Atores gesticulam o tempo todo para contemplar os deficientes auditivos e visuais. Fotos: Felipe S. Cohen

Crítica publicada no Site da Revista Crescer
Por Dib Carneiro Neto – São Paulo – 28.04.2017

Princesinha do teatro ensina como lidar com três tipos de medo

Espetáculo de Kiko Marques, com ‘acessibilidade criativa’ para cegos e surdos, fala dos medos de escuro, de solidão e de miséria

A peça começa, os atores surgem em cena com roupas coloridas, bem coloridas. Alguns minutos depois, adentra o palco a especialista na língua de libras e se posiciona para começar suas gesticulações, já que o espetáculo – como deveriam ser todos – tem o cuidado de querer atingir também os deficientes auditivos e visuais. A moça usa uma roupa preta, contrastando com o elenco todo colorido. Uma criança da plateia grita instantaneamente ao vê-la no palco: “– A bruxa! ” Mas não há bruxa nenhuma no enredo da peça.

Isso aconteceu domingo passado na sessão de A Princesinha Medrosa, incrível espetáculo em cartaz só até este feriado de 1º de maio, no SESC Bom Retiro, em São Paulo. Resolvi contar aqui o episódio porque ele é bem sintomático e sinalizador de uma questão importante: como manter em cena os especialistas em libras? Eles podem interferir no andamento do espetáculo? A proximidade exagerada com os atores não confunde a plateia com relação a quem é personagem e quem não é? Qual a distância que um tradutor em libras tem de ficar da cena? Existe regra para isso? Isolá-los no cantinho do palco com um foco de luz? Ou permitir que andem pelo palco livremente? Dirigi-los de uma forma que tenham marcações a cumprir, como os atores?
São questões que até pouco tempo não faziam parte das preocupações de um diretor teatral, mas que, de tempos para cá – e tomara que isso resista para sempre -, graças à tomada de consciência sobre a importância da acessibilidade de surdos e cegos, viraram pontos importantes: aprender a lidar artisticamente com isso. Já vi tentativas desastrosas, em que a especialista simplesmente “competia” com os atores, disputando com eles a atenção do público. Ou seja, a plateia se distraía demais com “a moça das libras” e parava de prestar atenção no enredo do espetáculo.

Mas o que tem se passado no palco do SESC Bom Retiro é uma louvável integração dos recursos de acessibilidade com a dramaturgia (Carolina Moreyra), a cenografia (Simone Mina) e a direção (Kiko Marques) do espetáculo. Proporcionar acessibilidade a cegos e surdos está deixando de ser um detalhe apartado das preocupações estéticas e dramatúrgicas. Obra conhecida da literatura infantil brasileira, A Princesinha Medrosa, de Odilon Moraes, ganha esta versão voltada para a chamada ‘acessibilidade criativa’, ou seja, deficientes auditivos e visuais são contemplados com recursos harmonicamente integrados à ação da peça.

As rubricas explicativas sobre a ação dos personagens foram incorporadas às falas (para ajudar o público cego a entender todos os movimentos que se passam no palco). Por exemplo: quando um ator não vai participar de determinada cena, ele relata à plateia que vai se afastar da ação central e vai ficar ali sentadinho no canto do palco. A língua de sinais (libras) é acrescentada também à interpretação dos atores, que gesticulam quase o tempo todo. E nada disso, absolutamente nada disso, ‘atrapalha’ o andamento do espetáculo, o ritmo, a estética, a fruição, a fabulação, a viagem pela imaginação. Ah, e há também o momento da visita tátil ao palco, para os deficientes visuais ou quem mais quiser. A peça começa ao meio-dia, mas o público é convidado para esse ‘prólogo tátil’ a partir das 11h45.

Diante de todos esses expedientes cênicos, por assim dizer, o público de deficientes sai do espetáculo completamente incluído, contemplado e feliz. O restante da plateia, por sua vez, enxerga esses recursos como criativa metalinguagem, algo como se o espetáculo se revelasse por dentro, escancarasse seus ‘mecanismos’ interiores, o teatro dentro do teatro. Ou seja, trata-se de uma experiência rica para todo tipo de público – e de todas as idades.

Os temas abordados pelo livro de Odilon Moraes e agora pelo espetáculo são grandiosos, fortes, necessários. A frágil princesa usa sua autoridade para lidar com seus três tipos de medos: do escuro, da solidão e da pobreza. Ela proíbe o sol de ir embora, faz os súditos dormirem todos dentro do palácio e assim por diante. A princesinha medrosa não percebe que seu medo é, na verdade, medo do próprio medo. Segundo o premiadíssimo diretor Kiko Marques, em declaração no material de imprensa, “estamos falando aqui de nós mesmos, nossos muros, barreiras e janelas, reais e invisíveis, pessoais e de todos nós”.

Um último e fundamental detalhe: A trilha é sofisticadíssima, com os teclados do veterano músico Benjamim Taubkin pontuando as ações com delicadeza, parcimônia e incrível eficiência.

Serviço

SESC Bom Retiro
Alameda Nothmann, 185, Campos Elíseos, São Paulo
Telefone: 11 3332-3600
Classificação etária: Livre (produção avisa que será melhor aproveitado por crianças a partir dos 5 anos)
Domingos e feriados ao meio-dia (12h)
Ingressos: Grátis para crianças até 12 anos. R$ 17,00 (inteira), R$ 8,50 (meia) e R$ 5,00 (credencial plena do SESC)
Temporada: Só até segunda, 1º de maio (feriado)