Como atriz em Ensina-me a Viver: último papel

Matéria publicada no O Globo – Obituário
Karen Acioly, Rio de Janeiro, 01.05.2001

Barra

“A infância é o lugar onde ninguém morre” (Thorton Wilder).

Em 1921, nascia em Minas a menina Maria Clara Machado… Trinta anos depois nascia, no Rio de Janeiro, o Teatro Tablado. Mas, na verdade, esta história começa antes mesmo das datas. Começa com o vento, o mar, com o apito do trem.

O apito despertava, a sempre menina Maria Clara, com seus olhos mais-que-azuis, gaiata “caiota” que a todos divertia sem esforço, vivendo muitas histórias como a da velha Nica fazendo pipi e trepando nas jabuticabeiras.

A filha de Aracy e do escritor Aníbal Machado sai de Minas e vai conhecer o mar… o mar fiel do Arpoador, no Rio de Janeiro; onde é educada nos padrões rígidos das mocinhas dos anos 50: “cercada de freiras por todos os lados…”

Mas o mundo é sempre muito maior do que imaginamos e lá se foi a mocinha conhecer o mundo… encontrar sua vocação. A mocinha torna-se então bandeirante e, dotada de grande espírito de grupo, de camaradagem… saboreia o valor da coragem. E se decide pelo espírito de aventura. E é nessa aventura que encontra o teatro.

Uma vez encontrado o mapa, era necessário buscar o tesouro escondido. E foi numa pantanosa Lagoa que Clara ancorou sua bandeira. Como boa desbravadora descobriu uma nova terra, rica em especiarias, pedras preciosas e ouro: o Patronato Operariado da Gávea. Jogando futebol com as crianças do patronato, percebe sua vocação para diverti-las e, incentivada pelo pai, junta-se a um grupo de amigos e funda o Teatro Tablado.

No dicionário se lê: “Tablado – parte do teatro onde os atores representam; palco, palanque, estrado de madeira”. Mas…o Tablado da menina Clarota não cabe no dicionário, não se define, como diria Pluft, “ sem derramar o mar inteiro pelos olhos”.

O que mais pode significar esse Tablado, senão o ar que a tantas vidas deu sentido, e a tantos corações fez pulsar? E o que será que tem dentro dele, que arrebata tanto amor de tanta gente diferente? Que fonte infinita é essa da inesgotável criação e do profundo aprendizado?

Liderar com amorosidade é talvez a arte menos praticada pela humanidade, mas neste singular Tablado, dirigir atores e equipe em harmonia, sempre foi um exercício tão simples e constante, que o teatro tornou-se um todo, parte do corpo de cada um, parte da história de todos nós. Maria Clarinha, como também era chamada, sabia a delícia de ser uma espécie rara, um “protozímbio pintado”… único ser sem igual, ímpar, no “Embarque de Noé”.

Nunca fui do Tablado, mas… sempre fui ao Tablado. Pequena, assisti um milhão de vezes, a Pluft, Os Cigarras e Os Formigas, Tribobó City, O Embarque de Noé e infinitas outras peças, de amigas, namorados, gente, gente, muita gente. Um renascer cotidiano, uma eterna aliança com a vida, com o tempo, com o crer para crer ainda mais.

Maria Clara foi capaz de dar à luz a famílias inteiras, de “sentir o vento mais de perto”, como a sua menina… sua eterna menina… E todos, todos mesmo… a amamos! Filhos ou não filhos, artista ou público, adultos ou crianças, para sempre continuaremos a amá-la, pois “a infância é o lugar onde ninguém morre”.

(*) Karen Acioly é autora e diretora de teatro e roteirista do especial 45 Anos de Tablado, exibido em 1996 no canal Multishow/GloboSat/Net