(*) Pensar sobre o teatro de animação não significa dissocia-lo da arte do teatro, uma vez que isso só empobreceria a percepção do que seja esta linguagem. No entanto, trata-se de uma arte com especificidade, pois é na passagem do inanimado ao animado que ela se realiza.
Atualmente, os espetáculos de teatro de animação têm utilizado com muita frequência a presença do ator/animador visível no espaço de atuação, na cena. É comum ver espetáculos onde o ator/animador, interpretando uma personagem, contracena com o boneco. Às vezes é neutro em cena, ou de outra maneira, enquanto atua estabelece uma relação de cumplicidade com o boneco. O que permite observações identificando-o mais com um teatro de atores do que espetáculo de teatro de animação.
Por isso, quando se toma como referência o teatro de bonecos com a estética da manifestação popular, ou aquele pertencente às grandes tradições, é possível constatar que o teatro feito atualmente “já não é um verdadeiro teatro de bonecos, mas um teatro que se serve dos bonecos, quando não pode recorrer a outros recursos” (Jurkowski, 1993:41). Ou seja, o uso de variados meios de expressão, o abandono do boneco do tipo antropomorfo, a ruptura com o palquinho do tradicional teatro de bonecos e a presença visível do ator/animador na cena, tomam o teatro de animação produzido atualmente, um teatro bastante heterogêneo. Sua proximidade com outras linguagens artísticas incluindo a dança, mímica, circo, teatro de atores e espetáculo multimídia entre outros, tomam esta arte reconhecidamente mais contemporânea, porém heterogênea, distanciada dos códigos e registros que historicamente a tomaram conhecida do grande público.
É preciso considerar que, hoje, a expressão “teatro de bonecos” já não dá conta de contemplar a diversidade de formas e meios utilizados por esta linguagem. Teatro de bonecos tem, de certa maneira, caracterizadas as formas de expressão popular, englobando tanto o mamulengo quanto outras formas que trabalham com as técnicas de luva ou fios, a marionete, no espaço específico do palquinho, tenda ou empanada. Quase sempre, um teatro cujas narrativas transitam entre princípios de um teatro épico, boulevard, ou vaudeville, mas tendo sempre na palavra um dos fortes elementos na sua realização.
Já, expressões como “teatro de animação” ou “teatro de formas animadas” têm sido mais comumente utilizadas, porque conseguem aglutinar outros meios de expressão como máscaras, objetos, silhuetas e sombras, figuras, figurinos excêntricos, cenografia ousada além de outras formas e recursos utilizados em encenações. Além de também contemplar as diversas formas de atuação visível do ator/animador.
O mesmo ocorre em relação às expressões que identificam o artista: bonequeiro, manipulador, ator/animador. Enquanto bonequeiro pode ter conotação restrita ao uso do boneco, manipulador pode denotar o que usa apenas as mãos para dar vida ao objetivo, sem contar ainda com o sentido de relação verticalizada ou mesmo de predomínio completo do manipulador sobre o manipulado. Já, ator/animador contempla a ideia de anima, alma. Refere-se a animação, de animar o inanimado, de dar ou despertar vida na forma aparentemente morta ou inerte, além de trazer implícita a ideia de dialogação entre forma, matéria e seu animador. Ator/animador sintetiza o trabalho do artista que projeta a realidade da personagem sobre um corpo que não é o seu, tornando essa realidade crível e capaz de impacto emocional.
No entanto, é possível perceber o teatro de animação perdendo seu estatuto de linguagem autônoma, diluindo-se ou fragmentando-se na prática e trabalho do ator. Em decorrência disso o boneco tem sido tratado de variadas maneiras, quase sempre sem o cuidado necessário para caracterizá-lo como forma animada, com vida e autonomia que a personagem exige.
Problemas como o uso ilustrativo do boneco, a inexistência do olhar como elemento condutor da ação, e a falta de construção de partitura de gestos e ações são frequentes em encenações. São problemas que se apresentam simultaneamente interagindo no enfraquecimento do espetáculo. Refletir sobre isso pode colaborar na sua superação.
1 – O Ilustrativo Empobrecedor
A encenação que faz uso ilustrativo do boneco é aquela que, fortemente apoiada no texto, usa o boneco para enfeitar ou decorar a narrativa. A presença do boneco nada acrescenta àquilo que o texto já diz. O boneco aparece como “recurso”, colaborando para criar surpresas, climas, dando certa dinâmica ao espetáculo, solucionando dificuldades quando o elenco é reduzido, ou ainda, resolvendo certos problemas técnicos como caracterização física de personagens. É adereço, por vezes alegoria, ora ornamento da cena. O movimento e as ações do boneco não acrescentam nada, apenas ilustram o texto, o que toma tudo redundante.
Outra característica marcante é a quantidade de bonecos ou formas postas na cena, dando a impressão que a direção do espetáculo acredita que a quantidade de objetos movendo-se pode garantir a atenção do público ou a qualidade do trabalho.
No teatro de bonecos, o movimento, a ação, adquire importância capital. O movimento já é em si linguagem, há uma dramaturgia do movimento. Assim, como a imagem, é uma modalidade emocional que não precisa necessariamente ter narração, mas tem um conteúdo importante. Por isso, é preciso escolher criteriosamente o boneco ou a forma animada; é preciso experimentar e definir dramaticamente sua função na cena, no espetáculo; é preciso dar sentido a sua presença. Um organizado desfile de bonecos, ainda que estes sejam bem confeccionados, pouco colabora porque nada acrescenta à ação.
Quando se oferecem muitos códigos ou signos, o público tem dificuldade de ler tudo simultaneamente, assim como o ator, por sua vez, também tem dificuldade de dominá-los.
A manipulação à vista, tão largamente difundida hoje, apresenta com freqüência, sérios problemas. Principalmente quando o corpo do ator acaba sendo mais expressivo que a animação do boneco. O que remete à pergunta: se o ator faz melhor, por quê usar o boneco? Nestes casos a presença do boneco é meramente ilustrativa. Ao se recorrer ao uso do boneco, no momento em que atua, ele deve ser a maior fonte de expressão. Quando o boneco entra em cena precisa ser visto como o foco central da situação. Se o ator o cobre com seu corpo, nem que seja parte da máscara ou corpo do boneco, a cena fica suja. Começam a surgir “parasitas” na cena. Ser a fonte central de expressão permite ao boneco adquirir autonomia, atuar claro já no início da sua atuação, do seu aparecimento na cena.
Às vezes o “ilustrativo” se evidencia mais claramente em espetáculos cujos textos foram adaptados da literatura (contos, romances, poemas). Não é fácil fazer este tipo de adaptação porque quase sempre a poesia está contida no texto, dificultando sua transposição para ações, que caracterizam a linguagem dramática. Nestes casos, o ilustrativo se instala porque o boneco ou a personagem animada não vivencia a ação. Ele apenas mostra acontecimentos, não vive sua aventura enquanto personagem.
Comumente se diz que se vai ao teatro para ver e ouvir. Isso é imprescindível, no entanto, não é suficiente, aliás, é muito pouco. O espetáculo precisa ser bem feito, limpo, acabado. Mas é preciso, sobretudo, com sua forma e conteúdo, transgredir, inquietar, lançar dúvidas sobre nossa forma de ser e ver o mundo. Mesmo que o espetáculo seja correto e perfeito, é preciso haver emoção, verdade, transfiguração poética. Caso contrário, como diz Peter Brook, instala-se o “aborrecimento… a sensação de não estar ligado a ação que acontece a nossa frente.” (BROOK, 1994:47) Nada pode ser pior para o ator, do que perceber que não existe cumplicidade entre ele e o público.
2- O Olhar que não Vê
Todo boneco tem uma máscara, seja com desenho de olhos ou não. Muitas vezes seus traços mais marcantes são seus olhos e essa é uma conquista feita no processo de confecção do boneco. Também existem bonecos que não apresentam olhos desenhados em sua escultura. Difícil porém, para ambos, é fazer com que eles olhem, ou vejam na cena. Essa é outra conquista que só pode ser feita na sua animação. Seu animador precisa descobrir, encontrar e saber mostrar como o boneco olha, quando olha e para o que olha. O importante é mostrar que o boneco tem um olhar e que este olhar é que dirige a atenção de quem o vê, o público. Por isso, seu olhar precisa ser visível. O público precisa perceber claramente que o boneco olha e para o que olha.
O boneco olha com toda a cabeça e seu nariz dá a direção precisa do olhar, ou seja, seu olho é substituído pela cabeça. Trata-se uma ampliação do momento que define a direção e o foco do olhar. Um ator pode fazer com que seu olho corra numa ou noutra direção, sem mover a cabeça. Já o boneco, que normalmente temo olho desenhado ou esculpido, dificilmente pode fazer este jogo. Além disso, o que caracteriza a ação do boneco é a ampliação do gesto, é o exagero de cada ação. Assim, quando olha, olha com a cabeça inteira e o que dá a direção exata do olhar é a ponta do seu nariz.
Jacques Lecoq (1), na sua escola de formação de atores, do Vieux-Colombier, trabalha com este princípio: o olhar como condutor da ação. A ação de cada personagem é precedida pelo olhar que indica, informa o que será realizado por ela. Recorrer ao uso da máscara pode ser um valioso instrumento capaz de auxiliar o ator animador aperceber a importância do olhar, a necessidade de seleção de cada gesto, de estabelecer relação com o objetivo ou forma animada.
O olhar, além de indicar o que o boneco faz, tem a capacidade de dar o foco principal da ação. O olhar é o condutor e definidor da atenção do público, dirige e define o que o público deve ver. Isso ajuda o boneco a estabelecer cumplicidade com o público. A atuação do boneco que desconsidera a presença do público ou atua sem estabelecer cumplicidade, corre riscos de fazer com que a atenção do público se perca.
3 – Partitura de Gestos e Ações
A realização de uma cena, a comunicação de uma ideia ou sentimento no palco exige que a mesma esteja muito clara para o ator. Quando este não tem clara a ideia que quer comunicar, tem dificuldade de expressar ou transformar isso em ação. Porém, ter clara a ideia não é suficiente para transformá-la em gestos e ações que expressem o sentimento e seu conteúdo.
Por isso, a criação de um subtexto, ou de uma partitura de gestos, ações e movimentos de cada boneco, definindo o sentimento e emoções de cada personagem e o que querem expressar é atividade obrigatória para que suas intenções fiquem claras. A elaboração da partitura de gestos e ações pode garantir a comunicação ao público, das ideias e sentimentos de cada personagem boneco. Quando não se faz isso, a resposta do público logo aparece: desinteresse e “aborrecimento”.
O boneco realiza sua expressão através de elementos claros e objetivos. E colaboram para isso, de início, os materiais com o qual ele é construído. O material já é uma importante fonte de dramaturgia, capaz de sugerir e determinar a dinâmica do movimento do boneco. Improvisar, ir lenta e gradativamente descobrindo os movimentos e possibilidades expressivas do boneco, é fundamental. Antes mesmo de estar pronto, ainda no seu esboço, o boneco pode apresentar sua autonomia. Ver um boneco no espaço de atuação é muito diferente de vê-lo sobre uma mesa da oficina de confecção. Improvisar, mesmo que ele não esteja de todo pronto, é importante, uma vez que colabora na descoberta do seu caráter, de uma gestualidade que vai se esboçando e de fingindo com a experimentação, nos ensaios. Isso pode enriquecer o vocabulário expressivo da personagem. A seleção de cada gesto, cada movimento, vai configurando a personagem que se constrói nos ensaios.
É nos ensaios que se pode selecionar e decidir tanto pelos grandes gestos e ações, assim como os pequenos detalhes, escolhendo os mais expressivos. “Mas é preciso constância e paciência, é preciso trabalhar os detalhes, os movimentos mínimos, lentos, repeti-los à exaustão, até que o supérfluo seja eliminado.” (AMARAl, 1991:283). É preciso saber definir e escolher o que é gesticulação, ações e gestos de expressão dramática. Estes são os mais preciosos, pois são os que dão sinceridade ao trabalho.
É fundamental trabalhar detalhadamente a animação de cada um dos bonecos, atentos ao olhar, às pausas, aos silêncios, trocas com o público, forma de caminhar, voz de cada boneco, enfatizando as relações que estabelece com outras personagens ou objetos em cena.
Encontrar comportamento diferentes para cada boneco é outra tarefa essencial. Quando todos os bonecos expressam seus sentimentos da mesma forma, as coisas se confundem, ficam ilegíveis e a cena torna-se enfadonha.
O ator animador é antes de tudo um ator, e um ator com sensibilidade plástica. Precisa ser sensível para a forma, sua mobilidade, textura e rigidez. Se não sente isso é muito difícil realizar seu trabalho. Quando o ator animador não conhece os elementos básicos do nascimento físico do seu objetivo de expressão, dificilmente domina seu trabalho. É preciso conhecer o corpo do qual é feito seu objeto de expressão para junto com isso ir trabalhando e colocando emoção.
O ator animador precisa estar atento e vigilante no sentido de segurar e garantir imagens interiores que o mobilizem e o motivem para a realização das ações exteriores. Por isso ele tem pelo menos dois níveis de concentração que precisa dominar: interior e exterior, além de estar atento aos gestos do outro boneco ou ator com quem contracena.
Enfim, o teatro de animação é a arte do detalhe, da elaboração paciente de cada cena, uma arte que se caracteriza pelo artesanal não só no processo de confecção dos materiais de cena, mas sobretudo, pelo cuidado e requinte que a encenação exige. É um teatro que exige precisão, onde o menor gesto deve ser estudado, filtrado, eliminando assim o que nele existe de banal, supérfluo, vulgar e ilustrativo.
Notas
(1) Jacques Lecoq publica muito pouco sobre seu trabalho como diretor e sua prática na Escola do Vieux Colombier em Paris. Seus dois artigos mais conhecidos entre nós são:
Rôle du Masque dans la formation de l’actor. In Aslan, Odette. Le Masque. Du Rite au Théâtre. Paris: Editions du Crns,1988.
Le Jeu Masqué, In Le Théâtre du Geste. Paris: Bordas, 1987.
Ariane Mnouchkine também, diretora do Théâtre du Soleil, escreveu um texto fundamental para compreender a importância do uso da máscara no trabalho do ator:
Lê Masque, une discipline de base. In: Aslan, Odette. Le Masque, Du ? Rite au Théâtre. Paris: Editions du Crns,1988
(*) O estímulo para escrever este artigo surgiu de observações feitas nos espetáculos apresentados no 2° Festival Nacional de Teatro Infantil de Blumenau, realizado no período de 17 a 21 de agosto de 1998. Surpreendentemente, dos 13 espetáculos que integravam a programação, 11 trabalhavam com elementos do teatro de animação’, bonecos, máscaras ou objetos.
JURKOWSKI, henryk. Vacas Gordas Y Vacas Flacas. In: PUCK N 5.Bilbano: Éditions Institut International de la Marionnete/Centro de Documentación de Bilbao, 1993
BROOK, Peter. La Puerta Abierta. Barcelona: Barral Editorial, 1994
AMARAL, Ana Maria. Teatro de Formas Animadas. São Paulo: EDUSP, 1991
Valmor Beltrame – Nini
Professor de Teatro no Curso de Artes Cênicas do Centro de Artes da Universidade do Estado de Santa Catarina – UDESC. Atualmente prepara tese de doutorado sobre Teatro de Animação no Programa de Pós-graduação da Escola de Comunicações e Artes da Universidade de São Paulo – USP.
Obs.
Texto retirado da Revista FENATIB, referente ao 2º Festival Nacional de Teatro Infantil de Blumenau (1998)