Matéria publicada no Jornal do Brasil
Por Norma Couri – Rio de Janeiro – Set 1975
Crianças e Adultos Juntos no País do Último Círculo
Como a gente está sempre na metade do caminho, é daí mesmo que se dá a partida para todos os círculos. Como o último círculo está para as crianças num ponto do universo e para os adultos exatamente noutro, a longa caminhada Da Metade do Caminho Até o País do Último Círculo, apesar de ser a mesma, pode ser muito diferente, dependendo dos olhos que a veem e dos pés que a percorrem.
Por isso os personagens da peça de Ilo Krugli (Grupo VentoForte) – que estreou sábado no Museu de Arte Moderna sala Corpo Som – são mais ou menos fantasiosos, mais ou menos trágicos, mais ou menos lógicos, mais ou menos reais, mais ou menos mágicos. De acordo com a composição da plateia que – pelo menos como é concebida convencionalmente, pois as reações tem-se apresentado as mais invertidas – à tarde é de crianças e à noite de adultos.
O texto que se manteve praticamente inalterado para uma e outra sessão sofre modificações, para grande pesar do mágico Ilo Krugli que o escreveu, interpretou, dirigiu e digeriu. Como por exemplo, a troca do prólogo das crianças, que se torna o epílogo dos adultos (“em teatro, a ordem dos fatores altera o produto”), a ausência da morte à tarde e a sua indispensável presença à noite, (“Isso é o mais terrível da história dos adultos: eles aceitam que a morte esteja até o fim ao seu lado”), e a inclusão de um Teatrinho de Bonecos, o Teatro Mágico Pedagógico. Mas este na sessão dos adultos, que, naturalmente, precisa muito mais dele.
“Até que ponto o que criamos para a criança não é uma mera apreciação sensível e paternalista do que ela é ou a nossa visão da vida que queremos oferecer ou impor à ela? Este trabalho é de indagação: o que é a criança, o que é o adulto?”
Ilo Krugli
Pois desta vez deu-se a inversão: esta peça, a terceira de Ilo – “as outras duas eram sempre montadas em cima do espaço da peça que à noite seria apresentada para os adultos” – foi primeiro elaborada para as crianças, só então desdobrada para os adultos.
Mas como colocar a morte para as crianças? Como diz um dos personagens, “era impossível fazer essa viagem sem ela: ela nos ameaçaria de qualquer jeito, de longe”. É possível fazer a criança entender a vida sem a ameaça da morte? O País do Sim sem o País do Não?
– Quando escrevi a peça ainda não sabia por que a morte não deveria existir na peça infantil, diz Ilo Krugli, na peça um mágico fazendo labirintos coloridos, na vida real um mágico fazendo teatro infantil. Agora eu sei. A criança se identifica com o personagem e, se ele morrer, todo o seu processo de vivência ficará traumatizado. Mas o adulto altera suas identificações mais facilmente. Assim, João morre no País da Guerra, e no adulto a gente pode jogar essa responsabilidade. Não é ele quem faz as guerras?
Embora os círculos permaneçam em “antítese” – o País do Sim, o País do Não, o País do Silêncio, o País das Maquinas e Relógios – a peça infantil é bem mais linear, já que a outra segue a (ilegível), homenzinho racionalista (“não queríamos que esse homenzinho destruísse a nossa vontade de ver tudo o que é novo e diferente”), as três crianças, Nina, João João e Ibeji tentando chegar ao último círculo e os mágicos inventando tudo, transformando e dando vida ao que não tem. Todos presos “por um fio de ouro”, tecendo esperança de dia e, de noite, “quando falta fôlego e certeza”, tecendo incertezas.
“Com a criança talvez sejamos inquietantemente generosos e com o adulto respeitosamente indulgente. Mas a verdade é que suspeitamos que há uma linguagem, que nasce de uma ponte e vai a outra, da criança ao adulto…O espetáculo das crianças foi a procura de um centro (que integre e irradie) através dos símbolos que se opõem ao convencionado estético, chegando através da fantasia e do afeto. O do adulto foi um doloroso encontro com a criança dividida e frustrada no conceito e a liberdade de escolha”.
Ilo Krugli
Um adolescente que assistiu às duas montagens, numa experiência do grupo antes da estreia, disse: “Gostei. Primeiro, porque disse coisas que eu não sabia. Segundo, porque disse coisas que eu sabia. Terceiro, porque disse coisas que vocês próprios não sabiam”.
– Isso é verdade, diz o grupo reunido no palco enquanto corta e recorta papéis para o cenário artesanalmente feito a cada sessão. Foi um processo de descoberta interior para todos. Uma busca individual de significados e símbolos inconscientes.
Porque de símbolos o espetáculo está cheio, e descobrir, descubra-os quem puder, principalmente se for adulto. Por que guardar a morte dentro da gaiola? Por que cavar a terra na hora da morte, adultos em posição de criança que começa a engatinhar? Por que as vendas nos olhos para entrar nos labirintos? Por que a lágrima do gigante?
De qualquer forma, é fácil saber por que o homenzinho racional – embora muitas vezes não mude uma só palavra de sua fala – é muito mais violento à noite, enquanto joga exaltado o seu jogo (perdido) de ser ao mesmo tempo do País do Sim e do País do Não. (“Todo mundo é um pouco de cada coisa, diz o Homenzinho, Pedro Vera. Daí eu tirar parte da maquilagem na hora do último círculo”). E mesmo que não fosse valeria a longa caminhada. Desde que, como diz Ilo, “ao mesmo tempo em que fico frustrado por ter de ressuscitar João João para as crianças, acho que estamos oferecendo à ela algo muito honesto: um mundo que não é ideal mas é muito o mundo dela., que felizmente não alcançou o do adulto”.
Enquanto ele obriga o adulto a ver um teatrinho de bonecos, onde a verdade aparece em todas as suas formas: eterna, nua e crua, triste, nova, aparente, sublime. Lá o espectador, que passa a vida procurando assumi-las (“eu gostava tanto da verdade que não podia viver sem ela, assim como me apaixonava por verdade nova que surgia”, diz o boneco), percebo com doido sarcasmo, já não ser criança e estar bastante inconsequente com a sua liberdade, como previu Ilo.
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