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“Porque nós trabalha com as mãos e o juízo, a boca e os pés, o que a gente faz com as mãos tem que responder com os pés”.
                                                                                                                                  Mestre Zé de Vina – Mamulengueiro

O boneco inerte é objeto, e o que o transforma em elemento teatral é a ação dramática, a interpretação diante do espectador. Quando o ator-bonequeiro anima o boneco, é seu corpo que atua. Por isso vale iniciar as reflexões sobre atuação cênica do ator-animador com a epígrafe do mamulengueiro pernambucano, Mestre Zé de Vina. É equivocado pensar, como faz o senso comum, que quando o ator é deficiente em seu trabalho de intérprete, pode se realizar profissionalmente no campo do teatro de bonecos, porque ali é o lugar onde se trabalha só com as mãos. O Mestre mamulengueiro, com sua longa trajetória de trabalho, sintetiza o que é o trabalho do ator-animador. Não é possível pensar na sua atuação dissociada do trabalho mental-corporal de ator. Uma ideia equivocada sobre o trabalho do ator-bonequeiro é a de que não é ator, que não cria personagens e as representa. A professora italiana Brunela Erulli afirma: “dificilmente alguém pode ser um bom titeriteiro se não for bom ator” (1994, p.85).

Animar é transformar o objeto inerte em personagem. O que caracteriza o teatro e animação não é apenas o objeto em si, tampouco seu desenho, forma, peso, volume e o material de que é construído, embora esses elementos acabem sendo determinantes na sua animação e no processo de encenação do espetáculo. É a animação que dá sentido ao objeto e faz com que ele exista e só a ação justifica sua presença na cena que o transforma é a ação e a interpretação diante do espectador. O ator-bonequeiro cria a personagem, mas depois “se abandona” para coabitar harmoniosamente com o objeto representado, a personagem, num espaço e tempo determinados.

Essa é a concepção que permeou a montagem de diversos trabalhos presentes no Sétimo Festival Nacional de Teatro Infantil de Blumenau. Os debates confirmavam, pelos depoimentos de muitos artistas, que a vida presente nos bonecos cria uma outra realidade e que isso se deve ao trabalho do elenco. Por isso é possível afirmar que o boneco é a extensão do corpo do ator-bonequeiro.

A expressão do boneco

Um dos aspectos indispensáveis para a compreensão da linguagem do teatro de formas animadas é a concepção de movimento. Um pequeno texto de Craig afirma:

A marionete é um modelo de homem em movimento. A marionete não é a estátua animada. As estátuas não são feitas para se mover: estão paradas, em repouso. As marionetes, então, não são estátuas. São, e permitam que eu me repita, mais precisamente, modelos de homem em movimento. Quando se movem, perfazem o movimento do homem, tanto quanto a escultura perfaz a forma do homem.  (CRAIG apud Plassard, 1992, p.48).                                                                                            

Craig vincula o movimento do boneco a ter convincente relação com o movimento do ser humano. Mas isso não significa restringi-los à cópia real do movimento humano. Essa é uma etapa importante a ser conquistada para em seguida efetuar a estilização desse movimento. Quando a ação cênica do boneco vai além dessa vinculação, quando o boneco incorpora o exagero no gesto, amplia o movimento tornando-o irreal mas crível, ou quando eventualmente faz o que um ator jamais poderia fazer, aí sim sua presença ganha força e autonomia. O desafio é fazer o movimento hiperbólico com a equivalência de uma ação real.

A qualidade do movimento, da animação está intrinsecamente relacionada com a simulação da vida. Por isso, o movimento não é aleatório, indica alguma intenção, possui alguma consciência. Como afirma Niculescu, “é importante que as marionetes pensem. Uma marionete que não pensa é uma marionete manipulada”.

A animação que dá qualidade à arte do teatro de bonecos não pode ser confundida com a realização de qualquer movimento do objeto em cena. Um arco realizando um movimento mecânico, contínuo, ininterrupto, ou mesmo passando na cena, não é o movimento imbuído da intenção que caracteriza a prática do teatro de formas animadas. Da mesma maneira, a qualidade da animação não tem obrigatoriamente relação com quantidade e intensidade de movimentos. O movimento sutil, mínimo, bem como o ampliado, brusco, ou seja, todo tipo de movimento pode fazer parte da animação, desde que tenha uma intenção. A ausência de movimento também pode ser uma ação da personagem. A ideia de respiração complementa a noção de estar em movimento, de estar vivo.

Realizar uma ação não é só transferir o movimento do animador para o objeto. Mais que isso, o ator-bonequeiro define e ordena a sequencia de gestos e ações que qualificam a presença do objeto, a personagem. Valorizar o movimento da personagem no teatro de animação não significa dizer que a interpretação é o simples ato de fazer com que o objeto se mova. O desafio é fazer com que a matéria aparentemente morta, inerte, comece a se expressar. Binômios como ação-reação, imobilidade-movimento, silêncio-ruído, podem ser referências importantes para o ator-bonequeiro realizar o seu trabalho.

O trabalho do ator-animador é o de produzir a impressão de vida num corpo que se encontra fora do seu próprio corpo. O que qualifica a animação é a adequação dos movimentos, dos gestos, das ações, selecionados pelo ator-bonequeiro e pela direção do espetáculo, com a conduta da personagem e sua relação com o conjunto da obra. A direção do espetáculo exerce papel definitivo na elaboração da partitura de gestos e ações da personagem boneco. Ação cênica é entendida aqui como tudo o que a personagem faz. Compreende-se por gesto as atitudes específicas, que transparecem significados, a concepção de mundo, um modo de ser e agir da personagem e que no conjunto constitui as ações cênicas. A animação da personagem passa pelo crivo do ator-bonequeiro e do diretor que, juntos, vão definindo o que pode integrar o trabalho do intérprete.

A apropriação da técnica

Uma das influências visíveis em diversos espetáculos presentes no Festival foi a estética do Bunraku, uma forma de teatro bastante popular no Japão no século XIX e viva ainda hoje. Os trabalhos de companhias como Cia Articularte de São Paulo, e Gente Falante de Porto Alegre, exemplificam esta opção. O Bunraku desenvolveu uma técnica rigorosa de animação que exige a presença simultânea de três atores-bonequeiros para que a personagem realize suas ações. São bonecos que reproduzem a figura humana, medem até 80 centímetros de altura, distinguem-se pela beleza do figurino e máscaras com traços realistas.

As funções entre os atores-bonequeiros do Bunraku são assim definidas: o ashizukai é responsável pela animação das pernas / pés do boneco, pegando-os quase sempre diretamente com as suas mãos, sem a mediação de varas; o segundo ator-bonequeiro é chamado de hidarizukai, anima o braço esquerdo do boneco; omozokai é o ator-bonequeiro chefe, que trabalha com a cabeça e o braço direito do boneco. Este último é o único que trabalha com a cabeça descoberta e usa eventualmente figurino de outra cor. Os outros, além de vestidos de preto, usam capuz que esconde totalmente seus rostos. De acordo com a tradição do Bunraku, cada operador necessita de dez anos de treinamento básico para dominar as técnicas do seu campo específico: dez anos como manipulador das pernas, dez anos como operador do braço esquerdo e mais dez anos como manipulador chefe, totalizando assim cerca de trinta anos para atingir a maturidade como um verdadeiro mestre na arte da movimentação dos bonecos (KUSANO, 1993, p.194).

Estes dados asseguram que as influências do Bunraku nos elencos do Festival são parciais. Ninguém fez o “treinamento básico de dez anos” para animar o pé do boneco. Mas é possível apontar elementos do Bunraku presentes em diversos espetáculos: a confecção de bonecos de corpo inteiro, não privados da sua parte inferior como acontece com os bonecos de luva ou fantoches; a animação direta ou à vista; o uso de figurino com capuz preto transparente para neutralizar a presença do ator-animador; a mesa como superfície de apresentação dos bonecos, atrás da qual se postam os atores-bonequeiros animando os bonecos e objetos; a utilização de varas de sustentação de partes do corpo do boneco para facilitar seu manuseio; o uso direto da mão no corpo do boneco sem a mediação de varas. Ainda que sejam tantas as influências, não eram espetáculos de Bunraku, o mais correto é afirmar que na sua concepção e montagem é possível identificar elementos, sobretudo técnicos, que lembram a linguagem do teatro de bonecos japonês.

Um dos maiores desafios profissionais e artísticos do ator-bonequeiro é dominar as técnicas de animação do boneco. Apropriar-se das técnicas de manipulação tem por objetivo garantir certa unidade ou sintonia entre animador e boneco. Significa ainda encontrar os gestos adequados para as ações cênicas a serem efetuadas pela forma animada, o boneco. Lembrando Gervais: “A técnica pretende adquirir desembaraço na manipulação, onde o boneco se confunde com aquele que o mantém e onde os sentimentos de um são imediatamente expressos pelo outro. Para atingir este fim é preciso ser capaz de se esquecer dos meios de expressão, e por consequência, possuir o desembaraço absoluto” (GERVAIS, 1947:03).

Para adquirir o desembaraço é necessário treino, a repetição paciente de cada movimento, de cada gesto, observando criticamente se o gesto conseguido é o desejado para a caracterização do boneco no contexto da cena. Desembaraço também significa ter controle sobre sua respiração. A força da presença do boneco, o impulso para a realização de ações, os silêncios, a qualidade da voz do ator animador são obtidos a partir do controle que consegue estabelecer sobre sua respiração. Fazer com que o boneco respire enquanto está em cena, certamente constitui um dos desafios no trabalho do ator-animador. E muitas vozes o boneco “respira” com o seu animador.

Muitos gestos são impulsionados pelo ato de inspirar. As emoções vividas pela personagem-boneco também estão relacionadas com a respiração, reagir com raiva implica em respirar de forma distinta de quando recebe um afago. Um detalhe importante a ser observado é que o boneco respira com o corpo inteiro, por isso o ator-animador busca encontrar o movimento justo capaz de dar veracidade a essa respiração. É necessário longo tempo de “convivência” com o boneco para encontrar o movimento justo. Trata-se de um movimento artificial, diferente do ato de respirar humano, mas fundamental para dar qualidade à sua atuação. Quando a respiração é feita adequadamente, o boneco parece vivo e a atuação do boneco torna-se convincente.

É fundamental definir a sequencia de movimentos, a seleção de um efeito singular, vinculado a uma atitude especial, permeada da emoção própria da personagem. Para Mangani, é indispensável o bonequeiro transferir ao objeto a emoção que corresponde à personagem. Caso contrário, por melhor que se mova, o feito é mecânico, não espiritual. Ou seja, a magia do trabalho com o boneco se situa no paradoxo de mostrar o humano mediado pelo objeto fabricado, o real e o irreal que a atuação do ator-bonequeiro torna crível. A animação pressupõe que a personagem seja a metáfora do objeto que é animado. Como diz Dufrenne (1998:114), “seu papel [o do artista] é dar a impressão de que o objeto se expressa por si mesmo”. Yoshi Oida não é marionetista, integra o elenco dirigido por Peter Brook, mas faz reflexões em sua prática de ator que elucida a questão da técnica para o teatro de marionetes: “Interpretar, para mim, não é algo que está ligado a me exibir ou exibir minha técnica. Em vez disso, é revelar, através da atuação, algo mais, alguma coisa que o público não encontra na vida cotidiana” (2001, p.20).

Importante é o ator animador principiar seu trabalho aberto às diversas possibilidades, disposto a fazer descobertas, predisposto a se surpreender com o boneco com o qual vai atuar, para poder chegar a definições iniciais do repertório de gestos.

São “definições iniciais”, pois a prática tem demonstrado que é exatamente essa abertura ou disponibilidade que permite ao ator-bonequeiro estar atento para ampliar sua técnica. Além disso, a totalidade de gestos que integram as ações cênicas do boneco constitui-se em permanente construção que vai eliminando e acrescentando detalhes e sutilezas. E para isso o manipulador precisa estar imbuído do que diz Brecht: “há muitos objetos num só objeto” (Brecht apud Koudela, 1991, p.80). Ou seja, ver além do aparente, olhar mais profundamente e ver a possibilidade do movimento, o “vir a ser” contido em cada objeto ou boneco. A técnica, a qualidade da animação nasce desse tipo de concepção, aliada, naturalmente, ao exercício diário, ao trabalho paciente e prolongado.

Todavia, o importante não é só ampliar o número e o tipo de ações que diferenciam o boneco do ator. O fundamental está na compreensão da natureza e da especificidade que caracterizam a linguagem do boneco. É preciso frisar não se trata de reprodução realista das ações humanas. Aliás, é importante que o ator animador descubra as possibilidades de fazer o boneco transgredir as referências ao comportamento humano, poetizando suas ações. Procurar transcender a imitação e encontrar o específico, o característico do boneco. Quando o boneco procura imitar o ator, reproduzindo realisticamente ações humanas, sua atuação perde força. Mas ela se valoriza quando mostra o que é impossível de ser realizado com o corpo humano, em acontecimentos e ações que têm relação direta com o universo plástico. Isso é possível pelo jogo, a brincadeira que permite descobrir não só o repertório de gestos do boneco, mas possibilitará, principalmente, a construção da personagem, uma definição mais clara da sua conduta. A obra, afirma Dufrenne (1998:114), “na medida em que adquire forma, afirma e impõe suas próprias normas”.

É com essa compreensão que o ator-bonequeiro descobrirá a linguagem específica do teatro de bonecos, desvendando a alma de cada personagem, procurando não reproduzir gestos e ações que podem ser totalmente e melhor executadas pelo ator.

Adelaida Mangani sintetiza a importância das técnicas de animação, e enfatiza que os desafios de animar o boneco não constituem um fim em si, mas possuem estreitas relações com o espetáculo: “É fundamental que o objeto produzido tenha o que transmitir. É importante destacar isso porque aparecem, na Europa e Estados Unidos, grupos com orientação na busca de técnicas de manipulação de grande precisão. Inventam mecanismos bastante sofisticados para conseguir movimentos tão perfeitos para que os bonecos pareçam humanos e possam encantar as plateias até o assombro” (Mangani). A diretora não nega a importância dos processos de confecção e manipulação; no entanto, insiste em que o trabalho do artista vai, além disso. Nas suas atividades de diretora teatral e pedagoga, quando percebe que seu elenco fica obsessivo na busca do movimento, alerta: “o que estamos fazendo não é um trabalho técnico, mas espiritual”.

Ou como prefere Niculescu: “a técnica não é tudo… se não há imaginação, se não existem sonhos artísticos, é somente técnica” O que se depreende das afirmações é que no trabalho do ator-bonequeiro, os aspectos técnicos são fundamentais, mas técnica não é tudo. Como diz Erulli: “Para escrever um poema é preciso dominar a língua, mas também é preciso ter algo a dizer” (1994:10). Por isso, conteúdo e forma estão de tal maneira interligados que não é possível concebê-los dissociados.

Uma diferença importante entre o trabalho do bonequeiro e o do ator é que enquanto a personagem se apresenta no corpo do ator, no teatro de bonecos ela se apresenta fora do corpo do bonequeiro. Na representação, a relação com o público se estabelece mediada pelo boneco. O público não estabelece relação de empatia com o ator-animador, mas com a personagem-boneco. O desafio do ator-bonequeiro consiste em fazer a personagem-boneco atuar, em dar organicidade a essa relação. Quanto maior for sua capacidade de fazer o boneco atuar, mais estará sintonizado com a linguagem do teatro de animação.

A pesquisadora francesa Hélène Bourdel faz interessante analogia entre a animação feita pelo ator-bonequeiro e o trabalho do músico instrumentista: é possível dizer que a marionete é um instrumento, a animação uma técnica instrumental e o marionetista um instrumentista. Para isso deve dominar sua técnica, trabalhá-la. A relação que o marionetista estabelece com o objeto marionete é comparável à relação músico-instrumento: disciplina corporal adaptada às suas possibilidades e às exigências do instrumento; importância de uma dinâmica corporal, respiração, mobilidade dos dedos, são processos que ele precisa dominar em seus detalhes. Assim os termos “técnica” e “instrumento” não são redutores. Como na música, eles dão lugar à sensibilidade e à intuição criativa (Bourdel, 1995:140).

A analogia feita pela autora ajuda a compreender a importância de o ator-bonequeiro dominar as técnicas, mas reforça, ainda, a necessidade de formação sistemática contínua, pela qual adquira disciplina corporal, treino com o “instrumento” com o qual vai se expressar e a apreensão de conhecimentos que envolvem a profissão.

Pode mudar o tipo de técnica de confecção, de manipulação, e é possível até dizer que quem faz o espetáculo é o boneco, no entanto, isso só ocorre por causa da atuação do ator-bonequeiro.

Princípios da linguagem

Para conseguir a interpretação adequada, os grupos trabalham com certas “normas” que, vistas em conjunto e de forma interligada, definem princípios da linguagem do teatro de animação. São princípios como:

A “economia de meios”, princípio que trabalha com o mínimo de recursos para realizar determinada ação. Implica em selecionar os gestos mais expressivos, o movimento preciso, limpo, sem titubeios e claramente definido. É como compreender que “menos vale mais,”ou seja, não é a quantidade de gestos que garante a qualidade da ação.

“Foco” é a definição do centro das atenções de cada ação. A noção de foco pode ser exemplificada em momentos em que o boneco projeta seu olhar para o objeto ou personagem com que contracena. Quando existem diversos bonecos em cena e apenas um está realizando alguma ação, todos dirigem seu olhar ao que age. Isso dá a noção de foco, define o lugar para onde o público deve concentrar seu olhar.

“O olhar como indicador da ação,”princípio que se realiza quando o boneco, antes do início de determinadas ações, olha para o ponto exato de deslocamento. A precisão do seu olhar é determinante e indica ao espectador o que deve ser observado. Isso exige um amplo e definido movimento da cabeça, para dar a clara sensação de que o boneco olha. É comum ouvir de atores-bonequeiros que “o boneco olha com a cabeça e não apenas com o olho.”

A “triangulação”, recurso que se realiza com o olhar e colabora para “dialogar” com o espectador, fazendo-o “entrar” na cena. Trata-se de um “truque” efetuado com o olhar para mostrar ao espectador o que acontece na cena, evidenciar a reação de uma personagem, destacar a presença de um objeto. O boneco interrompe a ação com o objeto (congela), dirige o seu olhar ao público, volta a olhar para o objeto e reinicia a ação. Uma das maneiras mais comuns de realizar a triangulação é quando existem dois bonecos dialogando em cena; o que fala e age olha para o público e é observado pelo outro boneco que permanece imóvel olhando. Ao terminar sua fala ou ação, devolve o olhar para o outro boneco e os papéis se invertem. Ou seja, este age e fala olhando para o público enquanto é observado pela outra personagem. Faz-se o triângulo, a personagem que atua, o público e a segunda personagem. Isso também define o foco da cena e capta a atenção do espectador.

“Partitura de gestos e ações” é a escritura cênica, definindo detalhadamente a sequencia de movimentos, ações e gestos de cada personagem no espaço, em cada uma das cenas do espetáculo. A construção da partitura é criação do ator-animador em parceria com o diretor, obedecendo a determinações das técnicas de animação, a matéria com a qual foram confeccionados os bonecos, as articulações da sua estrutura física, e a conduta da personagem.

“Subtexto” é uma criação emocional do ator pautada nas intenções de cada personagem, e que apoia a construção e apresentação da partitura de gestos e ações. Conforme Pavis, é “aquilo que não é dito explicitamente no texto dramático, mas que se salienta na maneira pela qual o texto é interpretado pelo ator. O subtexto é uma espécie de comentário efetuado pela encenação e pelo jogo do ator, dando ao espetáculo a iluminação necessária à boa recepção do espetáculo” (1999, p.368). A manutenção do “eixo” do boneco consiste em respeitar a estrutura corporal, a coerência da postura da coluna vertebral do ser humano quando o boneco é uma personagem antropomorfa, ou obedecer à morfologia zoomórfica quando a personagem é de origem animal. Aproxima o boneco da forma “natural” da personagem que representa.

Manter a “relação frontal” é atuar de forma que o público não perca de vista a máscara do boneco. Quando o boneco realiza ações que escondem totalmente seu rosto por tempo prolongado, é difícil manter o foco e atenção do espectador na cena. A personagem perde força e dá a impressão de que volta a ser o objeto ou a matéria da qual o boneco é confeccionado. Quando o ator-bonequeiro conhece esses elementos, certamente realiza melhor o seu trabalho.

Para finalizar…

É possível perceber que o ator-bonequeiro é, antes de tudo, um profissional de teatro, um intérprete, porque teatro de animação não pode ser concebido e estudado separadamente da arte teatral. Esse profissional, aqui denominado “ator-bonequeiro,” também chamado de “ator titeriteiro”, “ator-animador”, é sobretudo um artista capaz de elaborar uma linguagem própria, singular, que não é a do ator e também não é a de um simples manipulador de objetos. É um profissional que precisa dominar múltiplos conhecimentos para a realização do seu trabalho, que é permeado de especificidades próprias dessa expressão artística.

A mais evidente dessas características se situa justamente na interpretação, na representação mediada pelo objeto-boneco. O conhecimento necessário ao trabalho de ator, ainda que seja indispensável para sua atuação, não é suficiente.

Ser ator não significa, necessariamente, ser ator-bonequeiro. A animação do objeto, incumbência principal do ator-bonequeiro, exige o domínio de técnicas e saberes que não são necessariamente do conhecimento do ator.

Ao mesmo tempo, é preciso salientar que se o ator-bonequeiro se confina nas especificidades desta linguagem, dissociando-se do trabalho do ator, tem uma atuação incompleta e inadequada. Ou seja, o ator-bonequeiro não pode prescindirdos conhecimentos que envolvem a profissão de ator.

É possível considerar o teatro de bonecos como uma linguagem com regras próprias, que estão em permanente processo de transformação, podendo ser atualizadas, recriadas ou superadas. Os acontecimentos mais recentes nos distintos campos das artes revelam mudanças, evidenciando um movimento em direção à ampliação das formas de atuação, que se mesclam com outras linguagens artísticas.

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Bibliografia

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SANTOS, Fernando Augusto. 1979. Mamulengo: um povo em forma de bonecos. Rio de Janeiro: MEC/FUNARTE

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Valmor Beltrame – Nini
Doutor em Teatro, Santa Catarina.

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Obs.
Texto retirado da Revista FENATIB, referente ao 7º Festival Nacional de Teatro Infantil de Blumenau (2003)