A montagem é criativa e sensível

Pescadora de ilusões é adaptação da obra de Clarice Lispector

Crítica publicada no Site da Revista Crescer
Por
Dib Carneiro Neto – São Paulo – 31.07.2017

A escalação do elenco é um dos grandes trunfos. Fotos: Deborah Schcolnic

A história fala sobre ser diferente

Peça incrível apresenta Clarice Lispector às crianças

Pescadora de Ilusão homenageia a escritora da melhor forma possível: com tributo às suas palavras e ao seu jeito brincalhão de ser mãe e artista

Clarice Lispector lançou seu livro infantil A Mulher Que Matou os Peixes em 1968 e nem podia imaginar o quanto essa obra seria adaptada para o teatro. Eu mesmo já vi várias versões – e, curiosamente, todas sempre muito boas. Clarice inspira acertos. A mais nova proeza se chama Pescadora de Ilusão, em cartaz em São Paulo, no Teatro Sérgio Cardoso, por mais dois fins de semana. Mais um acerto, mais um banho de criatividade em torno da mesma história: a mãe que, mesmo amando os animais, esquece de alimentar os peixinhos do aquário quando o filho viaja – e os peixes amanhecem mortos.

Pescadora de Ilusão, produção da Cia. Los Lobos Bobos, com direção e dramaturgia de GpeteanH, é um espetáculo redondinho, em que tudo encanta, tudo se encaixa, da trilha à luz, das interpretações aos figurinos, do texto à cenografia. Um time de muito talento foi reunido e o resultado é que se trata de uma das mais belas homenagens a essa grande escritora, seu universo, seus medos, suas manias, seu jeito de ser na vida e na arte. Na boca de cena, uma máquina de escrever, do tipo que Clarice usava, já diz tudo sobre a sensibilidade da montagem.

Ao falar de Clarice e de sua relação com diversos tipos de animais – peixe, lagartixa, macaco, cachorro, coelho, pato –, o espetáculo fala de sonhos, fantasias, diferenças. Mas é, sobretudo, um espetáculo sobre palavras e, também, sobre ser artista, ou seja, sobre ser ‘diferente’, vestir roupas diferentes, brincar de coisas diferentes, querer ser muitos em um só corpo. Querer ser, como dizia Clarice, e ponto final. Ser.

Melhor: a peça é um tributo aos artistas que sabem lidar com palavras. Isso transparece desde a forma literal (quando letras de verdade são penduradas ao fundo do palco até formar o nome Clarice) até à opção do adaptador de manter os vocábulos mais difíceis do texto da escritora, como forma de estimular a curiosidade das crianças. Ou seja, GpeteanH não subestimou o público mirim, não facilitou em nada, apostando na qualidade sem concessões. Maravilha, pois não há melhor forma de homenagear uma escritora senão valorizando suas palavras. Clarice sempre foi boa frasista, haja vista a inundação de citações atribuídas a ela o tempo todo nas redes sociais. O espetáculo realça muitas de suas boas frases sobre viver, brincar, escrever, ser, relacionar-se com o mundo. É lindo, sem ser piegas, sem tom de autoajuda, felizmente.

Repare na forma criativa com que GpeteanH transformou em cena potente de teatro uma simples frase perdida no meio do texto de Clarice Lispector: “Digam baixinho o nome de vocês e o meu coração vai ouvir.” Impossível resistir a convite tão carinhoso vindo do palco para a plateia. Um jeito de incluir as crianças no espetáculo, rompendo a quarta parede com sutileza.

Marco Lima, na direção de arte (cenografia e figurinos), surpreende a cada novo espetáculo de que participa. Aqui, ele usa malas repletas de adereços e bonecos (trabalho primoroso do aderecista e bonequeiro Zé Valdir Albuquerque) – e figurinos que são pura festa, todos muito brincalhões, divertidos. As roupas das personagens são tão lúdicas que estimulam a vontade de brincar o tempo todo. Nota dez.

E também nota máxima para a trilha sonora, com canções incríveis compostas especialmente pelo craque Pedro Paulo Bogossian, diretor musical. É hilário ver dois patos formando dupla caipira e insistindo em trocar a letra da canção para “o pato não lava o pé”, em vez de sapo. A garotada vibra na plateia. Destaque também para a canção dos coelhos e a da macaca-vedete. Momentos deliciosos da peça, que pode ser explorada nas escolas também como iniciação musical, pois há vários ritmos e gêneros praticados na trilha – e as crianças podem brincar de reconhecê-los.

Mas o grande acerto mesmo, a meu ver, foi a escalação do elenco. A química entre Carol Badra e Mel Lisboa chega a emocionar. Elas esbanjam carisma, talento para contar e cantar e, principalmente, disposição para brincar. Ambas dominam as cenas com muita segurança, como se falassem delas mesmas, na condição de artistas que brincam, que choram, que riem, que se divertem juntas. Duas meninas sapecas, espirituosas, inteligentes.

As cenas de plateia (a do cachorro e a das lanternas acesas no rosto) são bem-feitas, com muito bom gosto. As crianças sentem vontade de participar, responder diretamente às atrizes – sempre um risco, pois um elenco despreparado pode perder o controle e deixar as crianças desandarem o ritmo da narrativa. Carol e Mel sabem desse risco – e o controlam com talento típico de boas contadoras de histórias. Há um misto de delicadeza e euforia que funciona na medida certa entre elas.

Desde o início, agindo como fio condutor para as várias histórias de animais, existe na trama um coração que precisa voltar a bater – em Clarice, para Clarice, por Clarice. Imagem poderosa, cativante, sem ser piegas. Pescadora de Ilusão faz isso: faz o coração do público bater forte, diante de tantos acertos, diante de tão competente espetáculo, diante de um teatro para crianças feito com calor, sinceridade, entrega absoluta de uma equipe nota mil – com direito a uma tocante cena final, em que as atrizes citam nomes de quem elas conhecem na plateia e agradecem, agradecem, agradecem… Um arremate simples, mas carregado de emoção ao celebrar de forma explícita a rara comunhão que se deu entre palco e plateia durante os 60 minutos de duração da peça – incluindo uma bela chuva de bolhas de sabão. Vá e se encante, do início ao fim.
Os peixinhos vermelhinhos do filho de Clarice Lispector não morreram, eternizaram-se, afinal, por uma boa causa: o teatro agradece.

Serviço

Teatro Sérgio Cardoso – Sala Paschoal Carlos Magno
Rua Rui Barbosa, 153. Bela Vista. São Paulo
Telefone: (11) 3288-0136
Capacidade: 144 lugares
Sábados e domingos às 16h.
Ingressos: R$ 30,00 (inteira) e R$ 15,00 (meia)
Indicação etária: Livre
Temporada: De 24 de junho a 30 de julho de 2017