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Um dia, comecei a contar a história da Moura Torta para uma turma de crianças. Considerando que a narrativa era longa demais, então, passei a representar cada um dos personagens: o príncipe, a Moura, o rei, as belas moças que saltavam de dentro das laranjas, e até mesmo a população, no sentido de “prender” a atenção dos pequeninos. A cada momento de aparecimento da vilã, percebi que o grupo, antes disperso, tornava-se mais compacto revelando uma espécie de temor por parte das crianças e, ao mesmo tempo, denotava uma união de forças no sentido de enfrentar o mal. Isto, é claro, inspirou-me mais e mais a provocar-lhes o medo no intuito de querer saber que frisson era aquele que levava a imaginação de pessoas tão pequenas a um certo grau de tensão quase que incontrolável?

Nesse Contexto e partindo do pressuposto que a obra de arte tem um efeito especial no espectador, que ela é uma aprendizagem de experiência, que em se tratando de drama se processa por meio do personagem, sem, contudo dissociar razão de emoção, gostaria de me reportar à receptividade da ação dramática, por parte de alunos do Núcleo Pedagógico Integrado da UFPA, tomando como base a pedagogia das emoções, tentando abrir questionamentos para entender como se processa esse sentimento em crianças na faixa etária compreendida entre 9 e 12 anos.

Uso, para isso, contos da carochinha e lendas amazônicas que permearam o imaginário do povo paraense e que foram repassados, de geração em geração, por meio da oralidade. Esses contos, recheados de magia e encantamento, encontram-se, em parte, esquecidos, especialmente nas horas que antecedem o sono, por conta do fascínio da televisão.

Por conta disso, elegi dois meios pelos quais a ação dramática tem sido apresentada aos alunos: a narrativa do texto dramático em sala de aula e a televisão que, de uma forma ou de outra, faz parte integrante da vida da maioria das pessoas. A primeira invocando imagens a partir da escrita e a segunda, apresentando imagens diretas sem se preocupar com um entendimento mais elaborado acerca de sua criação.

Gostaria de começar minhas conjecturas, justamente, por esse objeto de fascínio e desejo, de prazeres e sonhos, de ficção e realidade, que é capaz de envolver e direcionar o olhar de toda uma massa humana quando num simples toque de tecla, como num piscar de olhos, surge majestosa, fulgurante, embriagadora, ela: a televisão. Entretanto, não posso me furtar em contar o estágio que antecedeu ao surgimento desse aparelho.

Lembro-me bem que na década de 50, o que nos envolvia, também, eram os filmes exibidos num grande telão, posto no meio da rua, onde podíamos apreciar várias histórias, dentre as quais as comédias de Chaplin. Cada um com seu banquinho às mãos, cabelos ainda encharcados pelo banho às carreiras, íamos chegando um a um, tal qual formigas à busca do doce. Todos daquela rua, indistintamente, crianças, velhos, homens e mulheres, começávamos lentamente a nos distanciar do universo imaginário criado pela oralidade das histórias contadas pelos mais velhos para adentrarmos noutro universo, também fictício, mas desta vez fruto do mundo das imagens.

Estávamos começando a ser enredados nas malhas da era da tecnologia, mesmo sem nos dar conta disso. Uma era tecnológica que nos apresentou entre outros: geladeira, liquidificador, televisão, vídeo cassete, e que veio tão rápida que nos deixamos envolver tal qual fomos envolvidos pela invenção dos irmãos Lumiére. Mal havíamos descoberto o cinema e já éramos obrigados a direcionar nossas atenções para um minúsculo aparelho, que nos maravilhava diante de notícias transmitidas no momento exato em que os fatos aconteciam. Parecia até mentira que o homem tinha ido à lua. Mas todos nós vimos através daqueles aparelhos de televisão, acotovelados às janelas das poucas casas de pessoas com maior poder aquisitivo.

A televisão nos foi apresentada como instrumento de diversão e lazer, mas como todo instrumento, sua utilização dependeria da habilidade ou inabilidade de seus manipuladores. E nessa era de revolução informacional, produto da globalização, a televisão, da mesma forma que os computadores e a Internet, carrega consigo, além de informações e conhecimento massificados, também suas mazelas. Agora estamos como reza o matrimônio na alegria e na tristeza, nas doenças e na saúde.

Com tantos estudos que existem a respeito da televisão, não caberia nesse texto um aprofundamento teórico sobre as correntes de pensamento acerca de benefícios ou malefícios trazidos por esse aparelho. Mas, vale ressaltar que sua massificação é percebida, inclusive, nos trajes e adereços dos índios que se localizam às margens do rio Xingu e que mantêm suas casas no formato ovoide, cobertas de palha. Essa massificação lhes deu uma “nova” caracterização.

Diante dessa realidade, em relação à televisão, é quase impossível lidar com crianças na faixa etária de 9 a 12 anos, de um centro urbano, sem considerar a influência que se dá por conta da interação, horas a fio, com essa mídia.

Mas, espera! Onde ficaram os contos? Para onde foram as histórias de magia e encantamento que povoavam o nosso imaginário? Acredito que devam ter sido acondicionados no chips da memória de cada um daqueles que conseguiu acessá-los. No meu ponto de vista, com certeza não foram esquecidos, pois a cada momento quando nos distanciamos no sentido brechtiano da palavra, de tudo que nos é enviado através das fibras óticas, estamos a relacionar imagem e imaginário.

E eu me pergunto até que ponto a televisão poderia suprimir a oralidade das histórias da carochinha e dos contos de uma forma geral? De que maneira se poderia “prender” a atenção desse tipo de espectador a que nos referimos acima, frente a uma história que não dispõe de imagens imediatas criadas pelo bombardeio de megatons, como é o caso das imagens televisivas?

A imaginação não está limitada à reprodução pura e simples de imagens historicamente constituídas, mas é com base nessas imagens que a criança cria novas combinações. Sabemos que as impressões que as crianças têm acerca da realidade não são agrupadas fixas e organizadamente em seu cérebro. Elas estão sempre em transformação, fazendo com que possa modificá-las, agrupá-las, ao bel prazer de sua imaginação e que refletem sempre sua cultura e desenvolvimento intelectual, resignificando a realidade mesmo que de modo fictício. Trata-se, pois da possibilidade de reinventar a linguagem teatral… através de uma série de caminhos diferentes, que chegam a ser contraditórios e opostos (Mendes, 1980).

No trabalho que realizo como professora de teatro, ao utilizar textos com alunos, procuro embasamento nas estratégias do drama, tentando trabalhar a leitura/encenação, estabelecendo entre o texto dramático e a interpretação uma tensão cênica em busca do jogo fundamental do teatro.

Recorrendo a Jacobson (1970), utilizo, como tarefa didático-teórica, algumas funções básicas da comunicação para ao final determinar a predominância das funções emotiva, conativa e metalinguística quando de uma atividade que posso considerar rotineira, que é a de contar histórias.

Nesse sentido, pensei, então, em deslocar o foco do conto europeu para uma lenda bastante conhecida da população local, intitulada A Moça do Táxi, partindo do princípio de que a imaginação é uma atividade mental que se vincula com a realidade e que tem significado e sentido para as crianças com formas de interpretações as mais variadas.

Tal foi meu espanto, ao perceber que a reação de pânico era ainda maior, quem sabe por se tratar de locais e famílias conhecidas, o que fazia saltar, por vezes, da fantasia para a realidade. Isso demonstrava que uma forte dose de agressividade combinada ao sadismo pelo desvelamento das fraquezas está na base do prazer (Mendes,1995). Considerando que a catarse é um circuito que vai de um sujeito a outro, de um desejo a outro desejo (Mendes,1995), vi aquilo tudo como vivência de aprendizagem.

Como Nietzsch, percebi que desse horror nascia uma certa alegria, já que é no trágico que se encontra a plenitude do poder humano. Por uma admirável simetria o trágico e o cômico se opõem ao tempo em que se completam na tarefa de revitalizar a consciência do receptor do drama. O efeito da catarse jamais se livra da emoção quando da recepção da obra.

Dessa forma, a partir da utilização da leitura de textos, pude observar que a seriedade dos jogos infantis perpassa por questões como a conciliação da faixa etária e a escolha do tema. Para isso, tomo o cuidado de fazer com que o receptor esteja inserido na representação ao mesmo tempo em que lhe provoco o distanciamento.

Comparo o fato de que quando refletimos a linguagem (da narração) sobre si mesma, é possível lhe dar autonomia, isto tudo vai contribuir para dar ênfase no jeito de enunciar, colocando o narrador dentro do conto e fazendo com que a linguagem passe a ser agente desse processo.

O resultado não poderia ter sido outro. Os alunos dividiram-se em grupos, elegeram seus personagens e escreveram seus contos. Brincaram com a palavra e com os mitos amazônicos.

Esses contos estão hoje vivos em suas memórias e registrados em um pequeno livro que eles denominaram “As histórias que nossas avós não puderam inventar”.

Esse tipo de trabalho encontra ressonância no universo infantil, talvez, porque as crianças estejam num estado de liberdade mental em que a dicotomia “mundo das imagens” e “mundo das ideias” ainda não tenha se estabelecido. Daí seu imaginário permitir viajar nas histórias e nos contos.

Por outro lado, a escola, estruturalmente fundada no pensamento científico, infelizmente, não consegue abarcar esses seres que sonham e conseguem dar asas à imaginação, porque para a escola essa imaginação é suspeita de ser amante do erro e da falsidade e, por conta disso, as obras de arte são expulsas, com tanta facilidade, da terra firme da ciência.

Entretanto, ao se lançar mão da ação dramática nas atividades escolares, seja por conta da narrativa do texto dramático ou das imagens televisivas, o desejo do espectador fluirá a partir das possibilidades de se lançar de um universo a outro sem ter que gastar muito, bastando, para isso, acionar a tecla da imaginação por conta de seu envolvimento com a história.

Dessa forma, podemos transitar pelos contos e histórias que permearam nossa infância, resgatando e construindo cultura porque somos únicos e múltiplos.

E, a criança e, mais especificamente, o poder da imaginação estão latentes em nossos corações e mentes.

Entrou pela perna do pato, saiu pela perna do pinto. El Rei mandou dizer que vos contasse mais cinco.

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Osmarina Gerhardt da Costa

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Obs.
Texto retirado da Revista FENATIB, referente ao 6º Festival Nacional de Teatro Infantil de Blumenau (2002)