia original do nosso autor que, nos créditos do programa, aparece como responsável pelo argumento. O roteiro é assinado por Euclydes Marinho e Luis Gleiser, responsáveis pela Casa de Criação Janete Clair. A iniciativa da emissora de garimpar novos autores e ideias acaba provocando inúmeras queixas e acusações de plágio que rendem matérias, debates acalorados e entrevistas na imprensa. Talvez tenha sido essa decepção que levou Paulo Cesar, algum tempo depois, a recusar o convite para voltar a emissora. No auge de sua carreira na Rede Manchete, o autor prefere apostar naquela que lhe permite desenvolver as próprias ideias.

Não sabemos se Paulo chegou a escrever esse musical para teatro, que teria ido à cena em 1983. Tampouco conseguimos reunir informações sobre Quem descobriu o Brasil?, de 1985. Mas essa é a vantagem de escrever para um site: poder contar com o retorno imediato dos leitores, amigos e artistas. Nossa torcida é que vocês possam contribuir com novas informações sobre o autor homenageado. Se você que nos lê assistiu ou participou de algum espetáculo com texto de Paulo Cesar Coutinho, escreva para nós. Só assim poderemos preencher possíveis e involuntárias lacunas.  Saudações cênicas!

Para Jovens e Adultos

A Lira dos Vinte Anos

A Lira dos Vinte Anos: Pedro Pianzo e Monah Delacy. Com direção de Cecil Thiré, estreou no Teatro de Bolso Aurimar Rocha , em 01.10.1987

“Em 68 minha mãe resistia ao massacre cotidiano tocando no piano da sala. Enquanto isso nós, estudantes, resistíamos à polícia nas ruas com pedras nas mãos. O som das teclas e o som das pedras se sobrepõem em minha memória, como diferentes acordes de um mesmo concerto. Por isto, esta é uma peça para piano e pedras”, descreve o autor no programa de A Lira dos Vinte Anos, assumindo que sua primeira peça para adultos é fruto de uma história de vida: “Muita ficção em cima de pessoas verdadeiras”.
A peça estreia no 1 dia de outubro de 1983, reabrindo para elencos de “carne e osso” o Teatro de Bolso Aurimar Rocha (atual Café Pequeno), no Leblon, durante um tempo reservado para teatro de bonecos. Na produção e no elenco, o veterano ator e diretor Fábio Sabag, apaixonado pelo texto desde a leitura apresentada no Ciclo dos Autores Malditos, projeto do INACEM e do Sindicato dos Artistas e Técnicos em Diversões (SATED). “Levei 5 anos procurando alguém para montá-la”, escreve Paulo. Sabag resolve apostar: “Trabalhar com um elenco tão jovem está sendo um encanto.”

O título original é substituído: 68 – “que podia sugerir uma ênfase nos problemas da militância” –  vira A Lira dos Vinte Anos, referência ao romance de Álvares de Azevedo: “Há muitas analogias entre os meus jovens militantes e os grandes românticos do século passado. A repressão que mata vários dos meus personagens tem por equivalente a tuberculose galopante que matou o próprio Álvares de Azevedo aos 21 anos”. Na direção, o igualmente estreante em palcos adultos, Tomil Gonçalves. No elenco, outra veterana, Monah Delacy, e os jovens Augusto Pereira da Rocha, Pedro Pianzo, Bia Junqueira, Márcio Augusto, Mauri Aklander e Bia Lessa. “Seis estudantes que embarcam na aventura da luta armada sem se dar conta da gravidade e dos riscos do seu engajamento”.

Formado em psicologia e na época cursando mestrado em Filosofia na PUC, Paulo Cesar viveu intensamente o período e os acontecimentos mostrados na peça: “Eu fazia parte do Diretório da Faculdade de Filosofia, onde começou a minha atuação política. Caí na clandestinidade, fui preso, perdi muitos amigos. Do meu grupo, fui um dos que sobraram para contar a história. Tudo ainda está muito vivo dentro de mim.”

É seu primeiro grande sucesso, atraindo novas montagens pelo Brasil afora. No JB, o crítico Macksen Luiz analisa a peça – “uma radiografia afetiva dos participantes de um desses grupos ativistas, desde o vestibular até o seu dilaceramento”- e reconhece no autor “uma grata surpresa pelo domínio que tem das situações, pela técnica e (…) pelo tratamento”.

O júri do Mambembe de 1983, presidido por Orlando Miranda e formado por Flávio Marinho, Macksen Luiz, Tânia Brandão, Wilson Cunha e Gerd Bornhein, concede ao jovem dramaturgo o Prêmio de Autor Revelação do ano. Ainda assim, a temática libertária incomoda elementos de direita e o teatro começa a receber telefonemas anônimos e ameaçadores: “Vamos fechar o teatro e acabar com essa peça política feita por maconheiros!” Voltando para casa após o espetáculo, o ator Pedro Pianzo é espancado por um homem não identificado que o ameaça: “Comunista, homossexual, maconheiro, pare já com essa imoralidade!”

O espetáculo prossegue em temporada sob a proteção da polícia e, em 1984, vai para o Teatro Ipanema enquanto uma nova montagem apresenta A Lira aos espectadores dos teatros Procópio Ferreira, em Duque de Caxias, e Sesc de São João de Meriti. Em Curitiba, Ivone Hoffman dirige os alunos do 4º ano do Curso Permanente de Teatro do Guaíra, que estreiam com a presença do autor na plateia, no final de dezembro de 1985.

Contudo, apesar da manifestação de solidariedade da Assembleia Legislativa, da Associação Carioca de Empresários Teatrais e dos Sindicatos dos Artistas, que exigem “a pronta apuração do crime e a determinação de medidas que garantam a livre manifestação do pensamento em nosso país”, o texto de A Lira, depois de encenado na íntegra, sofre cortes da censura a partir da temporada paulista de 1985 no Teatro Ruth Escobar. Na plateia de uma das sessões do espetáculo, segundo a edição do Jornal O Globo, “dois candidatos à Prefeitura de São Paulo”, Fernando Henrique Cardoso (PMDB) e Eduardo Matarazzo Suplicy (PT). “Ambos aplaudiram de pé”.

Apesar da declarada “abertura gradual” promovida pela ditadura militar a partir de 1979, ainda não é possível falar abertamente sobre drogas e sexo: “É deletério para a juventude”, afirma o chefe da divisão de Censura da Polícia Federal, Coriolano Cabral Fagundes: “Acabou a censura à imprensa e a censura política, mas a Lei Antitóxico de 1976 ainda não foi alterada e deve, portanto, ser cumprida”. Em um dos artigos escritos para o Jornal do Brasil, Paulo Cesar defende: “A Lira é a peça mais encenada do país, com 5 montagens diversas em diferentes cidades. Mas teve seu texto cortado pela censura da Nova República. Meu texto é um exemplo entre muitos de uma tendência que se revela. As questões de comportamento, essencialmente políticas, são atualmente o alvo principal da repressão cultural (…) O moralismo cresce sob o disfarce liberal (…) por isto tudo, no teatro, como nas ruas, a luta continua.”

Em março de 1986, em São Paulo, o autor recebe o Prêmio Revelação da Associação Brasileira de Críticos de Arte, APCA. Na última apresentação da montagem de estreia carioca, mil pessoas lotam os três andares do Teatro João Caetano. “A violência não nos intimidou. No palco manchado de sangue a Lira continuou a tocar (…)” Ainda hoje ela toca, Paulo.

Falas da peça:

Regina: Eu quero que você fique pra sempre junto de mim.

Marcos: Eu nunca vou pra longe de você.

Regina: Até a tomada de poder?

Marcos: Até depois. Ou você acha que vou querer construir o socialismo sem você?

Diogo: Eu era um rato de cinemateca. Ia ser cineasta, como todo mundo. Fazia mil filmes na cabeça, escrevia roteiros sem parar. Meu sonho era fazer um musical. Um musical socialista, a resposta do Terceiro Mundo à dominação de Hollywood.

Diogo: Quando você vive com um cara, você é clandestino duas vezes, na política e no sexo.

Regina: Você acha que valeu a pena? Transformar o mundo em um sonho luminoso, e veio tanta dor, tanta morte, tanta tristeza. Você acha que vamos conseguir?

Lucas: A gente tem que conseguir, eles não morreram em vão. A gente só tá começando. Um dia, nós vamos vencer.

Diogo: Você já resolveu o que vai fazer da vida? Eu vou andar por aí, conhecer gente, fazer a revolução. E quando eu morrer, quero que escrevam no meu túmulo: “Diogo, guerrilheiro urbano, amou Lucas e viveu de amor e lutas.”

Honey Baby, Era uma Vez nos Anos 70

Programa do espetáculo, que estreou no Teatro Dulcina, em  junho de 1985

Em junho de 1985, Macksen Luiz cumprimenta o terceiro texto de Paulo Cesar Coutinho encenado em menos de dois anos como “um feito digno de registro”. Depois de abordar a militância política do final dos 60, o autor agora encara os anos 70, colocando em cena temas como a contracultura, o movimento hippie, o desbunde, as drogas, o misticismo: “O texto fala dos deuses do teatro, dos guerrilheiros drogados, dos viajantes da loucura. Fala de pessoas que romperam com estruturas tradicionais de comportamento pra buscar respostas para questões humanas essenciais (…) Uma época em que se cultuou muito os heróis da droga sem se ver que não havia ali uma opção pela vida (…) Mas a geração do desbunde também deixou boas lembranças, como a ruptura dos modelos tradicionais de comportamento.”

Terceira peça dirigida por Jacqueline Laurence – “Curti muito fazer direção” -, Honey Baby reúne no elenco Ângela Leal como Luisa (“Curtir a vertigem do arame sobre o abismo”); Emiliano Queiroz como Evandro (“Não sei se vamos conseguir nos transformar como pessoas, mas isso é tudo que importa”); Érico de Freitas como Tiago (“O passado existe no presente. Não é uma prisão, mas é uma lembrança. É preciso usar um pouco de luto pelas tristezas passadas. Mas agora não podemos tudo.”); Thais Portinho como Bia (“Senhoras e senhores, o vazio continua na ordem do dia”); Zaira Zambelli como Branca (“A gente tá sacando, sendo, transando as coisas numa outra dimensão”) e o estreante em palcos adultos Enrique Dias como Dadi (“Vocês falam bonito. Mudam as palavras conforme a moda… mas o coração continua em silêncio”): “Acho que fiz direitinho, embora não tenha tanta certeza”, declara o ator numa entrevista em junho de 1996, onze anos depois da estreia em junho de 1985 no Teatro Dulcina: “Eu usava cabelo comprido e meu pai teve que ir na delegacia, porque eu era menor de idade.”

Anne Duquesnois é a diretora de produção; Alberto Lustona, o assistente de direção; Claudio Tovar, o cenógrafo e figurinista; o iluminador, Maneco Quinderé; a trilha sonora, assinada por autor e diretora, operada por Xodó; a divulgação, de Bia Radunsky e Tânia Carvalho. No programa da peça, o autor justifica sua opção pela aventura de se autoproduzir: “O texto escrito para teatro só cumpre seu destino no palco. Personagens restritas ao papel atormentam o autor como almas penadas até se encarnarem em atores. Bons produtores são sempre bem-vindos. Mas, se nem sempre vêm, por que não ousar produzir? Meu desejo de diálogo com o público, através do texto, deu-me coragem para o duplo trabalho. A atividade conjugada de autor-produtor, esta ampliação de possibilidades que começo agora a realizar, deve-se ao patrocínio da Shell, que ousou confiar em meu amor ao Teatro.”

Era entrar no teatro e sentir odores de incenso ao som da estonteante voz de Gal Costa interpretando o hit de Jards Macalé e Wally Salomão, “Vapor Barato”: “Eu estou tão cansado / mas não pra dizer / que não acredito mais em você / Com minhas calças vermelhas / meu casaco de general / cheio de anéis / Vou descendo por todas as ruas / E vou tomar aquele velho navio / Eu não preciso de muito dinheiro / Graças a Deus / E não me importa, honey / Minha honey baby / Baby, honey baby / Baby, honey baby”.

A ação da peça gira em torno de um grupo teatral, cujos membros se surpreendem ao voltar da Europa com o espírito impregnado do comportamento hippie e libertário e dar de cara com um Brasil asfixiado pela ditadura militar, “sem lugar para expressões coletivas ou para impulsos à fraternidade irrestrita”. Jovens atores de elencos alternativos se juntam ao grupo, criando novas relações e afetos, e todos se juntam para produzir e ensaiar uma peça. Em sua crítica no JB, Macksen escreve que “o autor não pretendeu fazer um inventário desse período (…) fixando-se no plano do teatro para figurar as formas mais recorrentes de comportamento dos que investiram no sonho (…) Vivências típicas daqueles que embarcaram na viagem do hippismo (…)”.

Nas entrevistas dadas aos jornais da época, Paulo Cesar defende seus personagens: ” Uma geração que rompeu com estruturas tradicionais e incorporou novos valores à sua vida, como as drogas, o naturalismo, o misticismo, a homossexualidade, sexo em grupo, a vida comunitária – uma alternativa de existência dentro de um país sufocado pela repressão política, pela tortura. Mas ao mesmo tempo em que essa geração se alienava de seu contexto social, de certo modo aprofundava as questões individuais. Se a geração dos 60 mergulhou nas causas sociais, a de 70 flutuou nas questões individuais”.

Em julho do mesmo ano, 1985, o crítico do JB comemora um novo feito: mais da metade das peças em cartaz na cidade do Rio de Janeiro são de textos de autores nacionais. Entre elas, Um Beijo, um Abraço, um Aperto de Mão, de Naum Alves de Souza; Mão na Luva, de Vianinha e Honey Baby, de Paulo Cesar Coutinho. “Se não chega a modificar em essência o quadro de dificuldades por que atravessa a dramaturgia nacional, ao menos fornece algum alento e esperança (…)”.

Um Piano à Luz da Lua

Um Piano à Luz da Lua: Nivea Maria e Frederico Mayrink, 1987

Do alto dos seus bem vividos (e escritos) 40 anos, Paulo Cesar tem razões de sobra para festejar 1987. Seu projeto é um dos 6 selecionados para receber o patrocínio da Shell, única grande empresa que resiste à crise econômica que afugenta demais patrocinadores: ” (…) A generosidade dos empresários está caindo na mesma proporção que a inflação vem subindo”, lamenta Macksen no início do ano.

A vitória não é pequena: dos quase 150 projetos inscritos junto à empresa, “pouco mais de 10% conseguem”. Junto com ele, comemoram também Lúcia McCartney, uma adaptação do livro de Rubem Fonseca por Geraldinho Carneiro, com Maria Padilha e Tony Ramos; O Manifesto, de Brian Clarck, com Beatriz Segall e Sergio Viotti; Ataliba, a Gata Safira, de Hamilton Vaz Pereira, com Regina Casé e Luis Fernando Guimarães, e A Cerimônia do Adeus, de Mauro Rasi.

Mas não basta ter dinheiro para reunir uma equipe e montar um espetáculo; é preciso ter palco para apresentá-la. E, depois de uma disputa acirrada entre Um Piano à Luz da Lua e Nijinsky, de Naum Alves de Souza, o autor e produtor Paulo Cesar Coutinho ganha a ocupação do Teatro Villa Lobos para a temporada de setembro a janeiro do ano seguinte. Palco que divide com a montagem infantil de Um Peixe Fora D’água, de Sura Berditchevsky com músicas do sempre premiado Ubirajara Cabral.

No JB, cabe a jornalista Marcia Cezimbra fazer a matéria da peça às vésperas da estreia, marcada para outubro: “É mais uma autobiografia do escritor, agora embalada por leituras de Proust e por Only you, de Ray Conniff, numa Copacabana quase encantada, de 1958. O cenário é a varanda de uma nostálgica Avenida Atlântica, de pista única, cheia de amendoeiras, onde se dormia ao som das ondas do mar”.

No mesmo jornal, o repórter musical Tarik de Souza fala que “a viagem proustiana ao paraíso perdido da infância ou adolescência mesmo na música resulta numa impregnação inevitável do presente (…)”. A matéria da Tribuna da Imprensa aborda “uma peça que tenta redescobrir o tempo, buscar impressões e explicações para sentimentos não entendidos, rememorar padrões da época e compreender a estrutura familiar do fim dos anos 50”.

Um Piano à Luz da Lua “evoca o clima romântico dos anos 50, os sonhos ingênuos, os desejos reprimidos, as paixões e os conflitos de uma família, vistos pelos olhos de um menino”, Lucas (Frederico Mayrink), o filho caçula, “que assiste as escaramuças familiares como uma vítima silenciosa, louco para conhecer uma sereia e os deuses da babá Felícia”(Jacira Sampaio). Sua mãe Clara (Nívea Maria, em sua estreia no palco), “mulher romântica que toca piano à luz da lua e nutre uma paixão platônica e secreta pelo amigo cego, Hermes” (Edwin Luisi). O pai Augusto (Othon Bastos), “defensor dos 50 anos em 5 de JK, vive às turras com o filho mais velho, Leonardo (Rodolfo Bottino), dividido entre o desejo de ser ator e a pressão familiar para se casar logo com a noiva, Bárbara” (Deborah Evelyn). A jovem rebelde, contudo, mantém uma relação incestuosa com o irmão Cláudio (Cesar Augusto), “que, por medo de perdê-la, começa a seduzir Leonardo”. Dividindo o mesmo personagem – Elisa, a namoradinha-priminha de Lucas -, Marcia Pereira e Luciana Froes.

A ficha técnica reúne nomes como Bianca de Fellippes fazendo a assistência de Katia Lattufe, diretora de produção e administração. Kalma Murinho nos figurinos, Kari Lage na iluminação, Marco D’Antônio na direção musical, Xodó na trilha sonora, Renato Vieira na preparação corporal. José Dias assina os cenários, “uma estrutura metálica de 1 tonelada e 10 m de diâmetro que move varandas, salas e quartos, calculada em 3 milhões de cruzados, pagos em parte pela Shell, com um estouro de 800 mil cruzados garantidos em promissórias ousadas, assinadas por Paulo Cesar”.

Na direção, Cecil Thiré, que escreve no programa da peça: “Brasil, zona sul do Rio de Janeiro, 1958! Lindo ano. Lindos dias. Eu estava lá e me lembro. Como disse Maria Gladys: “Eu tinha quinze anos e ninguém tinha morrido ainda.” A praia nos dava o tom da pele, o cheiro do vento, o convívio à luz do sol, amizades, amores, esportes saúde (…) A grande cidade ainda pequena, seus bairros acolhedores, a irreverência leve e o bom humor. Nós, cariocas, gabávamos o Rio, não reclamávamos! A não ser da falta d’água e outros detalhes…Os assaltos não estavam na moda, e a palavra Segurança não havia ainda adquirido a importância que tem hoje. Porém, (…) o sexo era tabu mesmo! Não se dava educação sexual às crianças, liberdade sexual aos jovens (…) Contraceptivo era algo ignorado. Nenhuma minoria sexual havia ousado assumir sua sexualidade. Esses temas não pertenciam ao cardápio de assuntos permitidos em família. O não falar a respeito, o fingir, o envergonhar-se acrescentavam ao real dos problemas uma carga extra, que em termos intelectuais chamávamos de “angústia” e, na turma, de “fossa”, mas era sofrimento mesmo. Sofrimento que, com o tempo, descobrimos tão desnecessário!  Dessas observações descosturadas, e de outras fortes lembranças daquele tempo, trouxe algum material pessoal para a encenação desta linda peça do Paulo Cesar.”

No programa da peça, o autor se emociona: “A casa dos pais (…) é construída em nossa memória dessa ambígua matéria de sonho e realidade (…) Transpor as portas do solar paterno, voltar no tempo a dias tão distantes, é uma visita temerária (…) Somos observadores de nossa relação com pessoas que amamos e, recriando situações, voltamos a vivê-las. É um adulto que conta sua história passada, mas são olhos de menino que veem o antigo lar (…)
A casa permanece visível e habitada. Só que já não moro mais nela, mas ela em mim. (…)

Os atores reencarnam seres vivos (…) O piano tocas as músicas que eu ouvia em criança (…). Figuras queridas que aqui aparecem já não estão entre nós (…). Talvez, por isto, tenha terminado de escrever esta peça com os olhos cheios de lágrimas (…). Se, neste regresso, ousei abrir as portas de casa e convidá-los a ver retratos de família, é porque acredito que, em cada casa, em cada rosto familiar, podemos reencontrar algo de nós mesmos, para sempre perdido e presente em todos (…).”

Em sua crítica, Macksen avalia: “(…) o autor mexe nos seus sentimentos de forma extremamente sincera (…), mas este caráter memorialista não adquire aquele tom passadista de uma mera evocação pessoal. Na verdade, o texto é uma preparação para o crescimento, um sinal de mudança. Neste sentido, o texto de Coutinho se assemelha à Cerimônia de Adeus, de Mauro Rasi. Encharcadas de emoção, essas peças não perdem de vista a necessidade de seus autores em exorcizar o passado para, desta forma, provocar transformações. São textos que fazem a passagem para algo novo, seja na temática, seja formalmente (…). Um Piano à Luz da Lua é mais uma demonstração que a dramaturgia brasileira está saindo da longa entressafra e que recomeça a adquirir voz nos palcos.

Embora tenha perdido os Prêmios Mambembe e Shell de melhor autor para Mauro Rasi, que vence com A Cerimônia de Adeus, Paulo Cesar já alcança o patamar dos dramaturgos nacionais em plena atividade. Em sua coluna no JB, Macksen faz um balanço do ano as vésperas de 1988: “O teatro em 1987 foi melhor (…). Ainda que a crise econômica tenha se abatido sobre o público, que desertou das salas (o triste novembro negro), e que as condições de produção tenham se tornado indigentes (quem se lembra da Lei Sarney?), o teatro não apenas sobreviveu. Pulsou. A pesquisa, o trabalho silencioso de gabinete e o desejo de maior rigor se manifestaram em vários espetáculos e em muitos profissionais que, indiferentes à precariedade geral, prosseguiram investindo na própria criação. Na dramaturgia, as adaptações e as coletâneas substituíram a escrita tradicional, enquanto autores como Mauro Rasi (A Cerimônia do Adeus) e Paulo Cesar Coutinho (Um Piano à Luz da Lua) encerraram o ciclo memorialista com a promessa de saltos mais ousados no futuro.”

Depoimentos:

Paulo Cesar foi um grande autor que de repente cruzou a minha vida e eu fui muito feliz ao lado dele. A lembrança que tenho do Paulo é de um homem educado, quieto, meigo, que falava baixo, ria de tudo, tinha um sorriso lindo e era muito querido. Sabia que nós temos a mesma idade? Eu sou aquariano, deixo o passado pra trás, estou sempre vendo o futuro, então não tenho grandes lembranças do dia a dia com ele. A não ser da afabilidade, da discrição e do temperamento manso, generoso. Nunca vi o Paulo falar alto, gritar, nunca vi ele bravo. Apesar de todo o sucesso que fez, tinha uma certa humildade. Quando fui trabalhar com ele, já tinha visto peças dele e a que mais me impressionou foi A Lira dos Vinte Anos, uma das primeiras peças a ser censurada pela ditadura. Na época do Piano, éramos muito jovens. No elenco, além do Cesar Augusto, meu grande amigo, tinha um menininho bem pequenininho que hoje é um grande diretor de novela: Frederico Mayrink. Tenho uma lembrança muito bonita dessa peça. Era uma literatura maravilhosa, que encantou todos que viram. Mais tarde, junto com o Flávio Marinho, acabei dirigindo você, Vera Holtz, Daúde, Ataíde Arcoverde, Claudia Jimenez – um elencaço – e só tenho lembranças maravilhosas. Foi uma delícia ter feito. Paulo ficou marcado como um dos expoentes da geração dele. Recebeu bastante respeito durante a vida, o que me deixa muito feliz, porque as pessoas só ficam ótimas e maravilhosas depois que morrem. Ele, não. Recebeu seus prêmios, seus aplausos, foi acolhido pelo público, pela classe teatral, pela crítica, pelos jornalistas. Pena ter partido cedo demais. Quanta coisa boa podia ter vindo depois! Fico feliz de saber que vocês vão falar sobre ele, vão deixar um legado para as próximas gerações.

Edwin Luisi, ator

Eu fiz com o Paulo Um piano à luz da lua – e foi delicioso. Ele estava sempre presente, otimista, entusiasta, ajudando nós atores e a direção. Foi uma experiência maravilhosa. Era um autor minucioso, dedicado e muito delicado também. Os personagens dessa peça tinham uma profundidade humana incrível. Eu adorei fazer uma personagem dele. Vou levar para sempre no meu coração.

Deborah Evelyn, atriz

Eu e Paulo Cesar temos caminhado juntos, há longo tempo, com os mesmos sonhos. Sonhamos uma sociedade socialista, democrática, ecológica e libertária. Um mundo sem explorados e oprimidos, onde toda a discriminação seja banida da face da terra. Em que, ao lado dos trabalhadores, todos possam ter justiça e felicidade (…) Esta peça é linda (…) Não é apenas a babá que me comove, mas a realidade dos outros personagens que convivem com ela. Seres humanos vivos, nus, sem maquiagem, sem rodeios, apresentados em toda a sua grandeza, fragilidade e mesquinharia. Quando sonhamos liberdade não pensamos em cor de pele, origem étnica, escolha sexual. Nosso sonho não tem limites. E, para nós, artistas, ser coerentes com o sonho, a loucura e a utopia significa abrir os braços, o canto, a palavra, soltar os ventos. A atriz e o autor estão de novo de mãos dadas. É esta música que ouço neste plano à luz da lua  (…) Que a lua branca brilhe em esplêndida noite negra”

Zezé Motta, atriz e cantora, em Lua Branca, Noite Negra, texto escrito para o programa da peça 

O Encouraçado Botequim

Na última semana de outubro de 1984, uma estreia solitária inaugura um novo espaço carioca em plena Copacabana: o foyer do Teatro Villa Lobos. E em grande estilo: um cabaré-navio apresentando um show de variedades cujo tema é a luta de classes. Tudo temperado com o molho das tradicionais revistas do ano. O formato é inspirado “no teatro de agitação e propaganda, muito comum na Alemanha antes da guerra”. Em cena, entre outros, Brucutu, Nero, Espartaco, Maria Antonieta, Voltaire, Salazar, Che Guevara, Rosa de Luxemburgo, Lenin, Nicolau, o czar, e Garcia Lorca, interpretado por um jovem e belo Ettore Zuim de camisa rosa aberta no peito cravejado de purpurinas: “Verde que te quiero verde / Verde viento. Verdes ramas / El barco sobre la mar / y el caballo en la montaña / Con la sombra en la cintura / ella sueña en su baranda / verde carne, pelo verde / con ojos de fría plata / Verde que te quiero verde / Bajo la luna gitana / las cosas la están mirando / y ella no puede mirarlas (…)”

“Num mundo em crise, ameaçado pela destruição nuclear, parece sobrar somente a opção entre o socialismo e a barbárie. Eu prefiro acreditar na utopia, na possibilidade de uma nova era. É a partir disso que conduzo esse passeio pela história. Com alegria, música e, principalmente, esperança.”

Um autor, dez atores, 60 personagens e 92 figurinos criados por Pedro Sayad, também criador dos cenários. Priscilla Teixeira coreografa as músicas de Paulo Machado, que compõe um samba de breque usando o refrão do célebre manifesto marxista: “Proletários do mundo todo, uni-vos!” Num ritmo festivo, feérico e bem marcado, a música de Paulinho e os versos de Coutinho viajam na história, explorando bacanais romanas e o triste fim do czar Nicolau: “Que azar, czar / quem diria / acabou a mordomia / Não adianta dar chilique / tá assim de bolchevique / querendo te agarrar”. A assustadora possibilidade de uma guerra nuclear, partindo dos ianques, também não é ignorada: “Posso destruir um milhão de Hiroximas / tudo depende do botão, da minha cisma / Mas que pena existem apenas / 3 mil cidades no planeta / do tamanho de Hiroxima!”

“Alegre, satírico, iconoclasta, esse Encouraçado Botequim atravessa os mares da História assinalando a luta de classes”, escreve Vivian Wyler em matéria no Caderno B: “Coutinho usa a voz e o tempero da revista para dizer o que pensa, fazer um apanhado de tudo o que aprendeu nos bancos universitários e na militância no diretório de Filosofia. Pelo seu bar bordel desfilam personalidades conhecidas e mitos queridos do que ele chama de formação marxista, sempre “muito dogmática, quando na verdade Marx ensinava a duvidar de tudo”.

Entre gargalhadas, canções, versos e poemas, transitando entre o deboche e o lirismo, não sobra pedra sobre pedra. No elenco, dando vida a dezenas de personagens, Catarina Abdalla, Debora Fontes, Ettore Zuim, Fernanda Caetano, Jitman Vibranovsky, Luis Carlos Niño, Paulão, Teresa Briggs. Ângela Vieira é Roxa Luxemburgo, a dona do cabaré, mais tarde substituída por Alice Viveiros de Castro. Mario Cesar Camargo é o anarquista Kropotkin, que divide com Ângela as funções de mestre de cerimônias.
“Com a licença de quem se permite “escolher as páginas da História com alguma mágica”, Coutinho promove encontros inusitados entre personagens semelhantes em ideais (…) Em 1871, na França, operários fundam a Comuna de Paris. A anarquista Louise Michel conhece o poeta Artur Rimbaud. Ela fala que derrubou a estátua de Napoleão, que o povo “começa a destruir os símbolos burgueses”. Ele acha que esses símbolos têm que ser extirpados da imaginação e da carne. Numa estação de trem, em Berlim, Rosa Luxemburgo se defronta com Lênin. Fazem um pacto. A ela, caberá explodir a Alemanha, a ele incendiar a Rússia. Espanha, 1936. Federico Garcia Lorca, alma andaluza por excelência, encontra-se com Dolores Ibarruri, a Passionária. Ele vai para Granada deixar seu balcão aberto. Ela pega o fuzil para declarar, determinada, que os fascistas no passarón: “Antes viver de pé que de joelhos!”

“Nada escapa nesta escalada de séculos de dominação. Nem mesmo Deus”, escreve Macksen Luiz em sua crítica “Paz e amor político” de 3 de novembro de 1984. E destaca: “O nonsense que perpassa toda a cena do Império Romano ou da Revolução Soviética (…) a inegável capacidade do autor para um humor mais cáustico e demolidor (…), a aceleração histórica realmente cósmica (…)”. No elenco, cita “Luiz Carlos Nino como Nero ou como o mujique (…), Jitman Vibranovsky, que “tira partido de um tipo físico bem marcante e de um jeito gauche”, a “malícia” de Ângela Vieira, as “caricaturas” de Catarina Abdalla e a “brejeirice” de Fernanda Caetano. E faz questão de registrar “o preparo vocal dos atores”.

Misturando textos reais, extraídos dos livros de História, com a exuberância de sua imaginação, Paulo Cesar espera que esse trabalho siga os mesmos passos de sua Lira dos Vinte Anos. “E possa sair do saguão do Villa Lobos para um teatro em Caxias”. Por que não?”, pergunta Vivian Wyler. Não sabemos se foi para Caxias, mas o Encouraçado Botequim, quem diria, acabou no Teatro Rival – de onde nunca deveria ter saído.

Em 1988, Margarida Drummond dirige em Belo Horizonte uma nova montagem do texto. Na cenografia e figurinos, Raul Belém. Na trilha sonora, o atual encenador mineiro, Pedro Paulo Cava, fundador e diretor do Teatro da Cidade.

Depoimentos:

“O ano era 1984 e em janeiro nascia minha filha Nina. O convite para fazer O Encouraçado Botequim, do querido Paulo César Coutinho, veio do seu irmão Renato Coutinho, meu amigo, que assinava a direção. Era um musical, com um elenco interessantíssimo e estreando um espaço dentro do teatro Villa Lobos: o foyer, que era lindo. Eu estava semi-recém-parida, amamentando minha filha full time e completamente fora de forma para dançar. Mas pensei: “Vou fazer esse trabalho de qualquer maneira!” No período dos ensaios, dava o peito, tirava o meu leite para a mamada seguinte e voltava pra casa a tempo de dar o peito novamente. O Encouraçado era irreverente, lúdico, muito Paulo César Coutinho, autor que eu conhecia bem através dos seus textos. Era a oportunidade de fazer parte de um deles, além de cantar e dançar. Foi uma delícia. Virou um espetáculo cult e, depois do Villa Lobos, ainda fizemos uma temporada no teatro Rival. A ditadura estava nos estertores e o Encouraçado trazia essa alegria. E Viva Paulo César e Renato Coutinho, Luís Carlos Niño e Paulão, onde quer que estejam!”

Angela Vieira, atriz,

Encouraçado Botequim, que fizemos em 1984, era um musical. Um texto todo rimado. Foi um exercício de intepretação muito bom para mim. Foi trabalhoso fazer aquilo ficar natural. Ele era um autor vibrante, que participava dos ensaios. Não ia só nas estreias, acompanhava a temporada. Um autor muito contemporâneo no tempo dele. Um autor que marcou. Fiz dois espetáculos dele. Além do Encouraçado Botequim, do qual fiz parte do elenco original, fiz também O Menino do Egito, substituindo o Toninho Lopes. Ele saía sempre com a gente. Trattoria, Baixo Leblon. Era um autor presente. Como você. Gostava de estar junto com todo mundo, ver os espetáculos, sair com os atores, comentar, criticar, elogiar…”

Ettore Zuim, ator

Vida de Artista

Dezembro de 1987. O teatrólogo João Bethencourt vence os 244 concorrentes do XV Concurso Nacional de Dramaturgia – Prêmio Nelson Rodrigues que, além dos 3 primeiros lugares, seleciona outros textos para leitura pública: um deles, O Rosto e as Máscaras, de Paulo Cesar Coutinho. No ano seguinte, em abril, o gerente de comunicação social da Shell, João Madeira, indica o texto como um dos fortes concorrentes a receber o patrocínio da empresa, previsão que, de fato, acontece.
No dia 21 de dezembro de 1988, depois de receber vários nomes – O Rosto e as Máscaras, Baile de Máscaras, Camarim de Vidro e Palco Iluminado – finalmente sobe ao palco do Teatro Cândido Mendes a nova peça de PC, com o título definitivo de Vida de Artista. No elenco, Débora Duarte, Pedro Pianzo e Stephan Nercessian. “Uma atriz encontra os personagens de sua vida. Mulher sensível e inteligente, Ana sempre buscou razões de viver: política, arte, amor, sexo, drogas. Vestiu tantas máscaras que perdeu o próprio rosto”, resume Paulo Cesar que, agora, além de texto e produção, assina também a direção em parceria com Thiago Santiago.

“Sempre quem tem a palavra final é o diretor”, argumenta PC em entrevista à Tribuna da Imprensa no dia 27 de dezembro, que traça um substancioso perfil pessoal e profissional do autor. “Produzir as peças foram processos muito angustiantes. É como se eu sempre houvesse armado o circo todo, mas não pudesse organizar a festa, que estava sempre aquém daquilo que eu sonhava para ela”.

Antes de tomar a decisão de tornar-se diretor, ele diz que tentou outros profissionais, “cujas propostas não batiam com o texto”.  Além disso, sempre se incomodava com os “cortes arbitrários” feitos pelos diretores que encenavam suas peças. “Eu sentia como uma certa censura. Mas quando resolvi assumir a direção, bateu como uma insurreição da palavra contra a ditadura do encenador. A palavra tomou o teatro de assalto , e aí, ao meu ver, se instaurou um governo democrático, porque a palavra é instrumento do autor e dos atores também”.

O cenário e os figurinos são de Pedro Sayad, a iluminação de Aurélio Di Simoni e a trilha sonora do próprio Paulo, que considera Vida de Artista a sua peça menos autobiográfica, embora aborde temas conhecidos como “a repressão do governo militar, a angústia, a solidão, o amor pela vida e a vida de artista”.

Em sua crítica no JB, publicada dois dias antes do Natal, Macksen Luiz tece a sua análise: “A intenção aparente do autor é a de transfigurar através dos signos do teatro (máscaras, linguagem, citações) as possibilidades de viver, com um mínimo de dignidade e de prazer, num mundo conturbado (…) A peça evolui em círculos, repassando, tal como uma obsessão psicológica, a carga emocional de quem já não deseja insistir e se prepara para abandonar a vida (…) Paulo Cesar sofre uma forte influência da literatura existencialista, além de ter absorvido as chaves dramatúrgicas do teatro psicológico norte-americano (…) ”

Para o crítico, “a visível intenção (dos diretores) de homenagear a prática do teatro” é o aspecto mais atraente da montagem, “que a direção acentua, especialmente nas interpretações do elenco (…) O elenco corresponde a esse teatralismo, em especial Debora Duarte, que revela verve irônica e equilíbrio apreciável entre a violência e a ternura”.

Em março de 1989, uma nota no JB assinala o final da bem-sucedida temporada de Vida de Artista: “Um recorde: 5 mil espectadores em 3 meses de temporada”. Depois de se despedir do Rio no dia 5 de março, a história da “atriz que, de tanto incorporar personagens, perde sua própria face” reinaugura em São Paulo o teatro Igreja, rebatizado na ocasião de Antonio Abujamra. Nesta montagem, que acontece de 5 de maio a 9 de julho – segundo o texto “A produção teatral paulistana nos anos 80”, tese de Alexandre Luiz Mate -, a cenografia e os figurinos são assinados por Marcelo Marques enquanto a iluminação fica a cargo de Ney Bonfante. No elenco, Paulo Drummond substitui Stephan Nercessian. No final de maio de 1989, no jornal O Estado de São Paulo, o crítico Aimar Labaki aplaude: “Debora Duarte, atuação memorável.”

Criado em 1988, o primeiro prêmio Shell de melhor autor versão paulista tem 3 indicações: Alcides Nogueira por Ópera Joyce; Paulo Cesar Coutinho por Vida de Artista; e Zeno Wilde por Quem te Fez Saber que Estamos Nus? Todos indicados por um júri formado pela atriz Lelia Abramo, o jornalista Celso Curi e os críticos Marta Góes e Alberto Guzik. O vencedor é revelado na festa comandada por José Possi Neto, no Clube Monte Líbano. Melhor autor nacional: Alcides Nogueira. Mas Paulo Cesar não perderia por esperar.

Falas da peça:

“A arte é uma oferenda. É preciso que se acredite que há alguém para receber esse presente. A arte precisa de alguma esperança de encontro.”

“As pessoas dão a vida pela fama, e quando enfim colocam a coroa de louros, descobrem que estão sozinhas numa corte de fantasmas.”

“Eu tenho a nostalgia da eternidade.”

“A vida é uma dádiva em si mesma. Mas ela só é plena quando o Outro existe.”

Lucrécia, o Veneno dos Bórgia

“Eu conheci Lucrécia Bórgia! Hoje, se falam horrores dessa dama, mas eu posso garantir que tudo que se diz dela… ainda é pouco”, garante Nicolau Maquiavel, personagem histórico que o autor e diretor Paulo Cesar Coutinho transpõe para a Ipanema do século XX, em setembro de 1992, na pele de Guilherme Karan. No palco da Casa de Cultura Laura Alvim, o escritor, filósofo, historiador que brilhou nos séculos XV e XVI, é secretário particular de César Bórgia (Pedro Pianzo). Com pleno acesso a “intimidade do poder”, torna-se “espectador privilegiado” dos bastidores do poder, das intrigas e decisões palacianas da corte dos Bórgia. “A política, como todos já sabem, é a arte de enganar os outros, sem que eles percebam e sem deixar vestígios”.

Dando vida à Lucrécia Bórgia, ao mesmo tempo filha e amante do Papa Alexandre VI (Helio Ary), Beth Goulart. Completando o elenco de “uma trama repleta de incestos, ambição e corrupção”, Alexandre Lippiani no papel de Giovani Bórgia.

A maior justificativa para essa bela alquimia – escreve o professor de jornalismo Marco Antonio Henriques no JB de outubro – é “o respeito que o diretor devotou ao estilo próprio de intepretação dos atores. Isso permitiu que Helio Ary criasse um papa que realmente nos diverte e emociona. E que Beth Goulart construísse uma Lucrécia (…) tão instigante, bela e sedutora que torna plausível a personagem que foi, simultaneamente, filha, esposa e nora de um papa, que o público, contra a própria história, tem dificuldade de acreditar. E levou Karan a um Maquiavel que assegura a grande empatia com a plateia (…) Karan é um desses atores com a rara qualidade de tornar todo e qualquer texto claro, simples e extremamente fácil para o espectador. Isso explica o primeiro comentário que ouvi no meio do público à saída do espetáculo: “Estou com vontade de ler O Príncipe, de Maquiavel.”

Além de mais uma vez garantir o patrocínio da Shell, a peça é vencedora do 2º Concurso Nacional de Dramaturgia, recebendo como prêmio, além da execução de cenários (José Dias) e figurinos (Biza Vianna), a ocupação do Teatro Laura Alvim. Antes mesmo de sua estreia, Macksen Luiz festeja em sua coluna Entreato “a cotação do autor brasileiro”, que continua subindo na temporada teatral de 1992, citando Flávio Marinho com sua Sessão da Tarde – Laquê, Drops e Rock and Roll; Miguel Falabella com No Coração do Brasil; Leilah Assunção com Quem Matou a Baronesa?; e Paulo Cesar com Lucrécia, o Veneno dos Bórgia.

Já nos ensaios abertos do fim de semana de 25 a 27 de setembro, Lucrécia, o veneno dos Bórgia – garantem os cadernos culturais – é “aplaudido em cena aberta por várias vezes”. Narrador e personagem, Maquiavel captura a atenção da plateia contando a história da ascensão da família Bórgia ao poder no Vaticano, e de como a personagem título usa a sedução para manter a família no comando do jogo político. “A ficção histórica é a realidade virtual da dramaturgia”, filosofa o autor/diretor, “oscilando entre o drama e o escracho para contar a trama que inspirou a obra prima de Maquiavel”.

Em outubro de 1992, o JB reúne jurados/colaboradores para opinarem sobre Lucrécia e rola uma unanimidade. Para o diretor Márcio Vianna, “num momento em que muitos encenadores insistem em valorizar exclusivamente a dramaturgia clássica, é muito significativa a forte e ampla presença em nossos palcos de novos textos de autores nacionais (Paulo Cesar, Falabella, Alcione Araújo, Flávio de Souza, Alcides Nogueira, Vicente Pereira, entre outros) e se esses autores provam que é possível a dramaturgia nacional, atores como Karan evidenciam que não há dramaturgia impossível”. (“Texto de alta qualidade e encenação de impacto”).

Marco Antonio Henriques em seu comentário intitulado “Casamento perfeito em meio à desordem moral”, via “um casamento perfeito entre PCC e o escritor italiano Nicolau Maquiavel que, em sua obra O Príncipe, inaugura uma ciência política inteiramente desligada da preocupação de ordem moral e religiosa. E isso é justamente o que o autor de Lucrécia mostra no seu atual espetáculo (…) talvez o sucesso do espetáculo esteja na força do próprio texto que Coutinho utilizou de Maquiavel. E também pela presença de atores como Beth, que dá ênfase na maldade, do papa, vivido pelo ator Helio Ary, que acrescenta uma dose a mais de deboche ao personagem e as ótimas intervenções de Karam, que fortalece o enredo da história de Lucrécia“.

No final de dezembro, os jornais anunciam os indicados ao Prêmio Shell de Teatro e Paulo Cesar é mais uma vez um nome entre os autores, junto com Beth Goulart pela sua performance como Lucrécia Bórgia e Biza Vianna pelos figurinos. Os vencedores são escolhidos em março do ano seguinte, numa “noite de vaias entusiasmadas” – segundo matéria do JB publicada no dia 11 de março – “contra o diretor Moacyr Góes (que dirige a cerimônia), o governador Luiz Antonio Fleury Filho e a crítica Bárbara Heliodora”, que concorre ao Prêmio Especial pela tradução de Romeu e Julieta. No mais, são só aplausos para os vencedores da noite. No final da cerimônia, Lucrécia, o Veneno dos Bórgia, arrebata dois prêmios: Biza Vianna e Paulo Cesar Coutinho.

No início de 1993, o espetáculo reinaugura o Teatro Glória, “totalmente reformado”, para uma temporada de dois meses. O sucesso de autor e texto são mais uma vez premiados com o lançamento do livro Cinco textos do teatro brasileiro contemporâneo, espetáculos patrocinados pela Shell: Fica Comigo esta Noite, de Flávio de Souza, A Bandeira dos Cinco Mil Réis, de Geraldo Carneiro, Cerimônia de Adeus, de Mauro Rasi, A Partilha, de Miguel Falabella e Lucrécia, o Veneno dos Bórgia. Lançado no Teatro dos Quatro, o livro marca os dez anos de parceria da Shell com o teatro: “Um investimento de 500 mil dólares em apoio a 100 espetáculos”.

Em junho, o espetáculo estreia em São Paulo, com a presença de Luiza Thomé no lugar de Beth Goulart. No final de março do ano seguinte, o JB publica uma nota divulgando que o autor e o diretor Paulo Cesar Coutinho selecionava elenco para excursionar com dois de seus espetáculos: Lucrécia, o Veneno dos Bórgia e Mulheres Apaixonadas, ambos “com estreia prevista para o segundo semestre”.

A Serpente de Plumas

Talvez tenha sido sua última estreia, já que Paulo Cesar sairia de cena no ano seguinte, em agosto, com tantos projetos ainda no papel e na mente. O que nos lembra o protesto/lamento do compositor e maestro Villa Lobos: “É triste a gente morrer; ter alguns meses de vida e séculos de música na cabeça.”

Os ensaios abertos começam no final de outubro de 1995, mas o novo espetáculo de PC, A Serpente de Plumas, em que ele mais uma vez acumula as funções de autor e diretor, começa a ser divulgado na imprensa carioca em agosto. O nome de Thales Pan Chacon chega a ser anunciado e confirmado como um dos atores da montagem, mas a ficha técnica que estreia no palco do Teatro do Sesi tem outros nomes no elenco: Myriam Persia (Citacli, a rainha), Camilo Bevilacqua (Montezuma), Raul Serrador (Cualthemoch, o príncipe), Nedira Campos (Malinche), Pedro Pianzo (Hernan Cortés) e integrantes da Intrépida Troupe.

“A peça girava em torno da guerra entre os espanhóis e os astecas no México”, lembra Nedira Campos. “Quando Hernán Cortés dizimou o império asteca liderado por Montezuma. Eu fazia Malinche, mulher de Montezuma, que se torna amante de Cortés. Dizem que essa traição foi uma das razões que levou à queda do Império Asteca. Até hoje Malinche é considerada a Judas do México.”

Contam os historiados que, no final da primeira década do século XVI, um navio espanhol aporta na costa do golfo do México, recebendo dos nativos diversos presentes de boas-vindas: pães, frutas, aves, ouro e pedras semipreciosas. Entre os regalos ofertados aos estrangeiros navegantes, 20 escravas. Uma delas, a índia Malinche, que, por dominar os idiomas maia e asteca, serve de intérprete para os invasores, ajudando-os a se comunicarem com os índios locais. Por fim, os nativos sucumbem diante da força espanhola – 9 barcos, centenas de tripulantes e soldados, dezenas de cavalos e peças de artilharia, segundo o site Educação do Uol. “Eles nunca tinham visto um cavalo”. Além de intérprete, Malinche torna-se guia e amante de Cortés, o conquistador, com quem teve um filho, “considerado o primeiro mexicano da história”: Martín, o mestiço.

A essa altura já sabemos que uma das especialidades do autor é combinar história e teatro. Em A Serpente de Plumas é a vez dele fazer “uma radiografia da invasão espanhola na América Central”, como nos descreve a jornalista Roberta Oliveira no Caderno B de 3 de novembro de 1995. E tudo começa quando o autor descobre a lenda: “Para satisfazer os deuses, os astecas costumavam fazer sacrifícios humanos. No entanto, o Deus Quetzalcoat, criador do céu e da terra e conhecido como a Serpente de Plumas, não apreciava esse tipo de barbárie. Para mostrar sua desaprovação, Quetzalcoat decidiu abandonar seus seguidores e prometeu voltar pelo mar do Ocidente no ano de 1519 para se vingar.” Na visão de Paulo Cesar, “se não fosse por esta crença, os espanhóis não teriam conquistado o México apenas com um exército de 500 pessoas composto só de velhinhos, crianças e maltrapilhos”.

Além dos personagens históricos, há também os ficcionais, como a rainha Citacli, mãe de Montezuma. Nos cenários de Ricardo Venâncio, que também assina os figurinos, “uma mistura de velas de navios e pirâmides; na trilha sonora, de autoria de Chandra Mani, “uma colagem de músicas latinas com canções astecas”. Para o crítico do JB, Macksen Luiz, a maior qualidade da peça era “o perfil humano dos heróis”.

Depoimentos:

“Essa peça foi muito louca. O Paulo Cesar já estava doente. O Pedro Pianzo também. Isso tudo não se falava, a gente sabia. Vanda Lacerda ia ser a mãe do Montezuma. Mas como ela estava com a voz debilitada na época, o Paulo Cesar não gostou e acabou tirando ela. Foi um escândalo aquilo pra mim. Imagina. Tirar a Vanda Lacerda, aquela maravilhosa atriz. Então ele chamou a esposa do Francis Hime, a Olívia. Acabou tirando ela também. Foi um escândalo o processo, sabe? A gente ensaiando… Por fim chamou a Miriam Pérsia. A peça era muito bonita, de uma beleza plástica incrível, mas só ficou três dias em cartaz. A gente dizia que era a vingança de Montezuma.”

Nedira Campos, atriz

A Noite do Meu Bem

Na edição em que anunciam a morte do autor e diretor Paulo Cesar Coutinho, os jornais A Folha de SP e Jornal do Brasil escrevem que ele “planejava montar, em 1996, Madame Satã”. Meses antes, o Caderno B divulga os ganhadores das bolsas dos projetos culturais contempladas pela Rioarte: entre eles, Maria Helena Martinez Correa de Camargo (Teatro Musical Brasileiro 1851-1962), Tiago Santiago (Caramuru), Karen Acioly (O Amor e o Circo) e Paulo Cesar Coutinho (Madame Satã).

Não encontramos nenhuma outra referência sobre esse projeto. Talvez Paulo não tenha conseguido realizá-lo a tempo. Contudo, deixou pronto A Noite do Meu Bem, texto que o diretor Francis Mayer estreia em janeiro de 1999 no Teatro Posto Seis: “O espetáculo cumpriu duas temporadas de sucesso de público em dois verões: de 1999 e 2000”, recorda Francis. “O texto reflete sobre a situação das pessoas que são obrigadas a se refugiar em guetos, mostrando a vida e os relacionamentos de 8 rapazes de classe sociais e temperamentos diferentes que procuram fugir da solidão entre a boate e a sauna. Nestes cenários, os personagens não são forçados a reprimir seus desejos e buscam afeto. É onde têm a possibilidade de se despirem das exigências do cotidiano e exercerem livremente a sua sexualidade.”

Autor e diretor se conhecem em 1989 na montagem Querelle, de Jean Genet, que Francis dirige no Teatro Dulcina: “Sou fã do autor Paulo Cesar Coutinho desde quando vi A Lira dos Vinte Anos, em 1983, no ainda Teatro de Bolso Aurimar Rocha. Ficamos amigos e assisti a vários textos dele: A Lira dos Vinte Anos, A Flauta de Pã, A Bela Aborrecida, Menino do Egito, Lucrécia, o Veneno dos Bórgias, Um Piano à Luz da Lua, Honey Baby – Era uma Vez nos Anos 70, Encouraçado Botequim e Vida de Artista. Em 1989, produzi Querelle, de Jean Genet, no Teatro Dulcina, com Rogéria, Gerson Brenner e um grande elenco. Ele foi ver e, lá mesmo, no teatro, me falou que gostaria de me apresentar um texto. Era A Noite do Meu Bem.”

Peças Citadas

No nosso mergulho na vida profissional do autor, encontramos referências a peças que ele deixou escritas ou em processo de construção. Uma delas, Elvis, um musical contando a história do rei do rock, está registrada na Sbat. No corpo do texto, é possível ver a data datilografada: setembro de 1989. Os jornais chegam a comentar uma estreia no Teatro Galeria e, mais tarde, no Tereza Rachel, com Jerry Adriani no papel de Elvis, dirigido por Atilio Ricó. Em entrevistas, o autor escala seu escrete dos sonhos: Deborah Evelyn como Debra Paget; Miriam Rios como Priscila Presley; Nívea Maria no papel de Natalie Wood; Claudia Raia vivendo Ann Margret. “Mas aí veio o Plano Collor e adiou tudo”, lamenta Jerry em maio de 1990, na volta do show em que lança o LP Elvis vive, nascida da peça de Paulo Cesar. “Enquanto isso”, escreve Mauro Trindade, “a trilha da peça, gravada pelo selo Eldorado, já vendeu mais de 30 mil cópias”.

Outros títulos são mencionados em notas e matérias nos jornais: Maxixe, Lago e Mulheres Apaixonadas. Além de Iago, “uma recriação de Othelo, de Shakespeare”, sabemos, graças à imprensa da época, que Maxixe “é uma comédia de costumes passada no Rio de 1910”. Quanto a Mulheres Apaixonadas, nenhuma informação. Contamos com leitores e colaboradores que possam nos dar pistas sobre esses trabalhos.

Descobrimos também que o cantor e ator Ivon Curi estava produzindo um show com roteiro escrito por PC pouco antes de falecer, quase um ano antes de Paulo. Um espetáculo em que, além de  mostrar seus inúmeros talentos de ator, cantor, dançarino, comediante, imitador e contador de histórias, “contaria sua vida e faria uma homenagem a todos os artistas”, como declara a viúva Ivone Curi em entrevista ao JB de 19 de julho de 1995.

No monólogo encomendado a Paulo Cesar Coutinho, Procura-se um Artista, “um ator desempregado vai fazer teste para um papel que nem sabe qual é (…). Ivon estaria “sozinho no palco, dialogando apenas com um diretor fora de cena”.

Na mesma matéria, o empresário do ator e cantor, Luís Carlos de Oliveira, conta que, para Ivon, aquela peça serviria para “coroar sua carreira”. “Eu sou um Atlas geográfico de tipos humanos. Pode abrir qualquer página que salta um personagem”, diria o ator logo no início do espetáculo, iniciando o desfile de tipos que marcaram sua vida artística.

Três semanas antes de sua morte, num show realizado no teatro do Tijuca Tênis Clube, Ivon teria comentado com o empresário: “A casa está tão lotada que dá a impressão de ser meu último show.”

No final do espetáculo escrito especialmente para ele, Ivon se despediria da plateia dizendo: “O artista é atemporal, não tem idade, a não ser a dos seus personagens. O artista representa velhos, crianças, homens, mulheres, santos e bandidos. Ele tem mil rostos da existência e todas as idades, nenhuma idade. O artista é como o vinho, que se refina como tempo.  O artista nunca filha velho, ele se torna sábio, traz em seu espírito milênios de vivência humana e de tantas vidas que vive por empréstimo acaba por se tornar sobretudo um ser humano sempre à beira do abismo, à véspera da estreia, diante da luz divina do infinito”. Ivon morre em junho de 1995. Menos de um ano depois, seria a vez de Paulo Cesar. Ambos agora vivem sob os refletores “da luz divina do infinito”.

Roteirista, Cronista, Escritor

Sua carreira de autor teatral é mais do que uma realidade. Os elogios são muitos. No final de 1987, o teatrólogo João Betthencourt brinda em entrevista a chegada de “novos talentos no teatro brasileiro, como Domingos de Oliveira, Maria Adelaide de Amaral e Paulo Cesar Coutinho”. O então crítico e escritor Flávio Marinho, que logo se tornaria também um dos membros da classe dos dramaturgos, enumera as qualidades de Paulo Cesar no programa da peça estreada no dia 15 de outubro, que também apresenta um resumo do ano de 1958 assinada pelo mesmo Flávio. Um balanço tão saboroso que essa escriba acredita que deu a Joaquim Ferreira dos Santos a ideia para escrever e lançar, em 1997, dez anos depois, o best-seller 1958 – o Ano que Não Devia Terminar. Mas vamos à análise de Flávio sobre a obra de Coutinho:
“Temporada carioca de 1983 (…) num frenesi de estreias (…) A Lira dos Vinte Anos (…) testemunhava-se ali o nascimento de um promissor talento dramatúrgico (…). Um autor com surpreendente domínio das chamadas técnicas dramatúrgicas (…) excelente dialogação, senso de humor e uma história (…) contada com a maior clareza (…). Ganhou, merecidamente, o Troféu Mambembe de revelação. No ano seguinte (…), o autor reaparecia tentando recuperar dois gêneros em baixa – a revista e o musical – num só título: Encouraçado Botequim. Com humor e jovialidade, reuniu, num só espetáculo, uma tribo que sempre lutou pela vida: Rimbaud, Verlaine, Rosa Luxemburgo, Lênin, Trotsky, Marx ou Voltaire eram apenas algumas das personagens que compunham um generoso e leve painel de uma gente que, sistematicamente, ficou de fora do sistema. Logo depois, outra peça, outra família. Dessa vez, a família do teatro: Honey Baby – Era uma Vez nos Anos 70. Como toda família, um núcleo que se ama e se odeia – mas que não pode viver um sem o outro (…). Um grupo de teatro cercado pelo sufocante clima brasileiro (…) dos primeiros anos da década de 70. (…). Autor feito produtor (PC Paulo Cesar Coutinho Produções Artísticas), PC apresenta, agora, Um Piano à Luz da Lua (…). Mexendo no baú da memória afetiva, foi buscar as lembranças de uma infância passada na Copacabana de 58 a fim de retratar uma família classe média carioca e suas vidas em fuga. Para isso, acionou seu poder de síntese, o gosto pelas cenas curtas, de vida própria, o seu senso de humor, enquanto a sensibilidade bordava o que talvez seja sua peça mais delicada (…) A poesia surge quando menos se espera (…). Um texto que faz o crítico (…) de 83 chegar a mais óbvia das conclusões: o talento promissor é, hoje, um autor consumado. Você merece, PC.”

Que década! Respeitado, admirado, procurado para dar entrevistas, opiniões, participar de debates, concursos de dramaturgia, escrever novelas, minisséries, roteiros para cinema, espetáculos de dança e colunas nos jornais. Um assombro.

Dança

No início da década de 80, vinte jovens se unem para formar uma companhia e realizar o maior sonho de todo bailarino: estar no palco. Assim surge o grupo Vacilou, Dançou, dirigido por Carlota Portela. Autor e companhia iniciam o namoro que se transforma num romance duradouro no quarto espetáculo do grupo, Amor, Mito Bailarino, que estreia no Teatro Benjamin Constant em 1985 num período em que o autor tem 5 peças de sua autoria em cartaz: três montagens de A Lira dos Vinte Anos (Rio, Belo Horizonte e Curitiba); duas peças infantis, A Flauta de Pã (Rio) e Queridos Monstrinhos (Curitiba) e o cabaré musical Encouraçado Botequim, também na cidade maravilhosa.

O roteiro do espetáculo aborda amores mitológicos em suas diversas manifestações: “Reacender uma chama”, declara o autor em entrevista. “Pertencemos a uma geração muito sufocada que precisa recuperar suas raízes. Precisa amar. Amar como os deuses, os gregos, os verdadeiros amantes de todos os tempos.”
Cinco mitos da Grécia Antiga, cinco histórias de amor: Narciso e Eco (o que ama a si próprio e a que só repete o que ouve); Teseu e Ariadne, “a princesa enamorada que dá um fio ao herói para que ele consiga sair do labirinto”; os Andróginos, que aborda o amor a três; Céu e Inferno e as Amazonas: “Procurei oferecer aos coreógrafos e bailarinos o perfume, não a rosa. No lugar da palavra, o gesto”. A segunda montagem do grupo estreia no semestre seguinte do mesmo ano, 1985, dessa vez no Teatro Nelson Rodrigues.

América Ladina coreografa flashes da história latino-americana em ritmo de jazz. Dirigido por Milton Dobbin, iluminado por Maneco Quinderé e coreografado por Carlota Portela e Renato Vieira, o espetáculo tem roteiro de Paulo Cesar para as três primeiras histórias: Portugal Mudou-se ou A Corte Fugiu para o Brasil, Tupac Amaru e o poeta contemporâneo, De General a Liberal. “Cada cena ilustra um aspecto de nossa progressão política, vista sempre com humor e uma certa irreverência mostrando facetas pelas quais nos reconhecemos e somos reconhecidos”, escreve Antonio José Faro em sua coluna no JB. Carlota assina o roteiro da quarta história, Minha América, que faz uma homenagem a Caetano Veloso.

“Os cuidados da produção do grupo já são marca registrada, e seu sentido profissional, um exemplo para outros conjuntos do gênero. Ao entrar numa nova estrada, o Vacilou, Dançou dá mais uma demonstração de querer, através de um alargamento de horizontes, firmar-se cada vez mais no panorama da dança brasileira. E, só por isso, merece nosso apoio.”

No final de outubro, a companhia já está em cartaz no teatro Benjamin Constant, onde permanece até dezembro. Encantado, o crítico Antonio José Faro volta a escrever sobre o grupo: “Novamente com o auxílio do roteirista Paulo Cesar Coutinho, o Vacilou, Dançou foi buscar, nas mazelas passadas e recentes de nossas vidas, temas sempre vivos, explorados com uma irreverência inteligente, um humor fino, que mais do que rir faz pensar (…) Com exceção do último quadro, Minha América, onde Carlota usa as melodias de Caetano para um final de levantar a plateia (…), os demais fazem graça às custas de nossa história. Portugal Mudou-se ou A Corte Fugiu para o Brasil, mais do que lição de história, nos dá uma visão satírica do choque entre os nativos e os “estrangeiros” (…) acabando tudo num carnaval carioca (…). Tupac Amaru e o poeta contemporâneo simboliza nesses dois personagens a perseguição, a tortura e a morte (…) De General a liberal talvez seja o mais engraçado e contundente de todos, pois podemos fazer ligações as mais diretas com fatos sobre os quais lemos diariamente nos jornais (…)”

O caso de amor entre autor e grupo prossegue, gerando outros espetáculos: Momentos, setembro de 1986, quando a companhia completa 5 anos de existência com uma apresentação de seu repertório. Em cena, trechos de peças já conhecidas e aplaudidas – como No Caos do Porto, Trapos e Farrapos, Amor, Mito Bailarino, América Ladina – e dois novos trabalhos com roteiro de PC: Uma Dança para Todos e Ninguém, com coreografia de Carlota Portela, e Do fundo do meu coração, cujo desenho coreográfico é assinado por Renato Vieira. O espetáculo estreia no teatro Benjamin Constant.
Em outubro de 1987, o grupo festeja os sete anos consecutivos no palco do Teatro Nelson Rodrigues com o espetáculo Gauche, inspirado em poemas de Brecht e Drummond. Com coreografias de Carlota Portela e do norte-americano Rick Atwell, divide-se em três partes: a primeira reunindo poemas de Bertolt Brecht e músicas de Philip Glass, George Morander e Kurt Weil. A segunda, poemas de Drummond com músicas de Cesar Camargo Mariano, Marcos Resende e canções interpretadas por Elis Regina, como Amor até o Fim. Playgrounds, a terceira, “um cartão de namorados para o Brasil” criado por Atwell, combina músicas de Cesar Camargo e os Jackson.
Na ficha técnica, figurinos assinados por Marta Bianchi, cenários de Luiz Cavalleiro, iluminação de Samuel Beths. Cabe a Paulo Cesar Coutinho, roteirista da companhia desde 1984, fazer a seleção dos poemas, todos declamados em off pela voz do ator Paulo Autran. Em julho de 1988, o caderno B saúda a sétima temporada anual da companhia: “Mais uma vez a dança vem traduzir poesia em gestos e movimentos de corpo”.

No final de 1988, Renato Vieira passa a liderar um novo grupo de bailarinos, formando a Companhia Fim de Século que estreia no Teatro Villa Lobos Anarquia Lírica, fruto da colaboração entre um trio de criadores: o coreógrafo, Bia Radunski e Paulo Cesar. A ideia é “homenagear o próprio espetáculo”. Em cada quadro, uma homenagem a um tipo de manifestação artística. Em John e Yoko – o Sonhador e seu Sonho, a música é a estrela através da história do casal. Marlene Dietrich, um Filme sem Fim, homenageia o cinema, contando a história de sua amizade com Charles Chaplin e seu amor pelo ator Jean Gabin. O teatro é saudado no quarto quadro, baseado na peça de Frank Wedekind, O Despertar da Primavera, com coreografia assinada por uma convidada do grupo, Regina Miranda. Na homenagem à ópera, Renato Vieira faz uma adaptação de I Pagliacci, de Leoncavallo.

As apresentações seguem em 1989 e o espetáculo permanece em cartaz até quase o final de maio, realizando temporadas no Rio (Villa Lobos) e no Teatro Abel, em Niterói.

Na entrevista dada ao jornal Última Hora em setembro de 1986, Paulo Cesar explica ao repórter como funciona o roteiro de dança: “Não tem texto. Você conta uma história sem palavras. A coisa não é dita, é dançada. Esse é o trabalho do grupo: buscar uma teatralização.”

Televisão

Naquele janeiro de 1986, o show de Evinha e o Trio Esperança atrai os artistas globais à plateia do People, um dos points das noites cariocas da década de 80. Em sua coluna, Hildegard Angel conta que Erasmo Carlos deu canja, cantando Festa do Bolinha, Mário Gomes sabia quase todos os sucessos de cor e Paulo Cesar contava aos amigos que estava estreando na TV Globo como autor: uma versão moderna e musical de Cinderela com Angela Rô Rô de fada madrinha e Evandro Mesquita como Príncipe Encantado.

Fundada por Doc Comparato, a Casa da Criação Janete Clair é um novo projeto da emissora, coordenado por Euclides Marinho e Luis Gleiser: novos formatos escritos por nomes estreantes na tevê, mas conhecidos no teatro, no cinema e na literatura. Entre eles, Felipe Pinheiro e Pedro Cardoso, Hamilton Vaz Pereira e Paulo Cesar Coutinho, que teria “carta branca” para escrever o musical Cida, a Gata Roqueira.

Não rola exatamente assim. Paulo acaba assinando apenas o argumento e os coordenadores da casa – Marinho e Gleiser – se encarregam de escrever o especial global, que vai ao ar no final de agosto de 1986, estrelado por Cláudia Raia (Gata Roqueira), Evandro Mesquita (João Príncipe), Rita Lee (Fada Madrinha), Tim Maia (Frei Maia) e Maria Zilda (Madastra). Na direção, Roberto Talma, cuja missão é “descobrir o caminho do musical brasileiro dentro da tevê”.

Um ano depois, a Casa da Criação, de protagonista, vira alvo. Sofre cortes de pessoal, mudança de direção – assumem Dias Gomes e Ferreira Gullar – e uma reportagem do JB (Crônica da Casa Ameaçada) no final de junho avalia: “produções nacionais naufragam e enlatados invadem as praias”. Chovem críticas e denúncias de plágios dos próprios autores que trabalham com a Casa, produzindo argumentos, sinopses, personagens, tramas: “Na última reunião da Casa eu desmaiei, de tanto absurdo que ouvi”, confessa Mário Prata. Embora para Aguinaldo Silva a perspectiva do fim da Casa de Criação fosse indiferente, para PC seria “lamentável, uma catástrofe”, mesmo ressentido com o tratamento dado às suas ideias: “Tive experiências muito ruins. Uma foi com A Gata Roqueira. Mexeram um pouco no meu roteiro e terminaram assinando como roteiristas. Depois, apresentei duas histórias, que foram usadas no seriado Armação Ilimitada. Como não havia registrado minhas sinopses, dancei.”

Em artigo assinado no JB de julho de 1987, Dias Gomes faz a defesa da Casa. “Teimamos em salvar tudo o que de valioso chegou às nossas mãos”. Quase dois anos depois, no entanto, depois de nova acusação de plágio – dessa vez direcionado à Aguinaldo Silva por Tania Lamarca -, a Casa é sumariamente extinta por um memorando. “Durante seus quase 3 anos de existência os coordenadores pediram ideias de graça a gente famosa para futura aprovação. As sinopses nem sempre eram aprovadas e, muitas vezes, o verdadeiro criador assistia a diálogos, personagens e cenas idênticas as suas na TV. Com o nome de outro autor, claro”, afirmava matéria do JB de 29 de maio de 1989.

Mas o que é do homem o bicho não come, e em 1990 Paulo Cesar Coutinho assina contrato com a Rede Manchete de Televisão, tornando-se um verdadeiro darling da emissora de Adolpho Bloch. Sua estreia acontece com A Escrava Anastácia, “superprodução envolvendo 200 pessoas e 5 milhões de cruzeiros”, contando a lenda de uma princesa africana feita escrava e hoje adorada como santa milagrosa. Gravada numa histórica fazenda de café – Pau D’Alho – em São José do Barreiro, interior de São Paulo, a minissérie tem no elenco, entre outros, Angela Correa, Zezé Motta, Antonio Pitanga e Haroldo Costa.

“Numa época em que todas as viagens e novas produções estão cortadas nas emissoras concorrentes, a ousadia maior da Manchete, porém, está na escolha da santa pagã e popular, banida até hoje de cultos sincréticos pela Igreja Católica, e no tratamento sexualizado de todos os personagens”, escreve Marcia Cezimbra no JB em sua matéria Misticismo Erótico de 14 de maio, nas vésperas da estreia: “A Manchete apresentará um Brasil violento do século 19, onde escravos eram estuprados, torturados e não duravam mais que 2 anos. E ainda uma história de resistência à escravidão, com fugas heróicas para a formação de quilombos. A visão de Paulo Cesar Coutinho, escritor já premiado no teatro, e saudado como a nova revelação da casa, é propositalmente oposta à da cordialidade brasileira do lendário Casa Grande e Senzala, de Gilberto Freyre. “O tempero mais forte ficou na sexualidade”, avisa o escritor (…)”

Dirigida por Henrique Martins, Anastácia estreia em maio de 1990 e é um sucesso. “O roteiro para televisão, vinculando nobreza, genealogia africana e axé, corrobora para a ampliação do mito, o que está deixando felizes milhões de brasileiros que veem na TV mais uma possibilidade de encontrar soluções para suas aflições”, escreve Micênio Santos, de São João del Rey, na seção de cartas do Jornal do Brasil.
Depois de Anastácia, vem O Canto das Sereias, cujo cenário é a paradisíaca ilha de Fernando de Noronha e tem no elenco nomes como José de Abreu e Giuseppe Oristânio. Dirigido por Jayme Monjardim, a história é baseada na mitologia grega, uma das paixões de Paulo Cesar, e traz à tona a lenda das sereias interpretadas “pela beleza inebriante de três jovens promessas da televisão brasileira, Ingra Liberato, Nani Venâncio e Andrea Fetter”. (Jornal do Comércio, 10/6/1990). Antes mesmo de estrear, a emissora já havia vendido 3 das 4 cotas de patrocínio, cada uma no valor de 13 milhões de cruzeiros.

Assustada com a repercussão e a audiência da concorrente, que cresce a olhos vistos com Pantanal e as minisséries escritas por PC, a TV Globo aposta em nova produção: Riacho Doce, gravada no mesmo cenário de Sereias.

Apesar da antipatia da crítica, o fato é que a “audiência arrasadora da minissérie O Canto das Sereias (…) ganha de Boca do Lixo (Silvio de Abreu) e detona um pacote amplo e internacional de minisséries para entrar no ar na Manchete em 1991″.  Quanto a Paulo Cesar, que recusa o convite da Globo para voltar à emissora do Jardim Botânico, já se encontra debruçado sobre novo produto: A Lenda dos Orixás, uma minissérie em que cada um dos seus 16 capítulos conta a vida de um Orixá (história) e a sua influência sobre um de seus filhos (ficção). Dando vida à mãe de santo, responsável por ligar todos os episódios, Zezé Motta. Na direção, mais uma vez, Henrique Martins.

Novos ventos sopram e, numa nota publicada em sua coluna Cena Aberta no dia 20 de novembro de 1990, Regina Rito anuncia que o autor das minisséries Escrava Anastácia, Canto das Sereias e Mãe de Santo “não era mais o darling da TV Manchete. Terminou seu contrato de um ano com a emissora e ele não pensa em renová-lo”. Nada dura para sempre.

Cinema

O ritmo de trabalho é intenso. Convites batem à sua porta. Paulo vive literalmente de escrever. Teatro, dança, televisão. Falta o cinema e a sétima arte se aproxima dele em 1986, quando é chamado para ser o roteirista brasileiro do filme Prisioneiro do Rio. A vida do célebre Ronald Biggs, que fugiu para o Brasil depois de assaltar o trem pagador em Londres, iria enfim chegar às telas.

Na entrevista ao repórter da Tribuna da Imprensa, em setembro de 1986, PC conta como foi o convite: “Um polonês radicado no Brasil assistiu à peça A Lira dos Vinte Anos e se interessou pelo meu trabalho. Quando resolveu produzir o filme, procurou um roteirista. Além das referências sobre o meu trabalho, leu o roteiro do musical A Gata Roqueira, que escrevi para a Globo, e gostou. Paralelamente, chegou ao Brasil um polonês que foi do Solidariedade e está exilado há quatro anos nos Estados Unidos. Entrevistaram vários roteiristas e o meu nome foi escolhido. Eu estou vibrando porque o momento é muito fértil para mim.”

Contudo, depois de assinar um contrato e enviar o primeiro tratamento do roteiro para o diretor Lech Majewiski, em Nova York, em agosto de 1986, a produção rompe o acordo, “alegando a cláusula de inaceitabilidade”. Na visão do escritor, inaceitável é usarem o seu roteiro, já devidamente registrado, “sem o pagamento dos restantes 5 mil dólares, mais o percentual sobre a bilheteria”. Na nota publicada no JB de domingo, 19 de outubro, o jornalista promete: “Vamos esperar e ver onde vai acabar essa história”.

Entretanto, pelo menos nos jornais a que tivemos acesso, não se fala mais no assunto. Pouco tempo depois, uma outra nota registrada no mesmo JB informa que, “entusiasmado com o ritmo de trabalho”, Paulo Cesar agora dedica-se a uma nova experiência: escrever a três mãos o roteiro de Raios Fúlgidos ao lado dos cineastas Marco Antônio e Iracema Simas: “Um filme que reflete sobre a capacidade de criação e o efeito da repressão no artista.”

Na sua longa e pessoal entrevista à Tribuna, Paulo se revela um pouco mais: “Eu gosto de escrever, de ler, ouvir música, passear com os amigos. E de namorar”, confessa. “Sou ultrarromântico porque sou de Câncer com ascendente em Peixes. Sou água. Uma lagoa que às vezes tem maremoto, inundações”. Quem diria que PC acredita em astrologia. “É uma ciência milenar.” Sobre sua formação marxista leninista, constata: “Eu era muito cético, mas de repente a gente descobre que existem apreensões múltiplas da realidade que se complementam.” Então você considera o marxismo superado? “Não. Mas ele não responde a tudo.”
Recebe o repórter do jornal em sua casa, em Copacabana, “numa ladeirinha que é o último reduto ecológico de Copa”. Mora sozinho, “num quarto e sala que tem uma varandinha com árvores em frente. Um bosquezinho, um pedacinho do paraíso. Tem passarinhos, macacos e árvores que mudam de cor o ano inteiro.” Toda vez que passo por lá, lembro dele.

Apesar de “meio feliz com o crescimento profissional”, sente-se “afetivamente carente”. Sozinho não por decisão, mas “por uma contingência”. “Os desencontros que pintam e que nos levam a ficar sozinhos. Companhia faz falta. Essa coisa essencial de partilhar com alguém as tristezas e alegrias (…). Sou tímido, mas se pinta o tesão eu embarco.”

Imprensa

Nos jornais, especialmente no JB, Paulo escreve sobre tudo que vê, lê, sente, acontece. Discorda abertamente do colega Mauro Rasi, que num artigo ousara dizer que Brecht era um chato, “reduzindo sua dramaturgia ao proselitismo político autoritário. Fosse isto verdade, nenhum “exército” de defensores conseguiria manter aceso por cinco décadas o brilho de seus textos, e o fascínio que provocam em plateias de várias gerações no mundo inteiro (…) Brecht persiste atual e universal exatamente na medida em que transcende o proselitismo, transformando seu discurso político em obra de arte, em síntese viva de consciência e prazer estético ” (Viva Brecht, JB, 09.02.1986).

Em abril, na crônica Faço, logo existo, confessa que não é fácil ser autor de teatro no Brasil: “Na longa jornada entre a gaveta e o palco, poucos conseguem ser encenados”. E depois de um profundo relato sobre as dificuldades, faz um alerta: “Contudo, situações absurdas têm levado a reações igualmente equivocadas. Uma é o nacionalismo xenófobo, que abomina tudo que é estrangeiro. Investe contra os clássicos e a vanguarda, tentando cortar o fluxo de ideias. Outro confunde crítica com censura (…) O espaço da crítica é vital para a discussão e divulgação do nosso trabalho. Confundir o inimigo é um erro fatal. O inimigo é ideológico. Deve ser enfrentado no campo das ideias, através de ações concretas”. Dá sugestões: “As verbas e os teatros públicos devem ser destinados aos textos nacionais. O INACEN deve transformar seus prêmios em verbas para montagens dos textos premiados. A categoria teatral precisa lutar pela aprovação da Lei Sarney. Para existir à luz dos refletores precisamos desesperadamente de produtores conscientes. A dramaturgia brasileira precisa de anistia, para sair do exílio em seu próprio país.” Mas mantém a esperança acesa: “Não é fácil ser autor de teatro no Brasil. Mas, com garra, escreveremos nossa história.”

Em março de 1986, junto com os cineastas Walter Lima Jr e Zelito Vianna, a atriz e diretora Jacqueline Laurence, participa de um debate sobre o filme O Beijo da Mulher Aranha, de Hector Babenco, coordenado pelo crítico Wilson Cunha e a jornalista Susana Schild. “É menos denso do que o livro, do que o espetáculo teatral, mas é um belo filme e me comoveu profundamente.”

Juventude? Como assim? é o título do artigo assinado em novembro de 1986 em que faz uma reflexão sobre o tempo e uma ode à vida: “Sempre ouvi falar da crise dos 40, e pensava que a minha seria devastadora. De repente esta idade se aproxima, e com ela outra visão de mundo (…). Compreendo agora o gosto dos vinhos de boa safra e dos frutos maduros. (…). Passei quase toda a vida deprimido, desfiando um rosário de queixas sobre o vale de lágrimas. Críticas amargas me deixavam de cama. Espetáculos fracassados me causavam gastrites. Rejeições me faziam rolar pelo chão de sofrimento. Gosto de grana, dou valor às críticas, adoro um prêmio, acho ótimo ter o trabalho reconhecido, e continuo romântico. Mas tudo se torna relativo, quando percebe-se que importante mesmo é a vida, com seu fluxo incessante (…) Se estamos aqui é para ser felizes.”

Apaixonado pela vida e ansioso pelo presente, garante que não sente mais saudades da juventude – “tenho a juventude”; que não se preocupa mais com “cabelos ralos, rugas nos olhos e quilos a mais”: “As pessoas que importam de verdade não estão nem aí para isso. Estão ocupadas em viver, em descobrir o que é essencial nelas e nos outros. Descobri essa dádiva esplêndida (…). Agora meu único pedido às forças vivas da Natureza é ter a alegria de envelhecer (…) e, com belas mãos enrugadas, continuar escrevendo histórias (…).”

Polemiza com Paulo Francis que, num artigo, confessa que ficara horrorizado com as cenas baianas de um documentário da ABC sobre o Brasil. “Até as Igrejas Católicas parecem macumbeiras.” Coutinho, que não costuma ouvir calado o que não gosta, responde com idêntico atrevimento em janeiro de 1987: “É impossível deixar sem protesto essa manifestação obtusa e reacionária (…) típica dos intelectuais dessa geração. A cultura africana (…) merece respeito. Viva Gregório de Mattos! Viva Gilberto Gil! Viva a Bahia! E vivam os Orixás, que hão de nos guiar de volta ao Brasil, às nossas raízes e a um outro tempo, sem escravos do capital ou da cultura! Axé!” Em março, combate o turismo predatório: “Por que o adorável Beto Guedes tinha que pôr Lumiar numa música de sucesso? Certos lugares, gato, são como os amores secretos. Revelá-los traz catástrofes.”

No outono de 1987, saúda São Paulo, “onde tudo acontece”: “concertos de música clássica, shows de rock e MPB, vernissages, performances, festivais de dança e cerca de 30 espetáculos teatrais: “No musical Alice que delícia, a glamourosa Maria Della Costa volta à cena, cantando e dançando o texto de Bivar (…) No popular do Sesi, um Shakespeare aquático, em que atores submersos fazem Muito Barulho por Nada na piscina. A diva Fernanda Montenegro mostra a tragédia de Fedra, enquanto Bibi Ferreira dirige a epopeia italiana de Meno Male (…) Lúcia Veríssimo (…) faz Black Out. Machado de Assis está no Bixiga, numa adaptação de Geraldinho Carneiro e Edgar Allan Poe é encenado pela família Goulart. Fagundes apresenta com sucesso a superprodução Nostradamus, com raio laser, palco giratório, dezenas de cenários e figurinos (…). Na porta do teatro encontro Plínio Marcos vendendo seus livros a dez cruzados. Emocionado, saúdo este profeta das ruas e herói do nosso teatro, em sua impressionante integridade. Outro mago, o adorável Fauzi Arap, levita em Metrópolis. Dois espetáculos me arrebatam. Lilith, a Lua Negra, de José Possi, surpreendente beleza plástica e poética. E Pássaro do poente, adaptação de uma lenda japonesa por Carlos Alberto Soffredini (…). Este trabalho do grupo Ponkã, de deslumbrante vitalidade, revela uma interpretação magnífica de Paulo Yutaka (…).”

(…) A uma hora do Rio, Sampa é um outro país”. Mas o Rio – “continua lindo e acolhedor” -, permanece em seu coração: “Bairrismo é out. No eixo, amo Rio, Bahia e Sampa. Entre todas, meu coração balança”.

Defende com paixão e veemência as religiões afro-brasileiras (Os olhos de Xangô, junho de 1988), lamentando “as crescentes perseguições e discriminações e os recentes casos de agressão” de proporções alarmantes: “É interessante questionar em que medida os órgãos de comunicação têm incentivado esse avanço da intolerância religiosa. Inúmeras rádios e emissoras de TV têm sido compradas por evangélicos, com vultuosas somas americanas, bombardeando a população com pregações contra o Candomblé e a Umbanda. Ao lado disto, emissoras de maior audiência têm veiculado em suas novelas imagens negativas, distorcidas e estereotipadas dos cultos afro. A TV Manchete abriu espaço para que Darlene Glória, na novela Carmen, desfechasse ataques contra a religião dos Orixás, chegando a quebrar imagens no vídeo. Sabe-se que os antigos pecadores são os piores moralistas.”

Em outubro do mesmo ano, 1988, presencia um assassinato no Baixo Leblon e relata com horror e emoção os últimos momentos da vida de um rapaz num cenário “baby boom, point de adolescentes”: “Não são apenas os morros que descem cobrando da cidade o preço de sua miséria. Os assaltos, que frequentam as casas com intimidade, já não visam apenas objetos. O cidadão é assaltado em sua dignidade (…) Diante do caos há quem culpe a democracia, como se democracia houvesse, e peça a volta dos militares. Quando foram exatamente fascismo e corrupção que criaram essas mentalidades predatórias. A crise é estrutural. A solução não é menos, mas real democracia. E implica em mudanças não só econômicas, mas de comportamento (…). Os moços que hoje têm vinte anos nasceram em 68, quando sonhávamos mudar o mundo. O que fazemos nós, que vemos o sangue jovem ser derramado junto à mesa de jantar? Nós, que amávamos tanto a revolução, e que amamos a vida e a juventude?”

No final de janeiro de 1989, ao lado do poeta Geraldo Carneiro e do cineasta Silvio Tendler, participa de um debate promovido pelo Jornal do Brasil (Quem matou quem?) sobre o manifesto de 181 artistas e intelectuais que denunciam a morte recente de cineastas brasileiros como assassinato cultural: ” No país do vale-tudo, a realidade supera a ficção: há assassinatos sem assassinos. É a secular consagração da impunidade (…). O povo brasileiro é assassinado a cada dia, por fome, miséria, corrupção. O genocídio assume várias formas. A bala, como Chico Mendes. Por afogamento, como Yara Amaral. Por transfusão de sangue, como Henfil. Há formas lentas de matar. Se os artistas são intérpretes de sua época (…), é compreensível que estejam na linha de frente do pelotão de fuzilamento. Este assassinato é mais sórdido, porque camuflado. O tiro é seco, silencioso, traiçoeiro. A bala é tumor, vírus ou coração. Leva anos para derrubar um homem.

O que o manifesto questiona é a qualidade dessa produção, e a marginalização de grandes talentos criadores do mercado de trabalho (…) Roteiros guardados anos a fio, falta de verbas, longas e infrutíferas batalhas por financiamentos, má distribuição, críticas superficiais e adversas. No teatro ocorre o mesmo: Paulo Pontes e Vianinha morreram jovens. Onde estão Zé Vicente e Isabel Câmara? Novos autores são recebidos a pedradas por uma crítica furiosa, sedenta de estraçalhar qualquer sinal de vida inteligente. O Brasil é um país que despreza seus artistas, exceto a grife exclusiva dos eleitos pela moda.”

Poesia

Dramaturgo, diretor, produtor … e poeta! Abecedário é o título que ele dá ao seu projeto Eletropoesia, apresentado diariamente em dezembro de 1988 no Centro Cultural Cândido Mendes. A apresentação vai das 10 às 20 horas e permanece em cartaz do dia 3 até o dia 30 de dezembro. Adoraríamos ter tido acesso a alguns dos poemas do autor, por isso voltamos a recorrer aos nossos leitores. Quem sabe alguns de vocês tenham guardado, entre tantas recordações, versos de Paulo?

Outra Atividades

Em janeiro de 1995, a nova diretoria da Sbat – Sociedade Brasileira de Autores Teatrais – assume seu mandato cheia de planos. Entre  eles, auditoria geral da entidade, reforma dos estatutos, realização de um Encontro Nacional de Dramaturgos e criação da Editora do Autor Nacional. Cumprindo mandatos provisórios, a nova diretoria é formada por Cesar Vieira e João Bethencourt  (presidente e vice-presidente), Tannah Correa (Tesoureiro), Zeno Wilde (diretor de patrimônio), Paulo Cesar Coutinho (direção de relações internas), Alcione Araújo (diretor de relações internacionais) e Bemvindo Siqueira (diretor de audiovisual).

Paulo é um homem engajado. Mas seu compromisso com as questões sociais do país não o impede de manter uma vida social e cultural intensa. Participa das festas, frequenta teatros e restaurantes: além da Donnanna, em Copacabana, indica o Antiquarius, no Leblon, e o Alho e Óleo, no Flamengo. No primeiro, não dispensa o bacalhau da casa, “desfiado com arroz que desmancha na boca, ou o salmão grelhado com couve de Bruxelas, batatas cozidas e molho de manteiga, digno de um viking”. Para beber? “O português João Pires. E, de sobremesa, “toucinho do céu.” No segundo, sugere aos leitores do JB “o papardelli ao ragu de anatra, massa verde e branca com molho de pato desfiado, ou o estellini à moda, massa de estrelinhas com molho rosé, camarões e badejo cortados aos pedaços. De sobremesa, pera cozida com vinho branco e calda de chocolate”. Chiquérrimo.

Em abril de 1992, é um dos convidados de Tônia Carreiro, que “abre os salões de sua casa na Gávea” para um jantar de despedida ao presidente da Shell, Robert Broughton, que volta à Inglaterra, “sua terra natal e sede da empresa de petróleo, levando a imagem de mais que um que um executivo de uma multinacional. Nos seis anos de gestão, Broughton foi um agitador cultural que seduziu os artistas do Rio e de SP”, escreve Márcia Cezimbra em sua coluna no JB, O camarada dos artistas vai embora. Segundo a jornalista, “uma simpatia conquistada pelo temperamento brasileiro aprimorado em anos de militância mangueirense, nas 11 edições do Prêmio Shell de Música e nas 4 do Prêmio Shell para o Teatro, além dos incontáveis patrocínios de montagens teatrais”.
O jantar atravessa a madrugada e, além de Paulo, estão presentes o secretário de cultura do governo federal, Sérgio Paulo Rouanet, o escritor Antônio Callado, Mauro Rasi, Moacyr Góes, Luis Arthur Nunes, Marieta Severo, Vera Holtz, Paulo Betti e José Lewgoy. Broughton voltava para casa onde receberia medalha aristocrática da Rainha da Inglaterra, “pelos serviços prestados ao país durante sua temporada brasileira. Homenagem que veio depois da prestada pela Estação Primeira da Mangueira, que o honrou com uma “comenda da nobreza do samba”.

Sua atividade cultural também inclui outras atividades. Em 1990, escreve o roteiro da festa de entrega de prêmios da APETEST (Associação Paulista de Empresários Teatrais). Detalhe: inteiramente escrita em versos, a cerimônia homenageia os 40 anos de atividades teatrais de Maria Clara Machado e Paulo Autran. No mesmo ano, em julho, é um dos jurados do Festival Novos Talentos do Teatro Benjamin Constant. Junto com ele, o produtor Rodrigo Farias Lima e o ator Anselmo Vasconcelos.

O Encontro Nacional de Teatro, em Salvador, promovido pela Fundação Cultural do Estado da Bahia e da Fundação Gregório de Matos em setembro de 1991, reúne diversos artistas brasileiros, como o diretor cearense Ricardo Guilherme, o crítico paulista Edélcio Mostaço, o produtor Lenine Tavares, o diretor baiano Paulo Dourado, a autora baiana Cleise Mendes, o diretor paulista José Possi Neto, Valéria Peixoto do Ibac e Paulo Cesar Coutinho. Na pauta, “tendências do teatro brasileiro (do teatro besteirol à diluição dos grupos jovens de criação coletiva, além das transformações e novas formas do texto dramático) e o perfil do teatro baiano”.

Em 1995, é um dos jurados do Concurso Stanislaw Ponte Preta da Rioarte (Instituto Municipal de Arte e Cultura), “que aceita trabalhos nas áreas de poesia, crônica, conto, novela, dramaturgia e teledramaturgia. Além dele, fazem parte da comissão julgadora, Antônio Torres, João Gilberto Noll, Sergio Sant’Anna, Ivan Junqueira, Armando Freitas Filho, Geraldo Carneiro, Denise Bandeira, Marcílio Moraes e Emilio di Biasi.

A Política

Aristóteles já dizia que todo homem é, por natureza, um animal político. Acredito que alguns estendam essa postura para além do horizonte mais próximo, tornando-se não apenas atuantes em termos de discurso e mobilização, mas filiando-se a partidos com quem comungam ideais e princípios. Assim como inúmeros outros artistas, Paulo liga-se concreta e afetivamente ao PT, atuando como um dos coordenadores do projeto de cultura do partido: “O PT é um partido estrela, com ascendente em Aquário, que viaja no amanhã. Os artistas do PT são flores de um jardim. Todo petista é um artista do novo”.

Em julho de 1997, numa nota publicada no JB, lemos que “pelo menos na Shell, multinacional do petróleo, o candidato do PT, Luiz Inácio da Silva, não mete medo. A empresa é receptiva e está disposta a criar e manter um centro cultural no Rio, caso o candidato se eleja. A proposta é de Paulo Cesar Coutinho: o governo federal entraria com um terreno e a Shell com o dinheiro”.

Sabemos que tal projeto não vingou. Nem candidato se elegeu, nem centro cultural se concretizou. Nas eleições de 1989, muitos são os candidatos. Entre eles, Leonel Brizola, Aureliano Chaves, Ulysses Guimarães, Fernando Gabeira, Mario Covas, Paulo Maluf, Roberto Freire, Ronaldo Caiado…. Vão para o segundo turno Fernando Collor de Mello e Luiz Inácio Lula da Silva numa disputa acirrada e apaixonada, que divide eleitores e a própria classe artística.

Na matéria do dia 22 de novembro, Artistas no Palanque, o subtítulo alerta: “No calor da campanha eleitoral alguns artistas podem se queimar”. É o que acontece com Elba Ramalho, que chegou a assinar “contrato para shows em comícios de Collor sem imaginar a censura de alguns de seus compositores favoritos (…) Ela vira Roberto Freire, depois Leonel Brizola (…), mas essa instabilidade eleitoral prejudicou as vendas do seu LP (…)” A atriz Claudia Raia também sai chamuscada, mas o caso mais emblemático, que provoca discussões, debates e manifestos acalorados entre os próprios artistas, é o de Marília Pera.

Embora tenha sido alvo do CCC (Comando de Caça aos Comunistas) quando atuava na peça Roda Viva, de Chico Buarque, em 1968, é “duramente criticada” por seus colegas por ter aderido à campanha do então Marajá das Alagoas: “Poucos dias antes da eleição, na saída do Teatro Jardel Filho, no qual se apresentava com o espetáculo Elas por Ela, Marília é cercada por uma passeata de petistas (…) usando microfones (…) para protestar (…) e ameaçar (…) aos berros e com palavrões (…)”

Marília se assusta com a multidão, que calcula em “milhares de pessoas”. Indignada, Fernanda Montenegro vem em seu socorro através de um manifesto: “Esperamos 30 anos pela possibilidade de convivermos harmoniosamente com as divergências dos nossos credos (…). É assustador constatarmos o ressurgimento dos “comandos de caça”, de direita ou de esquerda, que patrulham, espancam e amedrontam os cidadãos desse país já tão sofrido. Esse documento tem como base apoiar e defender o direito de cada um de nós se pronunciar livremente. Lamentamos e repudiamos a agressão política sofrida pela atriz Marília Pera, artista que honra e ilumina a cultura brasileira”.

Muitos não assinam. Alguns, com receio do desprezo das patrulhas ideológicas; outros, por “temerem ver o manifesto transformado em peça de propaganda de Collor”. Fernanda retruca, alegando que o manifesto não foi feito “para botar azeitona na empada de qualquer candidato”, mas sim para provocar reflexão sobre a violência da campanha política. E insiste:  “Mesmo que só tenha o meu voto, vou mandar o texto para o comitê dos dois partidos para uma reflexão.”

No dia 24, uma sexta-feira, artistas se reúnem no Teatro Ipanema para aprovar uma resposta ao manifesto já redigida por Paulo Cesar, que ousa comparar Marília ao goleiro chileno Rojas, “aquele que fez o maior escândalo sem levar foguete algum”. Do elenco da peça O Jardim das Cerejeiras, em cartaz no Teatro dos Quatro, André Valli é o único a assinar o manifesto de Fernanda. “Ninguém mais assinou, mas não fui pressionado. Sou solidário a Marília e vou escrever aos jornais uma carta explicando com detalhes a minha posição”. Dito e feito. A carta – Radicalismo – foi publicada no dia 2 de dezembro:

“(…) Quem conhece Marília sabe de sua (…) integridade. Seu apoio público à candidatura Collor foi (…) um ato de coragem, quando todos esperavam sua adesão a qualquer outro candidato, não importava quem, contanto que fosse de esquerda. Do que se chama esquerda (…). Marília é uma atriz que dignifica o Brasil, reconhecida e premiada internacionalmente (…). Não precisa (…) mentir, armar expedientes para aparecer ou fazer sucesso, nem está ganhando ou ganhou coisa alguma (…). O que dizem que não aconteceu em SP, a violência de alguns petistas na porta do teatro onde ela representa (…) é comando de caça sim. É fascismo, sim. Ou será que é preciso levar porrada para só então ser considerada violência? Não posso aceitar isso. Como também não posso aceitar que os que se dizem intelectuais de esquerda, que vários colegas de profissão (…) e que alguns jornalistas resolvam patrulhar e reprimir. A gente já viveu isso, e nem foi há tanto tempo (…). Tenho medo outra vez do que possa nos acontecer (…). Enquanto o ser humano não respeitar o seu semelhante, nenhum tipo de democracia existirá (…) Não pode mais ter nenhuma espécie de censura. Nunca mais!”

Dez dias depois, no dia 12 de dezembro, a resposta do autor – “Marília e Rojas” – vinha publicada na mesma seção de cartas e assinada por Paulo Cesar Coutinho, “42 anos, carioca, autor de teatro e integrante da equipe de Cultura do governo de transição da Frente Brasil Popular”.

“(…) Sou totalmente a favor da liberdade de expressão (…) conheço a repressão na pele, como ser humano e profissional. Perdi amigos na resistência à ditadura, outros foram torturados e passaram muitos anos na cadeia. Em 78, éramos umas 20 pessoas que se reuniam na Casa do Estudante, criando o Comitê Brasileiro de Anistia no Rio de Janeiro, que mais tarde empolgou o país todo. Em 80, participava no Rio das discussões para a fundação do PT, com origem no movimento operário do ABC paulista. O nosso partidinho (…) tornou-se esse partido de massas que concorre à Presidência. E no qual muito me orgulho de atuar.

Relembro esses fatos para esclarecer que, no caso atual da atriz Marilia Pera, o que está e jogo não é a liberdade de expressão (…) o que existe são versões diversas do ocorrido.

No dia 12 de novembro, após o comício do Lula em SP, saiu uma passeata. Em seu caminho natural, passou pela porta do teatro onde a atriz se apresenta. Houve vaias (…). Alguns militantes, em vez de palavras de ordem, disseram palavrões de ordem (…) faz parte da verve brasileira (…) Foi indelicado, mas não foi bárbaro, nem ameaçador. Havia milhares de pessoas, mas ninguém sofreu um arranhão, nenhum vidro foi quebrado, o teatro não foi tocado. Parece-me pacífica essa “horda de vândalos”. (…) Todos têm o direito e o dever de participar. A coisa fica grave, e condenável, quando se distorce um acontecimento de campanha. É um gesto que difama não só o candidato, mas seu partido, seus militantes e como tal me sinto atingido. É golpe publicitário e tem que ser desmistificado (…). Fomos comparados ao Comando de Caça aos Comunistas. Marília disse aos amigos que se trancou no camarim com as filhas, temendo pela própria vida. Ora, por favor! (…). Parece Maria Antonieta em Versalhes ameaçada pela turba revolucionária. Não há nenhuma revolução em curso. É só uma eleição (…). Marília discorre longamente sobre as qualidades do seu candidato e as vilanias do seu opositor. Sinto muito, mas isso é política. Vamos, portanto, discuti-la sem disfarces. As forças democráticas e progressistas precisam estar unidas, para fazer deste país um palco iluminado, de homens livres, justos e felizes, que possam sempre aplaudir, vaiar, chorar e rir. Viva a liberdade!  (…)”

Apesar da derrota de Lula, artistas ligados ao Partido dos Trabalhadores não se desmobilizam. No jornal O liberal (Belém, 28 de novembro), uma notícia informa que membros da classe artística decidem organizar um governo popular paralelo, cujas principais áreas de atuação seriam a cultura e a justiça: “Nossa principal preocupação é dar voz aos anseios de mais de 30 milhões de eleitores que serão esquecidos pelo futuro governo”, sentencia Augusto Boal. Na mesma reportagem, Paulo Cesar fala da criação das Comunidades Artísticas de Base, “uma espécie de reedição dos antigos CPCs e das “brigadas culturais” que serão grupos de artistas itinerantes viajando pelas cidades dos seus próprios Estados e promovendo festivais políticos e culturais”

Em janeiro de 1990, a jornalista Nani Rubin escreve no caderno B: “Depois da ressaca eleitoral que assolou a classe artística, praticamente toda engajada na campanha de Lula no segundo turno, um clima de O sonho não acabou tem funcionado como a aspirina salvadora do dia seguinte. Explica-se: encantados com o movimento que conseguiu aglutinar as pessoas em torno do candidato derrotado, aristas e intelectuais cariocas estão lançando a semente de um movimento de ação cultural, suprapartidário, multidisciplinar, e principalmente hiper-afinado com a realidade dos anos 90. Prefixos à parte, 120 deles se reuniram no teatro Casa Grande na noite de terça para formar grupos de trabalho que ponham logo a teoria em prática (…)”

Paulo Cesar de Sá Coutinho, canceriano com ascendente em Peixes, nasceu a 1 de julho de 1947 no Rio de Janeiro, e faleceu na mesma cidade no dia 1 de agosto de 1996. Deixando saudades, amigos e uma obra que precisa e merece se manter viva.

1971 – Hoje é Dia Roque, de José Vicente, direção Rubens Correia, Teatro Ipanema



1980 – Queridos Monstrinhos, direção Chico Terto, Teatro Casa Grande
1980 – Queridos Monstrinhos, direção David Pinheiro, Teatro Ipanema
1981 – Viagem de Caravela, direção Chico Terto, Escola de Artes Visuais do Parque Lage
1981 – Te Amo Amazônia, direção Chico Terto, Teatro do Planetário da Gávea
1982 – Queridos Monstrinhos, direção Ivone Hoffman, Teatro Guaira (Curitiba)
1982 – Dom Quixote, adaptação a partir de Miguel de Cervantes, direção Pedro Piamzo, Teatro da Galeria
1984 – A Flauta de Pã, direção Michel Robin, Teatro de Bolso Aurimar Rocha
1985 – O Unicórnio, direção Jorge Ayer, Teatro Delfin
1986 – Menino do Egito, direção Carlos Wilson Silveira (Damião), Teatro Glauce Rocha
1992 – Queridos Monstrinhos, direção Leonardo Franco, Teatro da Praia
1995 – A Bela Aborrecida, direção Edwin Luisi, Teatro Vannucci

1983 – A Lira dos Vinte Anos, direção Tomil Gonçalves, Teatro do Bolso
1984 – Encouraçado Botequim, direção Renato Coutinho, Teatro Villa-Lobos
1985 – Honey Baby – Era uma Vez no Anos 70, direção Jacqueline Laurence, Teatro Dulcina
1987 – Um Piano à Luz da Lua, direção Cecil Thiré. Teatro Villa-Lobos
1997 – A Lira dos Vinte Anos, direção Isabella Secchin, Teatro da Universidade Gama Filho
1999 – A Noite do Meu Bem, direção Francis Meyer, Teatro Posto 6
2000 – A Lira dos Vinte Anos, direção Anacleto Carindé, Teatro SESI

1988 – Vida de Artista, direção conjunta com Thiago Santiago, Teatro Cândido Mendes
1992 – Lucrécia – O Veneno dos Bórgia, Casa de Cultura Laura Alvim
1995 – A Serpente de Plumas, Teatro do SESI

(*) Escritora, dramaturga e roteirista, dezembro de 2018.