Crítica publicada no O Globo
Por Macksen Luiz – Rio de Janeiro – Set 1975

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Poesia na metade do caminho

Da Metade do Caminho ao País do Último Círculo, em sua versão para adultos, não abdica da linguagem poética tão familiar a Ilo Krugli. Para ele o acontecimento teatral é intrinsecamente um fato poético que se desencadeia através da simplicidade de um marionete ou do movimento de um lenço colorido. Perseguindo a poética dos objetos comuns, Ilo Krugli tem demonstrado sua fidelidade a um tipo de pesquisa dramática um tanto rara no teatro brasileiro. Em Histórias de Lenços e Ventos, ao contar a história de um lenço desgarrado de um varal de roupas, soube captar a necessária simplicidade deste fio de trama e transformá-lo em imagens ricas e intensamente comunicativas. Agora, num prolongamento deste trabalho, Ilo e seu grupo de saltimbancos tentaram cristalizar esta proposta, desdobrando o espetáculo em duas versões para que fossem medidas as reações de plateias específicas (adulta e infantil) a um mesmo núcleo de espetáculo. A ideia, instigante pelo que traz de desafio e invenção, seduz pela generosidade de caminhos que propõe e de questões que coloca à pesquisa do espetáculo.

Entre esses caminhos o que parece o mais frutificador é o do mergulho poético, ao nível do texto e do espetáculo. A extrema singeleza de Histórias de Lenços e Ventos prometia para este Metade do Caminho a repetição da mesma sinceridade que fazia daquela montagem infantil adulta ao mesmo tempo universal e ingênua. A poesia não desapareceu, mas foi levada a um grau de exacerbação visual que, muitas vezes, compromete a recepção do texto. A leitura dos diálogos provavelmente desmentiria esta impressão, já que o entrecho em si é bastante simples. Mas na leitura cênica há tantas circunvoluções em torno desta base dramática, essencial em sua economia de palavras, que  o que é dito em cena fica sufocado, reaparecendo em alguns e raros momentos. Neste sentido, Ilo foi extremamente coerente com sua pesquisa, retomando temas esboçados nos Lenços, como algumas figuras de marionetes, a existência de países labirínticos e perfis semelhantes de personagens. Este veio poético-gestual se não é único em nossa dramaturgia, pelo menos tem sido insuficientemente explorado pelos autores e encenadores. Ilo, na condição de diretor de seu próprio texto, teve possibilidades de experimentar esta interpenetração de funções, decidindo privilegiar o espetáculo. É difícil, no entanto, imaginar este Da Metade do Caminho ao País do Último Círculo com outro diretor que não ele, já que a escrita do texto é quase simultânea ao fazer do espetáculo. A forma redonda exigida pela montagem – é bom lembrar que são dois espetáculos baseados no mesmo texto para plateias diferentes – fechou o texto dentro dessa estrutura, tornando-o um tanto apático e confuso, o que não esconde totalmente a sua forte carga poética e um tom agridoce de denúncia.

Na transposição do papel ao palco, o grupo de menestréis que canta a magia “que transforma todo o universo” ganhou tantas cores e movimentos, mas parece ter perdido o sopro vital que faz o Gigante Azul sorrir e chorar e os jovens a se recusarem a aderir ao País do Sim e do Não. Como saltimbancos de uma feira medieval esse grupo de menestréis chama a plateia para sua tenda mágica, aliciando-a com seus cantos, seus objetos e sua sinceridade. O contraponto dramático representado por dois personagens (justamente os reis do País do Sim e do Não) é um recurso inteligente para manter ativo o interesse do público, mas que em grande parte é desviado pelo excesso de sugestões visuais. O espetáculo deixa transparecer o amor de Ilo Krugli por sua criação, que o fez incapaz de avaliar com precisão o tempo exato de cada cena e impediu que abrisse mão de ideias pertinentes se consideradas isoladamente, mas que se tornam repetitivas vistas no conjunto.

O primeiro ato da versão adulta atinge o limite exato de tempo e de comunicabilidade, com uma correspondência precisa entre imagem e texto. Mas esta exatidão é perdida na segunda parte, quando o espetáculo se torna recorrente por sua incapacidade em usar da simplicidade e por sua falta de confiança na própria clareza. Ao hesitar em ser simples, Ilo construiu um castelo de muitas faces, solidamente enraizado, mas que não possui um conjunto harmonioso. O fato de Da Metade do Caminho ao País do Último Círculo ter também uma versão para crianças, que se utiliza da mesma estrutura dramática, subvertendo completamente sua ordem de apresentação de uma sessão para outra, pode ter contribuído em parte para este aspecto inacabado e barroco.

Os atores se comportam com uma garra e entusiasmo irrepreensíveis. Sílvia Heller, Ilo Krugli, Sílvia Aderne e Pedro Veras se destacam, ainda que o restante do elenco não se omita, sobretudo nos momentos de cantar – a qualidade vocal é incomum nos palcos cariocas – e de se entregar a verdadeira maratona corporal durante as duas horas de espetáculo. O trabalho dos compositores Beto Coimbra e Caíque Botkay, assessorados por Ian Guest, é cativante, atingindo a comunicabilidade que às vezes o espetáculo não alcança.

É evidente que a própria linguagem poética proposta por Ilo – quando muitas vezes os objetos ganham um sentido dramático tão importante quanto os atores – está ainda em processo de elaboração, bem distante de uma sedimentação estilística. Em relação a Histórias de Lenços e Ventos – e a comparação é inevitável – este Da Metade do Caminho ao País do Último Círculo representa de certa forma um avanço no processo da pesquisa, mas um retrocesso como resultado final.  De qualquer maneira, é um espetáculo comovente que apenas não soube equilibrar o tanto que pretende dizer com o quanto é possível fazê-lo.

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Crianças e adultos juntos no País do Último Círculo, matéria de Norma Couri
Da Metade do Caminho ao País do Último Círculo, crítica de Ana Maria Machado