Critica publicada em O Estado de São Paulo – Caderno 2
Por Mariângela Alves de Lima – São Paulo – 1986

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Os Conways, esses chatos

É curioso que alguém escolha, entre a copiosa oferta da dramaturgia mundial, uma peça de J. B. Priestley. Suas observações do social têm a linearidade de um manual e nem um pingo de brilho, controvérsia que anima as peças de seus pares ingleses como Bernard Shaw ou Oscar Wilde, citando apenas os clássicos. Faltam inteligência e agilidade nas armações das cenas onde as personagens entram e saem por motivos óbvios: desocupar um espaço e dar lugar à próxima fala. Neste campo Priestley não é, nem de longe, um rival à altura dos dramaturgos de “boulevard”. Além disso, suas personagens andam em linha reta em uma ou outra direção, desprovidas de imaginário e, portanto, da ambigüidade ética que faz avançar o drama. Sobre esse caldo morno, verdadeira salada das correntes estéticas em voga no seu tempo, Priestley salpica um exótico tempero de exoterismo e física para amadores, que chega a ser constrangedor.

Priestley escreveu coisas piores do que O Tempo e os Conways, peças que já foram de interesse de excelentes companhias: Esquina Perigosa, Estive aqui Antes e Está lá fora um Inspetor. Ainda assim os Conways formam uma família especialmente chata, dizendo em dois tempos o pobre paradoxo da felicidade absoluta e da degradação absoluta.

O paradoxo realmente estimulante da encenação apresentada pelo grupo Tapa é este: como um grupo de artistas consegue criar um espetáculo belo e envolvente a partir de um texto tão insignificante? Deixa-se o teatro com a sensação de ter contemplado um camafeu levemente desgastado. Ressoam murmúrio de vidas que, ainda que pouco interessantes, instauram um sentimento de familiaridade e melancolia.

Talvez o grupo tenha escolhido esta peça para testar a sua possibilidade. De qualquer forma é assim que a direção de Eduardo Tolentino de Araújo enfrenta o texto. Cada ato tem o seu estilo marcado, como um passeio histórico pelas formas que deram origem ao teatro contemporâneo. Há o drama romântico, o drama realista e um terceiro ato, onde os cortes de luz isolam os personagens e lhes atribuem a profundidade de criatura que representam a psique coletiva.

Há inteligência nesta concepção, mas há, sobretudo, uma execução perfeita de diferentes ritmos, intensidade e formas de relacionamento entre as personagens. É uma direção que sabe propor, que sabe criar além do material visível, aliando a essa capacidade de invenção conhecimentos técnicos para realizar as idéias nos mínimos detalhes. Não há um só gesto aparentemente forçado e, no entanto, os atores se agrupam e se separam para formar conjuntos de efeitos plásticos. Essa concepção, que alia o exercício de estilo a um significado emocional, é aplicada também à cenografia. O casulo de tecido que envolve os Conways nos anos felizes, com uma tonalidade de pele, recobre uma estrutura rígida e escura. A solução cenográfica está colada ao sentido.

Com um elenco feminino afiadíssimo (tão bom que Beatriz Segall pode se permitir o luxo de contracenar no mesmo patamar) e um grupo masculino ligeiramente atrás, o Tapa chega a São Paulo com um trabalho de qualidade surpreendente. É um grupo que pode, se quiser, encenar Tchecov. Não é pouco.