Olga, Aline, Otelo e Alby: imitação de La Fontaine

Crítica publicada no Jornal A Notícia
Por Armindo Blanco – Rio de Janeiro – 18.08.1978

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Com os Patos Tudo Bem

Antes da estreia no Rio de A Revolução dos Patos, de sua autoria, o teatrólogo paulista Walter Quaglia respondeu a um questionário sobre teatro para crianças. A peça já está em cena, desde sábado passado, no Teatro dos Quatro e merece, mais do que uma crítica nos moldes convencionais algumas considerações sobre o que é, e o que deveria ser, esse tipo de teatro no Brasil, numa época em que a maioria não tem acesso ao consumo de bens culturais.

As respostas de Quaglia nos ajudam neste sentido. Eis a primeira: Já ouvi alguém dizer que não gostava da expressão “Teatro Infantil” porque ela lembrava um teatro que ainda precisava crescer. Também não gosto. E prefiro usar “Teatro Livre” ou “Teatro Para Crianças”. Justificando: “Teatro Para Crianças” porque a expressão envolve a responsabilidade na formação do futuro adulto, que deve ser o objetivo primeiro de quem se dedica a esse gênero de teatro: “Teatro Livre” para que seja assistido por todos, o que é a cada vez mais raro, e onde, através da fábula e da metáfora, como em Esopo e La Fontaine, possam ser abordados os problemas do homem e do meio social em que vive.

De acordo com este princípio que teatro tem escrito Quaglia? Ele divide sua resposta em três itens:

1) O teatro que lhe interessa escrever é o que possa proporcionar entre pais e filhos o ensejo de diálogo sobre temas como Igualdade, Fraternidade, Liberdade. Três palavras batidas, admite Quaglia, e que todos aceitam, mas de cuja prática efetiva, não se encontram reflexos na vida cotidiana;

2) Pelos meios de comunicação que retratam o mundo de hoje, todos os dias e a todas as horas são lançadas em nossas casas as mais variadas formas de violência, opressão, disputa do poder e luta pela sobrevivência. Assim, nós, como nossos filhos, ficamos na defesa e no ataque, precavidos contra tudo isso que nos hostiliza a ponto de nos esquecermos, talvez, dos melhores ideais da humanidade. Ideais esses que precisam portanto ser relembrados para que a possibilidade de um amanhã mais feliz não seja esquecida;

3) Mas não é por mágica de fadas ou pela transformação de um patinho feio em cisne, que o objetivo de uma vida melhor pode ser atingido, mas sim pelo esforço de cada um, a luta de todos, unidos, na procura de um futuro mais justo, fraterno e livre. Neste contexto A Revolução dos Patos sem esquecer os aspectos lúdicos e respeitando a inteligência e a criatividade da criança, pretende trazer mensagem no sentido de que todos podem, ainda que renunciando um pouco a alguma coisa, ajudar a construir uma vida melhor. Pelo menos, acrescenta Quaglia, no imaginário mundo dos patos.

Temos aqui, portanto, dois pontos de partida bem definidos: a) a vida tal como está, não é boa, mais parece uma guerra, ainda que Quaglia não identifique os inimigos e nos coloque na condição de inocentes receptores de mensagens de violência, como se nós nada fizéssemos para que esta existisse; b) a vida pode ser melhor desde que os homens se lembrem dos mitos humanistas como que a burguesia francesa fez a sua revolução e se disponham a compartilhar seus bens.

Muito simples. E simplista. A visão do autor é, no mínimo, romântica. Desde que descobriu o valor da troca e instituiu o dinheiro como motor da circulação de mercadorias, o homem se habituou a discernir pragmaticamente a diferença entre teoria e prática. E não há nada mais maleável do que a bela moral que enfeita o relacionamento entre homens e nações. Todos nós sabemos, com maior ou menor rigor, o que é certo e o que é errado. Mas, quando nos convém, sempre sabemos encontrar uma boa desculpa, às vezes até mesmo na Bíblia, para esbulhar terceiros ou, inclusive, para lhes tirar a vida.

Quaglia, aliás, chegou a insinuar que suas ideias talvez só funcionem no imaginário mundo dos patos. Neste, segundo o enredo de sua pecinha, existem os patos pretos, os brancos e os amarelos. Os primeiros são lavradores, plantam e comem milho; os segundos são construtores, edificam casas em que só eles residem, a especulação imobiliária era desconhecida neste reino; e os terceiros são os usuários exclusivos do imenso lago. Um patinho preto, que ocasionalmente nasceu no domínio dos brancos, verifica, ao ser expulso, que não há lógica nesta divisão e “inventa” a troca. Quer dizer: fornecendo seu milho, que possuíam em quantidade superior às suas necessidades, aos patos brancos e amarelos, os pretos poderiam nadar no lago e dos primeiros e morar nas casas vazias dos segundos. Que outra coisa fez o homem, quando em priscas eras, se descobriu o cobre? As complicações, porém, vieram depois: não era tão fácil assim, tão isento de consequências, trocar o cobre pelo milho. Da divisão do trabalho, cujo custo/hora determinava o valor da mercadoria, se passou rapidamente para a acumulação. E até as religiões serviram para instaurar classes e alargar o domínio de uns homens sobre outros.

Na fábula de Quaglia, porém, os patos se entendem num passe de mágica e terminam de mãos dadas, cantando e bailando no mais fraterno dos mundos. Ai de nós: a vida real é bem diferente. E o espetáculo, enquanto produção de um bem cultural, revela alguns aspectos dessa diferença. Vejamos alguns:

1) O pato preto que faz a revolução é Grande Otelo. Um ator veterano, que alcançou uma idade provecta sem ter casa própria. Até há pouco tempo, exercia uma profissão não reconhecida no âmbito trabalhista. E só agora, uma vez regulamentado seu ofício, poderá, como ele mesmo disse, chorando, ao General Geisel, abrir conta no crediário. Ora, o que é crediário?  Como todos sabem, é um sistema mediante o qual pagarei o dobro por qualquer mercadoria que não possa comprar à vista. Será isto bom? Valerá este privilégio as lágrimas de alegria que Otelo derramou no Planalto? E a casa própria? No dia da estreia de A Revolução dos Patos, Otelo estava aliviado de uma angústia que o preocupava: conseguira sacar, na Rede Globo, um vale para pagar a prestação intermediária da casa que está comprando. Não seria mais instrutivo, ao invés de patos, falar às crianças do que representa hoje, no Brasil, conseguir uma casa para morar?

2) Elenco profissional numeroso, montagem dispendiosa, mais de Cr$ 100 mil, entre cenários, figurinos e adereços; exiguidade do número de espetáculos, teatro para crianças só funciona aos sábados e domingos; tudo isto, somado à inflação vigente, faz com que A Revolução dos Patos tenha ingressos relativamente altos: Cr$ 60, preço único. Da renda terão de sair a porcentagem do teatro, os direitos autorais, os salários de técnicos e artistas. E, também, o retorno do investimento. O produtor Rodrigo Farias Lima fez as suas contas e concluiu que não poderia cobrar menos do que está cobrando pelo ingresso. E, mesmo assim, talvez não venha a forrar um centavo, se conseguir sair do vermelho.

Então, o que acontece? Por esse preço, os ingressos acabam exercendo uma função seletiva. Só crianças bem nascidas poderão ver Otelo, Ruth de Souza, a linda Olga Renha, o engraçadíssimo Alby Ramos, só elas poderão disfrutar essa delicada metáfora sobre Igualdade, Fraternidade, Liberdade. Mas não creio que nenhuma delas tire as ilações com que sonha o autor. Imaginemos, por exemplo, uma criança que papai levou ao Teatro dos Quatro e que, à saída, encontra outra vendendo balas, na porta do Shopping Center. Será que ela proporá ao papai que conceda ao menino pobre o direito de usar, também, o belo carro em que ele, menino rico, vai ser confortavelmente levado de volta ao não menos confortável lar?

O patinho preto que instaura a fraternidade no reino dos patos é uma fantasia moralista que nada tem a ver com a realidade concreta do nosso mundo mercantilista e competitivo. Como no teatro para adultos, acena-se com esperanças num amanhã melhor, para quem?. Me parece um medo de aliviar a consciência dos que vivem acima das suas necessidades, de justificar o péssimo hoje da maioria transformando-o em véspera auspiciosa de algo melhor, que virá como o bom tempo após as chuvas, bastando para isso que invoquemos os nobres sentimentos que jazem adormecidos nas pessoas, por culpa das mensagens violentas.

Creio que as crianças se divertem com as brincadeiras de Alby e os ardis de Otelo. Mas só isso. Mero passatempo numa floresta de mentirinha, com patinhos de mentirinha e problemas que, supostamente ao nível do entendimento infantil, só despertam, e de passagem, a solidariedade ambígua que logo se exaure à saída do teatro.

De outro ângulo de análise, deve-se registrar, por ser de elementar justiça, a cuidadosa produção e o empenho do diretor, artistas e demais pessoal para criar um espetáculo cativante. Mas, me ficou a impressão de que as crianças, cada vez mais empolgadas pelas mulheres biônicas e outras paranoias da tevê, estão em outra e acham esse negócio de patos meio careta.