Cacá Mourthé conseguiu patrocínio para que o arquivo de Maria Clara Machado, que inclui desenhos, pinturas, aquarelas, anotações pessoais, peças manuscritas, roteiros e até cartas e bilhetes de amigos, como Drummond (ao lado), passasse por um processo de preservação, conservação e catalogação. Foto: Camila Maia.

Matéria Publicada no Jornal O Globo
Por Roberta Oliveira – Rio de Janeiro – 23.07.2005

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Cacá Mourthé, sobrinha da fundadora do Tablado, organiza o diário e as anotações pessoais da tia

Meses antes de morrer, Maria Clara Machado cedeu à insistência da sobrinha, a atriz e diretora Cacá Mourthé, e lhe entregou o diário que escreveu entre dezembro de 1945 e novembro de 1952.

– Ela já não me aguentava mais pedindo o diário, um dia me chamou lá e me disse: “leva logo isso, vai” – dia Cacá.

O restante dos documentos pessoais da autora de Pluft, o Fantasminha ficou em sua casa até 2001, ano em que ela morreu. Agora, além do diário, as cartas recebidas por Maria Clara ao longo de seus 80 anos, os cadernos contendo boa parte de suas peças manuscritas, inclusive algumas inéditas, o esboço de um roteiro cinematográfico nunca realizado e muitas anotações de ideias soltas logo deixadas de lado; a correspondência trocada por seu pai, o escritor Anibal Machado, com sua mãe Aracy; e dezenas de pinturas, desenhos e aquarelas feitos por ela estão de volta ao Teatro Tablado. Lá, graças ao patrocínio da Petrobras, todo o acervo está passando por um processo de preservação, conservação e catalogação.

– Quando Clara morreu, levei tudo o que havia na casa dela para a minha e fiquei esperando até que aparecesse algum patrocinador para organizar o acervo – diz Cacá.

A menina dos olhos da sobrinha de Maria Clara continua sendo o diário. Não é para menos. Neles, ela discorre sobre seu pai (“Papai é o homem que todos adoram; o homem que mais sabe compreender; é por isso que ele é um bom escritor. Não interessa a classe social, a cultura ou a idade, ele a todos ouve e a todos recebe”), sobre os amigos do pai, como Vinicius de Moraes (“É o homem mais fraco que conheço quanto a mulheres e como é muito insinuante não há mulher que não o adore”) e até sobre religião (“Confesso que fiquei envergonhada do meu catolicismo: fraco, sem coragem, nem humildade, até na minha religião dou show-off”).

Ao ler os diários, também é possível se dar conta de que aquela mulher de 24 para 25 anos ainda não sabia direito o que viria a ser. E que, por mais incrível que pareça, não via no teatro sua possível realização: “Teatro? Escultura? Casamento? O teatro será sempre meu sonho. E como nunca experimentei de fato, será sempre o sonho (sublinhado). Porque a verdade é que quando começo uma coisa com entusiasmo logo vem a rotina e o desânimo. A escultura foi ótima enquanto durou. Cheguei a desejar ser gênio, mas atualmente nem penso mais nisto. Talvez mais tarde recomece. A única coisa que realmente me interessa é que todos gostem de mim, em compensação também sei gostar.”

Algumas páginas depois, naquela datada “outubro1946”, Maria Clara parece começar a se encontrar: “Comecei o curso de teatro de bonecos. Estou entusiasmada e não penso em outra coisa. Pretendo fazer peças para começar uma trupe no Patronato. Mais tarde, poderíamos até levar os bonecos em viagem pelo interior, acampando e representando para as crianças de cada cidadezinha. Sempre adorei teatro e se não conseguir fazer nada, meus bonecos farão por mim”.

– Ainda não era o Tablado, mas já era uma centelha – analisa Cacá, que não vê a hora de publicar o livro. – A ideia é botar ao lado do diário em si textos sobre pessoas que ela cita, sobre o Rio daquele tempo e outros detalhes.

Planos para o acervo, assim que tiver terminado o trabalho de conservação e catalogação, é o que não faltam. Cacá está ansiosa para analisar a fundo os mais de 20 cadernos de anotações. Até porque, numa primeira folheada, acompanhada pelo Globo, ela já descobriu coisas interessantíssimas. No primeiro caderno, escrito em 1953, Cacá encontrou uma peça chamada O Visionário, passada numa pequena cidade do interior.

– Com certeza é um texto adulto e com certeza é inédito – comentava Cacá, enquanto folheava o caderno. – Olha, esta personagem se chama Firmina. É um nome que Clara retoma depois, em A Gata Borralheira.

Algumas páginas depois, outro texto, mais uma vez adulto, O Suicida. Este, no entanto, está incompleto.

– Tem muito texto que ela começava e depois parava ou retomava a ideia de outro jeito – conta Cacá. – O processo criativo é muito louco, mas ter estes diários nos faz entender um pouco mais como era o dela. É um caótico que deu certo.

Antes mesmo de o trabalho ter terminado uma coisa já pode ser dita: o processo era confuso. Não só Maria Clara começava a escrever uma peça e a deixava pela metade, como, entre uma peça e outra ou entre uma ideia e outra, há rabiscos, pensamentos soltos, pontuações de partidas de buraco e desenhos de criança.

– Olha só como ela era, eu desenhava nos cadernos dela e ela nunca se incomodou – diz Cacá, apontando para um barco. – Aos sete anos, eu adorava desenhar barcos. Depois passei a querer imitar Clara, que gostava de criar personagens a partir de círculos, mas o resultado não era tão bom.

Manuscritos bem Diferentes de Versões Finais – Cenas e Nomes dos Personagens Eram Alterados Mais Tarde

Há outras descobertas no material de Maria Clara Machado. Mesmo as peças que ela não abandonava e que viriam a ganhar os palcos, como O Rapto das Cebolinhas, estão, nos manuscritos, sem a cena final.

– Ela devia criar nos ensaios ou quando passava o texto para o papel com a máquina de escrever – imagina Cacá.

Os nomes dos personagens também mudavam quando os textos eram datilografados. Antes de ser Tio Gerúndio, o personagem de Pluft, o Fantasminha chegou a se chamar Gregório e Tenório. Isso sem falar em cenas inteiras que eram retiradas. O manuscrito de O Cavalinho Azul é o que parece ser mais diferente da versão que depois ganhou os palcos.

– No original, os músicos têm grande importância, cenas inteiras, todas cortadas quando a peça estreou.

Sonho Dela, Nunca Realizado, Era Fazer Cinema

Além das peças, há, nos cadernos, rascunhos de ideias sobre teatro (“Tenho a impressão que o público continua ávido de espetáculos. A prova está no sucesso do TBC de São Paulo aqui no Rio. Com entradas a 80.000 e com a vida cara como está o Ginástico continua cheio”), os primeiros capítulos da novela adolescente A Patota, dirigida por Daniel Filho; além do que parece ser o esboço de um roteiro de cinema, chamado Antonio José da Silva, o Judeu.

– Fazer cinema era o sonho de Maria Clara, mas ela nunca o realizou – lembra Cacá, que, assim que o trabalho de pesquisa terminar quer começar a montar os textos inéditos de Clara e publicar o que ainda não estiver nos livros. – Mas ainda temos muito trabalho pela frente.

No Baú, Textos de Camus e Drummond

O trabalho mais adiantado é aquele com as cartas, não apenas as recebidas por Maria Clara Machado, mas também aquelas trocadas entre seu pai, o escritor Aníbal machado, e sua mãe, Aracy, que ela guardou até morrer. Entre os textos recebidos pela autora e diretora, há um escrito pelo francês Albert Camus, muitas de Maria Julieta Drummond e outros com a assinatura do próprio Drummond, inclusive um em que o poeta manda um primeiro esboço de uma ópera, que depois enviaria na íntegra para a amiga.

Por meio das dezenas de cartas trocadas por Aníbal Machado e sua mulher, Aracy, é possível perceber o quanto o casal se amava. Numa das trocas de correspondência, aparece a referência de Aracy à possibilidade de estar, mais uma vez, grávida: “Até hoje não resolvi meu caso de todo mês. Será o herdeiro? Estou achando… triste mesmo, sozinha”.

– Eles sempre sonharam com um filho homem, mas já tinham cinco meninas e não queriam mais, porque meu avô era escritor, não tinha muito dinheiro para sustentar a família – explica Cacá.

Na resposta à mulher, ele também se mostra preocupado: “Aracy, espero que quando receber esta (carta) já esteja livre do receio de um filho. Todo mês é essa tristeza, não é?”. O receio, no entanto, não demorou para se transformar em verdade. E em mais tristeza, já que mãe e filho – seria homem mesmo – morreram no momento do parto. Pela primeira vez, ela tinha resolvido ter o filho numa clínica e não em casa, como tinha acontecido até então.