Crítica publicada no Jornal do Brasil
Por Flora Sussekind – Rio de Janeiro – 19.11.1982

Barra

O Camaleão Alface Ataca Outra Vez

Dentre todas as peças de Maria Clara Machado, O Rapto das Cebolinhas, atualmente em cartaz no Tablado, tem uma característica toda especial: foi a única que deu início a todo um ciclo, cujo eixo é um de seus personagens centrais, o Camaleão Alface. A peça e o personagem, quando de sua primeira encenação em 1954, fizeram tanto sucesso junto à plateia infantil que a autora se viu obrigada a inventar novas aventuras para o sinistro e cômico ladrão de cebolinhas. Como O Diamante do Grão-Mogol, O Rapto das Cebolinhas é basicamente uma peça de aventuras. Sem grandes mocinhos ou lutas de espada como em O Grão-Mogol, é claro. Porque O Rapto das Cebolinhas tem como cenário o pequeno sítio de um velhinho e por personagens apenas alguns animais, os netos do proprietário, uma veterinária e o vizinho: Camaleão Alface.

E são exatamente as crianças e os animais da fazenda que funcionam como detetives e desvendam o roubo das cebolinhas capazes de produzir o chá da juventude. É fascinante, assistindo à remontagem da peça de 1982, perceber como o texto continua eficiente.

É um barato olhar para trás e ver algumas crianças de pé, tamanha a tensão, mas mudas para não perderem nada. Justamente o contrário do que acontece em grande parte dos espetáculos infantis em temporada no Rio hoje. A regra geral é que as crianças fiquem mais ou menos quietas nos dez minutos iniciais para ver se acontece alguma coisa e gritem e corram pelos teatros na hora restante quando sentem que não há mesmo nada acontecendo em cena. O oposto do que acontecia na plateia de O Rapto das Cebolinhas. De início, ainda a inquietação inicial dos espectadores infantis e, à medida em que iam percebendo a trama, silêncio e tensão.  A conquista do espectador se vai fazendo aos poucos com a própria história e com uma encenação inteligente que mistura todo o tempo pitadas de suspense e pitadas de riso, personagens cobertos por capas pretas e situações cômicas, roubos, revólveres e uma veterinária colocando sempre o estetoscópio na pessoa errada.

Como num bom filme de Hitchcok, às vezes Maria Clara deixa o seu espectador de pé de tanta tensão, às vezes relaxado rindo com as trapalhadas do cachorro Gaspar ou os desmaios de Florípedes e Simeão. Isso para logo depois, num excelente jogo com a ambientação cênica de Kalma Murtinho e a iluminação de Cláudia Neves, voltarem os momentos de expectativa para a plateia infantil. E tudo o que vê do ladrão é a capa preta, além de uma sombra temível projetada no fundo do palco. Sombra que aos poucos vai recebendo contornos mais nítidos à medida que os espectadores infantis, identificados com os netos do Coronel, passam a funcionar como detetives e a manejar prazerosamente as “pistas” que a peça lhes dá.

O Rapto das Cebolinhas tem o que a maior parte do teatro produzido no Brasil para crianças atualmente não tem: de um lado um texto excelente e de outro uma belíssima encenação, cuja base é exatamente a plateia para a qual se dirige: a criança. Porque de pouco adianta um espetáculo apenas plástico, do mesmo modo que um texto arrastado também não funciona em teatro. Meio parodiando a Alice de Levis Carroll, talvez se pudesse perguntar: de que serviria um espetáculo que fosse apenas plástico? Ou com excesso de verbalismo. Teatro é “corpo”, mas também “palavra”. Pena que muitos grupos de teatro infantil tenham tirado a palavra de cena como se a criança não tivesse “raciocínio verbal”. O sucesso que O Rapto das Cebolinhas faz junto à plateia infantil parece provar o contrário. Do mesmo modo que atores jovens como marcos Jardim, José Raimundo Padilha e Laura Vivacqua, com invejável emissão e um ótimo desempenho, jogam por terra os habituais estereótipos de uma interpretação acrobática ou tatibitate quando se trata de teatro para crianças. E mais uma vez o Tablado volta a atacar, com mais uma lição do que é fazer um bom teatro infantil.

Obs.
Leia a matéria sobre o espetáculo, de Maria Helena de Almeida, do Jornal do Brasil, clicando aqui