Texto e Pesquisa: Álvaro de Sá (*)
Yan Michalski e o Teatro Tablado
1948. Três anos após o término da Segunda Guerra Mundial um jovem de origem polonesa chamado Jan Majzner Michalski desembarca no porto da cidade de São Sebastião do Rio de Janeiro.
Foi um ano extremamente importante para o teatro brasileiro. O Teatro do Estudante do Brasil – fundado por Paschoal Carlos Magno – completava 10 anos de atividades artísticas e apresentava para o público carioca que lotou o Teatro Fênix a sua versão da peça Hamlet, de Shakespeare. A encenação de Hoffmann Harnish é bastante elogiada, mas tanto a plateia, quando a crítica, são enfáticas ao aclamar o jovem ator que interpretava o papel principal: Sérgio Cardoso. Mas, se o Rio de Janeiro ficou em polvorosa depois da montagem de Hamlet pelo Teatro do Estudante, a cidade de São Paulo também está passando por um frisson, pois nesse mesmo ano é inaugurado um novo teatro na cidade – o Teatro Brasileiro de Comédia.
No dia 11 de outubro de 1948, sob os olhares de uma plateia paulista sofisticada, a atriz Henriette Morineau – atriz principal da companhia carioca Os Artistas Unidos – representa em francês o monólogo de Jean Cocteau: La Voix Humaine. A ideia de Franco Zampari – fundador e mecenas do Teatro Brasileiro de Comédia – era criar em São Paulo uma casa de espetáculos que pudesse abrigar as encenações de vanguarda dos jovens amadores do Grupo de Teatro Experimental – que contava com a participação da atriz Cacilda Becker, do Grupo Universitário de Teatro e do Grupo de Artistas Amadores. O impacto das montagens extremamente bem cuidadas do TBC sobre o público paulista consolidaria definitivamente, a importância dos atores amadores no Brasil.
Em 1948, o teatro infantil brasileiro também passa por uma transformação profunda. Lúcia Benedetti depois de assistir a apresentação da peça Juca e Chico, montada por uma companhia Austríaca, resolve escrever o texto O Casaco Encantado. Paschoal Carlos Magno ficou encantado pela peça e convida o grupo dos Artistas Unidos para encenar o texto. Henriette Morineau encarna no espetáculo a bruxa Josefina, e a companhia dos Artistas Unidos se encarrega de espalhar uma novidade: a montagem de um texto de “teatro infantil”. A montagem foi um sucesso retumbante, atraindo a atenção da crítica, do público, dos intelectuais – segundo a própria Lúcia Benedetti: “tinha sido lançado o teatro para crianças fora dos moldes habituais. Nem escolar, nem amadorístico, mas o teatro como espetáculo de arte”.
É exatamente no dia 26 de Julho de 1948, às 5 horas da tarde que o Vapor Jamaique, vindo do porto Francês Le Havre atraca no Rio de Janeiro. Na lista de passageiros da primeira classe consta o nome do jovem polonês de 16 anos de idade Jan Majzner Michalski. Ele nos narra o seguinte sobre os acontecimentos ocorridos com a sua família durante a Segunda Guerra mundial: “o início da guerra de 1939, viajamos para Lodz, onde permanecemos, ao lado dos meus avôs maternos, até a capitulação da Polônia. Posteriormente, retornamos a Czestochowa – cidade natal de Jan – onde prosseguimos, até Outubro de 1940, a nossa existência normal, dentro das limitações impostas pela ocupação.
Avisados da próxima criação do guetto em Czestochova, os meus pais entraram em contato com a senhora Weronika Sofia Batawia (…) que conseguiu para mim o nome de Jan Michalski (…) e veio buscar- me em Czestochowa, levando- me para Varsóvia. (…) Os meus pais foram para o guetto (…) Nunca mais os vi, e a única coisa que sei é que foram deportados e mortos pelos ocupantes alemães.
Eu fiquei escondido no apartamento da senhora Batawia (…) em consequência de uma denúncia, tivemos de deixar às pressas o apartamento (…) esta levou-me, então, para casa de conhecidos (…) na aldeia de Rusinów, na região de Radon. Lá permaneci, escondendo de todos a minha verdadeira identidade, até a conquista da Polônia pelo exército soviético, em janeiro de 1945. Logo que as viagens se tornaram possíveis (…) estabelece contato com a família Tempel – os tios Hipolit e Sofia na Suíça. (…) A situação financeira do casal Tempel era bastante difícil (…) sendo assim (…) meus tios resolveram emigrar para o Brasil (…) levando-me consigo. Chegamos ao Rio de Janeiro em 26 de Julho de 1948, a bordo do Vapor Jamaique”.
Em 1948, Jan passa a residir com os tios e a sua prima Helène – que havia emigrado para o Brasil juntamente com o marido em 1947 – em um apartamento na Avenida Rui Barbosa, no bairro do Flamengo e reinicia os seus estudos no colégio Franco-Brasileiro. Com a viagem dos tios e da prima para Belo Horizonte, aceita o convite do senhor Raymond Jaubert – pai de seu amigo da escola – passando a morar com a família Jaubert até 1950, ano que se forma no Baccalauréat de L’Enseignement Secondaire.
Em 1955, um ano depois de Getúlio Vargas Ter escrito na sua carta testamento “saio da vida para entrar na história”, e dos brasileiros terem votado em massa em JK, Jan Michalski continua trabalhando no escritório do Senhor Jaubert. Mas, a convite de um amigo – Jean Pierre Fortin – inicia a sua carreira de ator amador no Teatro Tablado.
Maria Clara Machado, juntamente com seu pai Aníbal Machado, além de Eddy Cintra de Rezende, Isabel Bicalho, Jorge Leão Teixeira, Martim Gonçalves, entre outros, haviam fundado em 1951 no Patronato da Gávea um grupo de teatro amador: O Teatro Tablado – que até hoje é considerado uma das referências mais importantes para o teatro para crianças brasileiro. O grupo se destaca pelo apuro técnico, pela excelente interpretação dos atores e pelos primorosos textos escritos por Maria Clara Machado. O crítico Sábato Magaldi escreveu nesse ano um artigo no Diário Carioca dizendo: “O espetáculo de O Tablado, nas diferentes partes, merece franco aplauso. Eis um grupo amador muito bem orientado e consciente de sua legítima finalidade. Gostaria que seu trabalho fosse mais regular e alcançasse maior público”.
Sobre os seus textos, Maria Clara Machado gostava sempre de comentar: “Quando escrevo uma peça não tenho intenção de fazer nada, escrevo para meu prazer, não sou pedagoga ou mesmo psicóloga, ou melhor posso ser uma psicóloga sem querer (…) Eu acho que a gente não deve ensinar a criança numa peça. A gente deve montar uma peça como se mostra para um adulto: é um conflito, tem de haver um conflito na peça (…) Quando escrevemos para crianças somos apenas aqueles que estão abrindo o caminho que vai do sonho à realidade. Estamos criando, através da arte e a partir do maravilhoso, a oportunidade do menino sentir que a vida pode ser bonita, feia, clara, escura, feita de sonhos e realidades”.
É exatamente nesse grupo de teatro amador que transforma os espetáculos infantis no Brasil que Jan Michalski começa a sua carreira como ator, em 1955. Em 1971, na sua coluna de crítico de teatro do Jornal do Brasil, ele comenta a sua estreia:
“Em Maio de 1955, eu fazia a minha estreia teatral, no proscênio do Tablado, realizando a laboriosamente uns tímidos malabarismos com três bolas de borracha, na cena inicial de O Baile dos Ladrões. Enquanto eu morria de medo de que uma das bolas pudesse cair na cabeça dos espectadores, no outro canto do proscênio, o também estreante Rubens Correia fazia, com religiosa seriedade, alguns exercícios de halteres”.
E nos Cadernos de Teatro número 90, de 1981 ele nos esclarece mais alguns detalhes sobre a sua participação no Tablado:
“Como eu senti que isso estava assumindo uma certa dimensão na minha vida, eu quis estudar teatro. E, por coincidência exatamente nessa época estava sendo criada a Academia de Teatro da Fundação Brasileira de Teatro da Dulcina. Então me inscrevi na primeira turma de direção (…) Paralelamente eu fazia Tablado e estudava direção. E me formei então na primeira turma onde foram meus colegas, o Cláudio Correia e Castro, o Ivan de Albuquerque, o Rubens Correia”.
Jan participou de 13 espetáculos do Teatro Tablado entre 1955 e 1961 exercendo as funções de ator, assistente de direção e diretor.
Em 1957, Maria Clara Machado dirige o seu texto O Embarque de Noé, que denomina como uma farsa bíblica. Nesse espetáculo vemos Jan encarnar a personagem do pinguim – que sem emitir uma palavra sequer, espera pela chegada da “pinguinha” para poder embarcar na arca de Noé. A personagem do Pinguim que deixava o pinguim-Jan esperando até o último momento era representada por Elizabeth Galloti. Uma das girafas que também participava dessa farsa bíblica era representava por Bárbara Heliodora. Além da paixão pelo teatro, outro elo unia Jan e Bárbara: A paixão pelo futebol. Os dois torciam fanaticamente pelo Fluminense. Em uma das 29 apresentações da peça ocorreu o seguinte fato narrado por Bárbara Heliodora: “O incidente mais pitoresco que nos aconteceu em matéria de futebol teve lugar quando estávamos ambos trabalhando no espetáculo de Maria Clara Machado O Embarque de Noé, onde ele era o Pinguim que ficava o tempo todo sentado junto à rampa de embarque à espera da Pinguinha, que só chegava à última hora, e eu era uma das Girafas. Estavam jogando Fluminense e Bangu, e o resultado definiria o Campeonato Carioca de 1957, sendo que para ser campeão o Fluminense dependia apenas de um empate. Pois o Bangu fez 1x 0 pouco antes do Yan entrar em cena , e não há dúvida que o triste Pinguim talvez tenha parecido um pouco mais triste do que de costume. Eu só entrava mais tarde e portanto ouvi a transmissão do gol de empate. Sabendo o quanto o Yan devia estar sofrendo, eu aproveitei uma marca na qual a girafa passava perto do Pinguim e , como se fosse um comentário ‘girafal’ grunhi Uuumm – a – uuuum! , e ele passou a esperar a sua companheira com mais tranquilidade.”
Em 1958. Jan Michalski (Vice Bruxo) forma juntamente com o ator Germano Filho (Bruxo Belzebú III) uma “dupla do barulho” na peça A Bruxinha Que Era Boa. No espetáculo esses dois bruxos infernais devem avaliar a perícia das bruxas treinadas pela Bruxa Instrutora – representada por Bárbara Heliodora. “Sua Ruindade Suprema” e seu temível assistente se assustam com o despropósito de uma bruxinha que queria ser boa. A Bruxinha Ângela (Vânia Velloso Borges) se enamora de um ser humano: o menino Pedrinho (Leizor Bronz) e sonha com a bondade. O espetáculo é premiado e o Jornal Correio da Manhã faz o seguinte comentário sobre a peça no dia 22 de Junho de 1958:
“O Tablado e Maria Clara Machado estão de parabéns pelo sucesso alcançado no I Festival de Teatro Infantil, feliz iniciativa de Edmundo Moniz e do SNT, que durante tantos domingos levou as crianças cariocas ao Teatro João Caetano. O júri classificou a peça de Hors Concours”.
1958. Ainda nesse mesmo ano Maria Clara Machado monta no Tablado a sua peça O Rapto das Cebolinhas. A cena se passa na fazenda de um Coronel (Aristeu Berger) que tenta desvendar um terrível mistério: o roubo dos seus pés de cebolinha. O Detetive Camaleão Alface (Fernando José) se propõe a descobrir e prender o criminoso. Suas investigações incriminam o fiel Cachorro Gaspar (Hugo Sandes), mas os netos do coronel – Maneco (Leizor Bronz) e Lúcia (Vânia Velloso Borges), ajudados pelo fiel Burro Simeão (Carlos Sangrillo) e pela gatinha Florípedes (Maria Miranda), se transformam em heróis ao descobrirem que o verdadeiro criminoso é o próprio Camaleão Alface. Jan interpreta o Doutor que vai a fazenda para examinar Gaspar, mas acaba se dando conta que Camaleão Alface tem batimentos cardíacos estranhos e diz: “Nunca escutei um coração tão ruim”. O Doutor – Jan se retira da cena puxando o ladrão por uma corda e a fazenda mergulha mais uma vez na paz e na harmonia, pois, Tudo Está Bem Quando Termina Bem.
Em 1960, Maria Clara Machado encena no Tablado a sua peça O Cavalinho Azul, que até hoje é considerada um dos seus mais belos textos. O crítico Walmir Ayala escreveu na Revista Leitura:
“Maria Clara Machado realiza n’O Tablado um espetáculo visual de rara beleza. Seu teatro infantil tangencia a obra de arte e é muito mais do que um espetáculo crianças.(…) Tudo confere a O Cavalinho Azul um lugar de destaque no nosso panorama teatral”.
O texto nos mostra a saga do menino Vicente (Claire Isabella) a procura do Cavalinho Azul. Mas nem tudo são flores no percurso feito pelo menino Vicente, porque três vilões atrapalhados – Baixinho (Jan Michalski), Gordo (Luiz de Affonseca) e Alto (Ivan Junqueira) pretendem vender o cavalinho azul para um circo, ficando assim milionários. Mas, depois de tantas trapalhadas, o trio acaba sendo preso por um Cowboy (Núvio Pereira) e Vicente consegue encontrar o seu cavalinho azul. No dia 28 de Maio de 1960, o Jornal do Brasil publica a crítica escrita por Bárbara Heliodora que comenta:
“O Cavalinho Azul, com sua produção de excepcional qualidade plástica, serviria como exemplo dos mais positivos do que o teatro pode ser como adestramento estético do público infantil”.
1963. Jan muda a grafia do seu nome para Yan e assume a coluna da crítica teatral no Jornal do Brasil. Se os palcos perdem um ator e um diretor, os leitores ganham um crítico que em 22 anos de trabalho diário soube como ninguém entender e decifrar os espetáculos dos palcos brasileiros. Yan Michalski fez o seguinte comentário sobre o Teatro Tablado:
“Três elementos essenciais caracterizam o excelente espetáculo d’O Tablado: uma alegria contagiante e irresistível, um altíssimo rendimento visual e um rigoroso e exemplar acabamento artesanal”.
Para ele o teatro significava uma ponte entre as suas duas pátrias – a Polonesa e a Brasileira. Sendo assim, podemos considerar O Tablado como a sua primeira casa teatral, aquela que ele descobriu que “O teatro havia assumido certa dimensão na minha vida”.
1960 – O Cavalinho Azul, texto e direção Maria Clara Machado
1958 – O Rapto das Cebolinhas, texto e direção Maria Clara Machado
1958 – A Bruxinha que era Boa, texto e direção Maria Clara Machado
1957 – O Embarque de Nóe, texto e direção Maria Clara Machado
(*) Pesquisador e Dramaturgo