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Desde a realização do primeiro Festival Nacional de Teatro Infantil, que acontece na cidade de Blumenau a partir de 1997, é possível registrar a presença de grande número de espetáculos de teatro de bonecos, teatro animação ou teatro de formas animadas na sua programação. No ano de 1998, foram selecionados 13 espetáculos para participar do Festival e deste total, 11 trabalhavam com a linguagem do teatro de formas animadas. Já, no ano de 2002, o número de espetáculos selecionados e convidados cresceu para 27, e 14 eram espetáculos de teatro de bonecos ou peças que, de alguma maneira, trabalhavam com técnicas que correspondem a essa linguagem.

Essa constatação também pode ser efetuada quando se observa a relação de espetáculos para o público infantil nas grandes cidades brasileiras. Levantamento realizado junto aos jornais “Folha de São Paulo” e “O Estado de São Paulo”, sobre espetáculos teatrais em cartaz naquela cidade, no mês de junho de 1997, comprovou que das 28 peças teatrais destinadas às crianças, oito trabalhavam com a linguagem do teatro de bonecos. Chama a atenção, no entanto, que neste mesmo período, dos 62 espetáculos em cartaz oferecidos ao público adulto, apenas um utilizava a linguagem do teatro de animação (1)

Estes dados quantitativos reforçam a estreita relação entre o teatro de formas animadas e o teatro feito para a infância e a juventude. Comprovam a eficiência do boneco ou da forma animada como elemento estimulador da imaginação e da fantasia; como recurso capaz de colaborar na criação de espetáculos com a presença de personagens fantásticas, saídas de um mundo de sonhos, povoado por seres mitológicos; o teatro de bonecos/objetos é uma linguagem privilegiada para a construção de espetáculos que fazem metáforas do mundo real, podendo apresentar em cena um mundo estranho, que não é o da percepção comum, diferente, que é pouco visível, possibilitando diversas leituras deste real. O uso do boneco em cena estimula o riso, o enfrentamento de medos, irreverência, angústias, inquietudes, possibilita trabalhar a realidade sem a necessidade de “adocicar” o mundo que se mostra às crianças.

Ao mesmo tempo em que é fácil arrolar diversos aspectos positivos dessa estreita ligação existente entre o teatro de formas animadas e o teatro infantil, essa relação tem provocado certas incompreensões, sobretudo uma visão equivocada sobre a arte do teatro de formas animadas.

No Brasil se destacam, predominantemente, duas ideias estereotipadas sobre essa arte: a primeira, como linguagem artística destinada exclusivamente ao público infantil; a outra, como teatro popular-folclórico. A ideia de um teatro exclusivo para crianças está relacionada com o boneco, ora como brinquedo, ora como instrumento didático e educativo capaz de propiciar o aprendizado de conteúdos ou estimular a fantasia. Já a concepção popular-folclórica é concebida com base nas referências do mamulengo, vista como expressão em que predominam o cômico e a crítica social e política. Não há demérito em vincular o teatro de formas animadas ora como linguagem utilizada nos espetáculos para o público jovem, ora como expressão popular-folclórica. Ao contrário, essa relação comprova tanto a origem popular desta arte, quanto suas possibilidades expressivas e eficácia como instrumento de comunicação. O equívoco está em ver o teatro de formas animadas apenas e somente segundo estas duas concepções, deixando de perceber que, além disso, reúne produções que se diferenciam e não se enquadram nessas perspectivas.

Uma concepção que contempla o teatro de animação como teatro de expressão contemporânea, como linguagem com leis e códigos, como um teatro inserido no universo das artes em geral, vem sendo discutida e construída mais recentemente no Brasil. Isso se deve, de um lado, ao trabalho de grupos de diferentes regiões do país e seus espetáculos com apurada elaboração técnica e artística, contribuindo para superar a visão estereotipada sobre essa linguagem artística. E, por outro lado, às oportunidades de discussão criadas nos festivais, universidades e às iniciativas de publicação de estudos sobre teatro de formas animadas.

O Festival Nacional de Teatro Infantil de Blumenau constitui um dos importantes momentos em que o teatro de formas animadas se consolida como linguagem, uma vez que boa parte dos espetáculos que integram a sua programação, é de relevância artística e social.

Tendências

Historicamente a linguagem do teatro de animação é conhecida pela presença do boneco e a “ausência” do seu manipulador, ou do ator-animador que, trabalha escondido, invisível do público. O teatro de bonecos mais conhecido do grande público é justamente aquele no qual não se vê o artista, porque ele interpreta escondido no “palquinho”, biombo ou como preferem os mamulengueiros brasileiros, a empanada. Três espetáculos presentes no Festival de Teatro Infantil de 2002 podem ser vistos como referência dessa maneira de trabalhar: “4 Contos para Teatro de Bonecos” da Cia Gente Falante de Porto Alegre, “Chapeuzinho Vermelho” e “Circo de Marionetes” da Cia. Mariartes de Lages. São espetáculos que recuperam e perpetuam a forma tradicional de atuação no teatro de bonecos. O trabalho destes grupos é fundamental uma vez que dá continuidade a uma forma de atuação que remete às origens deste teatro. São espetáculos que utilizam técnicas que perduram, usam conhecimentos produzidos há séculos.

Mas, nos últimos anos, é possível apontar algumas tendências que diferenciam o modo de fazer este teatro.

Atualmente, os espetáculos de teatro de animação têm utilizado com muita frequência a presença do ator-animador, visível no espaço de atuação, na cena. É comum ver espetáculos onde o ator-animador, interpretando uma personagem, contracena com o boneco. A peça “O Anjo do Bosque” do Teatro Filhos da Lua, de Curitiba, ilustra essa tendência bastante viva no teatro de formas animadas contemporâneo. Nesta peça, os atores, muitas vezes interpretavam, quase simultaneamente, duas personagens: uma presente no boneco que animava e a outra visível nos seus corpos. O mesmo ocorre em certos momentos da encenação de “O Sonho de Natanael”, apresentado pelo Cirquinho do Revirado da cidade de Criciúma. Os atores-animadores impõem-se o duplo desafio de interpretar duas personagens enquanto estão em cena.

Outra tendência visível nos espetáculos de teatro de formas animadas que preferem trabalhar com o ator-animador visível na cena se dá quando ele é neutro em cena. Ou seja, ele trabalha de maneira que o centro das atenções esteja inteiramente voltado para o boneco ou o objeto. O público raramente percebe sua presença, tal é sua capacidade de dar vida ao boneco. “Capoeira de Angola”, apresentado pela Cia Nazareno Bonecos, da cidade de Caxias do Sul, ilustra essa tendência. O elenco está a serviço do boneco, e trabalha com grande economia de gestos e movimentos, priorizando a visibilidade do boneco. O ator-animador treina, se prepara para não utilizar expressões faciais, movimentos em excesso que possam chamar a atenção do público para si.

Uma terceira tendência pode ser identificada quando o ator-animador, enquanto atua, estabelece uma relação de cumplicidade com o boneco. Não representa uma personagem, mas também já não é impessoal como na maneira anterior. Na cena, há momentos em que atua com certa cumplicidade que se estabelece de diversas maneiras: na troca de olhares com o boneco, pela respiração, pausas, silêncios e de muitas outras maneiras. “O aniversário da Infanta” da Cia Teatro Nós os Dois, do Rio de Janeiro, talvez seja o trabalho que melhor exemplifica, dentro do Festival, essa opção de trabalho. O ator-animador não é personagem, tem consciência da sua presença em cena, e trabalha para a personagem representada no boneco. Essa última opção de trabalho exige conhecimentos e a clareza de limites por parte da direção do espetáculo e elenco, para que o ator-animador não “roube a cena” que é do boneco, para que não se estabeleçam focos simultâneos na atuação, pulverizando a atenção do espectador e a qualidade da cena.

A presença do ator-animador visível na cena, com seus múltiplos desdobramentos, ou seja, ora interpretando uma personagem que contracena com o boneco, ora atuando de forma neutra, ou ainda trabalhando na cena com alguns momentos de cumplicidade com a personagem boneco/objeto, tem aproximado, cada vez mais, o teatro de formas animadas do teatro feito exclusivamente por atores.

Gostaria, ainda, de destacar uma nova tendência que se consolida como prática na produção de espetáculos. Trata-se de uma proposta que se utilizada dramaturgia desconstruída ou trabalha com a cena fragmentada.

Este procedimento nasce do desejo de rompimento com as convenções de representação e construção do enredo. Para estes grupos, já não interessa o modelo clássico que repousa sobre a evidente clareza de informações sobre a narrativa, que devem ser além de explícitas, coerentes, completas já no início do texto. Neste tipo de proposta interessa oferecer poucas informações, estimulando o espectador a fazer seus quebra-cabeças, cujas peças são dadas aos poucos, possibilitando a ele ir formando seu quadro, compondo com seu imaginário. A ideia de que o espectador pode, ele mesmo, a partir de estímulos apresentados criar uma narrativa própria, conta principalmente com o seu envolvimento emocional no espetáculo.

O trabalho da construção dramatúrgica consiste em percorrer outro caminho, diferente, tendo um tema central como princípio norteador. Nega-se o texto racionalista, a ideia de que o conhecimento e a experiência significativa só é possível através do pensamento lógico, do discurso e do intelecto. Por isso, outra característica desta proposta é a economia de palavras, o texto verbal pronunciado.

Exemplo deste tipo de trabalho foi o espetáculo “O Canto que Vem do Oceano” da Cia Azul Celeste de Ribeirão Preto. Neste tipo de trabalho prepondera a economia ou mesmo a eliminação de palavras, o dizer com ações e gestos, e a ação destituída de fala exige trabalhar com o princípio de clareza do gesto e movimento. A força do trabalho está na capacidade do ator-animador expressar e transmitir ao público estados de rara intensidade emocional. O ator animador é estimulado a criar situações, encontrar gestos, ações, quase sempre destituídas da palavra e com isso o tempo dos ensaios é ampliado porque, pressupõe, não só o tempo de aperfeiçoamento da cena, mas principalmente de construção da partitura de gestos, ações e movimentos que definem a dramaturgia.

A peça não tem apenas uma situação principal, um conflito central, nem personagem protagonista. Predomina a definição de um assunto, o tema, e em torno dele giram situações, ações, e imagens. Mas também ocorre a justaposição de cenas sem relação aparente, imagens e ações desconexas.

A ruptura com a narrativa linear, a narrativa com princípio, meio e fim, na qual se conta uma história, onde cada acontecimento é a sequencia da ação acontecida anteriormente, é substituída por uma proposta de narrativa desconstruída, desordenada, situações que, eventualmente, apresenta uma sequencia, mas em seguida é abandonada, interrompida por uma imagem em movimento que possibilita ao espectador imaginar, refletir ou somente desfrutar da beleza da imagem contrastando com situações antes mostradas.

Por isso, quando se toma como referência o teatro de bonecos com a estética da manifestação popular, ou aquele pertencente às grandes tradições, é possível constatar que o teatro feito atualmente “já não é um verdadeiro teatro de bonecos, mas um teatro que se serve dos bonecos, quando não pode recorrer a outros recursos.” (Jurkowski, 2001:41) Ou seja, o uso de variados meios de expressão, o abandono do boneco do tipo antropomorfo, a ruptura com o palquinho tradicional do teatro de bonecos e a presença visível do ator-animador na cena, tornam o teatro de animação produzido atualmente, um teatro bastante heterogêneo. Sua proximidade com outras linguagens artísticas incluindo a dança, mímica, circo, teatro de atores e espetáculo multimídia entre outros, tornam esta arte reconhecidamente mais contemporânea, porém distanciada dos códigos e registros que historicamente a tornaram conhecida do grande público.

É preciso considerar que, hoje, a expressão “teatro de bonecos” já não dá conta de contemplar a diversidade de formas e meios utilizados por esta linguagem. Teatro de bonecos tem, de certa maneira, caracterizado as formas de expressão popular, englobando tanto o mamulengo quanto outras formas que trabalham com as técnicas de luva ou fios, a marionete, no espaço específico do palquinho, tenda ou empanada. Quase sempre, um teatro cujas narrativas transitam entre princípios de um teatro épico, boulevard, ou vaudeville, mas tendo sempre na palavra um dos fortes elementos na sua realização.

Já, expressões como “teatro de animação” ou “teatro de formas animadas” têm sido mais comumente utilizadas porque conseguem aglutinar outros meios de expressão como máscaras, objetos, silhuetas e sombras, figuras, figurinos excêntricos, cenografia ousada, além de outras formas e recursos utilizados em encenações. O mesmo ocorre em relação às expressões que identificam o artista: bonequeiro, manipulador, ator-animador. Enquanto bonequeiro pode ter conotação restrita ao uso do boneco, manipulador pode denotar o que usa apenas as mãos para dar vida ao objeto, sem contar ainda com o sentido de relação verticalizada ou mesmo de predomínio completo do manipulador sobre a forma manipulada. Já, ator-animador contempla a ideia de anima, alma. Refere-se a animação, de animar o inanimado, de dar ou despertar vida na forma aparentemente morta ou inerte, além de trazer implícita a ideia de dialogação entre forma, matéria e seu animador. Ator animador sintetiza o trabalho do artista que projeta a realidade da personagem sobre um corpo que não é o seu, tornando essa realidade crível e capaz de impacto emocional.

Considerações finais

É possível perceber que, hoje, a criação de espetáculos de teatro de animação incorpora inúmeros recursos, linguagens, procedimentos que o tornam heterogêneo, híbrido, distanciado dos códigos pertencentes à tradição. O teatro de animação caminha numa direção que o aproxima cada vez mais das artes cênicas, visuais, fazendo com que as fronteiras estéticas fiquem cada vez mais borradas.

Ao mesmo tempo fica evidente que arte hoje se faz de referências, o que pressupõe, tanto por parte do artista como do público, a existência de um capital cultural que possibilite transitar por movimentos artísticos e estéticos, bem como o domínio de conhecimentos sobre história da arte. Porém, é preciso perguntar: e quem não tem referências, fica mais uma vez excluído?

Isso remete à possibilidade de, o espetáculo teatral ou a obra de arte em geral, constituir-se num discurso sobre si mesmo, um tipo de trabalho cujos códigos são conhecidos apenas por quem integra o grupo ou é próximo do elenco ou artista responsável pela obra. O que remete a perguntar: para quem fazemos arte? O que pretendemos com o nosso trabalho?

Essa crise iniciada já há mais de um século, se agudiza a partir dos anos 80 e 90, com o advento do neoliberalismo e da pós-modernidade. A ideia, antes comum, de que a obra de arte tem a função de contribuir para transformações positivas da sociedade, vem sendo substituída pela obra de arte como mercadoria. Artistas criam tendo como referência o gosto público, produzem o que é mais facilmente digerível pelo mercado.

A ideia de artista como alguém que, com seu trabalho, também é agente que contribui na transformação da sociedade, como alguém que pauta seus procedimentos por princípios éticos e ideológicos, é cada vez mais, vista como romântica, ingênua e até antiquada. Hoje, um bom número de artistas abre mão dessa visão de que a arte é permeada por valores éticos e humanos e assume a arte como um produto de consumo a ser vendido, comercializado. Certamente essa não é uma crise que pertence só ao teatro de animação, mas a todas os outros campos artísticos.

Prefiro acreditar que em todos os lugares há pessoas que necessitam de algo diferente, algo mais humano, que só pode acontecer numa escala menor como no teatro. Algo que não se encontra nas produções massificadas. Essas pessoas gostam de manifestações criadoras que falam dos desejos, dos sonhos, emoções, sensações, da vida dos seres humanos. Falar disso pressupõe expressar uma posição frente à vida, e tudo isso é permeado por questões éticas, estéticas e poéticas. Ter acesso a este tipo de expressão, é sobretudo, direito fundamental de todas as pessoas. Quando penso no Festival Nacional de Teatro Infantil que se realiza em Blumenau, estou certo de que este é o sentimento predominante presente tanto nos elencos, quanto nas pessoas que trabalham na sua realização e organização. É isso que faz este Festival ter enorme repercussão na vida das pessoas que dele participam. Uma repercussão que, nem mesmo a ampla cobertura das mídias, dá conta de mensurar.

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Notas

(1) Efetuei este levantamento como parte preliminar da coleta de dados para minha pesquisa quando fazia o doutoramento na Universidade de São Paulo – USP

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Bibliografia

AMARAL, Ana Maria. 2002. O Ator e Seus Duplos. São Paulo: Senac/Edusp
BELTRAME, Valmor. 2001. Animar o Inanimado: a formação profissional no teatro de bonecos. Tese de Doutorado defendida no Programa de Pós-graduação da ECA/USP: São Paulo
BELTRAME, Valmor. 1999. Teatro de Animação: do ilustrativo à forma animada. In Revista do Segundo Festival Nacional de Teatro Infantil de Blumenau. Blumenau: Fundação Cultural de Blumenau
BENJAMIM, Walter. 1989. Obras Escolhidas. São Paulo: Brasiliense
JURKOWSKI, Henryk. 2001. Métamorphoses – La Marionnette au XX Siécle. Charleville- Mézières: Institut International de la Marionnette
RÖHL, Ruth. 1997. O Teatro de Heiner Müller. São Paulo: Perspectiva
RYNGAERT, Jean-Pierre. 1998. Ler o Teatro Contemporâneo. São Paulo: Martins Fontes

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Valmor Beltrame – Nini
Doutor em Teatro e Professor no Programa de Pós-graduação – Teatro, na Universidade do Estado de Santa Catarina – UDESC, em Florianópolis.

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Obs.
Texto retirado da Revista FENATIB, referente ao 6º Festival Nacional de Teatro Infantil de Blumenau (2002)