Critica publicada na Revista Fatos
Por Tânia Brandão – Rio de Janeiro – 09.12.1985
Brincando com a ilusão do tempo
Quem nos dera que o tempo fosse apenas banal decorrência do relógio. O problema é que o tempo é o tempo, passa apesar dos pulsos. É a lição primeira da alma humana. Os indivíduos vão ficando, qual folhas secas. Simplesmente porque nós, para pensar o tempo, somos escravos do espaço. Desde a Grécia. Cronos (Tempo) é filho de Urano (Céu) e de Geia (Terra). O segredo básico do autor é que ele captou esta crueldade original, que percebemos todos ainda na infância da alma ocidental. Para ele somos folhas secas, até como os passes de Didi – mecanicamente o tempo nos devora e sabemos disso. Temos a nosso favor esta chance, que nem sempre aproveitamos. Como a família Conway, com amarga ironia devorada pelo tempo diante dos olhos do espectador.
O texto é imperdível. É um clássico internacional do século XX como exercício de ator. É de J. B. Priestley, um dos maiores autores de teatro do nosso século. Foi o primeiro presidente do Instituto Internacional de Teatro (UNESCO – 1948). Mestre da técnica da peça realista bem feita, flertando com as teorias de J. W. Dunne sobre a relação do indivíduo com o tempo, ele foi capaz desta pequena obra-prima em que insinua que, no mínimo, temos a percepção vaga de que nossa vida é um barco furado à deriva, uma certeza na hesitação diante de tudo (a de que passamos), uma hesitação diante do imponderável (de percebermos que de alguma forma construímos a nossa passagem pelo tempo). Somos bola nos pés de Didi, logo folhas secas, algum cálculo solto no espaço. Mas algum cálculo. A trama trata de dois momentos na vida da família Conway, uma viúva com seis filhos e amigos próximos, legítimos representantes da classe média alta de Newlingham. O primeiro momento é 1919, numa festa de aniversário da filha intelectual que quer ser escritora, Kay Conway. Esta mesma situação, vista da sala dos fundos da casa, a partir dos ecos da festa em que se brinca de charada, é tratada no primeiro ato e no último. No segundo ato, num golpe de teatro a um só tempo sensacional e cruel, a família é mostrada dezenove anos depois inteiramente dilacerada pelo tempo, apenas um punhado de sonhos arrogantes destruídos, da maioria dos personagens ser apenas amargura cega diante da autoliquidação. A volta á situação de alegria do primeiro ato torna a peça arrebatadora, porque põe a nu a fragilidade essencial do ser humano.
Trata-se de uma montagem de importância fundamental na carreira do grupo Tapa, que com este trabalho está abandonando a ligeireza meio caricata, que predomina sempre em todo grupo jovem, para ingressar ao estudo meticuloso de realismo. Persiste uma ironia leve na linha de direção, preocupada em desfazer teatralmente a ilusão, assim como o texto faz. Este achado – a reprodução cênica do truque do texto – explica a união (difícil de realizar tecnicamente) do primeiro com o segundo atos, com o elenco quase todo em cena ajudando uma das mais belas mudanças de cenário vistas por aqui nos últimos tempos. O cenário de Ricardo Ferreira não só é eficiente, mas além de tudo é belíssimo.
É teatrão de bom gosto assumido.
Como decorrência natural do trabalho em equipe amadurecido, o espetáculo tem uma coesão absoluta, o elenco está tão afinado que mesmo a eventual insegurança de um ou outro ator não chega a incomodar. Trata-se de um projeto de estudo de realismo levado às últimas consequências, o que fica evidente no trabalho de Aracy Balabanian, capaz do despotismo e da doçura da Senhora Conway, ou na atuação de Celso Lemos, revelador de toda a serenidade Blakeana de Allan. É importante sublinhar a revelação que é a jovem Luciana Braga (Carol), que está estreando. A construção realista preciosa está presente ainda no desenho de luz, assinado por Samuel Betts e Juarez Farinon, apesar de uns coloridos exaltados, nos figurinos de Lola Tolentino e na música incidental concebida por José Lourenço. O espetáculo é uma pequena jóia, como um relógio. A caixa de cena é um mostruário de precisão que o grupo manobra com absoluta maestria.
O tempo não é só algo que nos funda a partir de um espaço e que daí nos varre, o tempo é uma produção humana inapelável, o espetáculo fala disso com uma competência rara. Para ajudar a todos nós, pobres mortais, a conquistar as horas. Em uma palavra, a ter na alma mais do que a percepção mecânica do tempo, exatamente a sua reinvenção como lei trágica primeira da vida. Se você já percebeu que o relógio no seu pulso resolve muitas coisas mas não adianta nada de transcendental, não deixe de ir ver. É imperdível.
Serviço: O Tempo e os Conway, de J.B. Priestley. Direção de Eduardo Tolentino de Araújo. Com Aracy Balabanian, Celso Lemos, Denise Weinberg e outros. Teatro Ipanema. Rio