Crítica publicada no Jornal A Notícia
Por Armindo Blanco – Rio de Janeiro – 09.06.1978
Uma Alegoria Exemplar
À exceção de alguns órgãos oficiais e do bissexto produtor de teatro infantil Rodrigo Farias Lima, ninguém deu maior importância à recente visita de Ruest e Pato ao Brasil. Eles vieram participar com seu espetáculo Le Magicien des Couleurs do Festival de Teatro de Bonecos, realizado em Petrópolis. E, em seguida, lecionaram sobre a sua especialidade em dois cursos compactos no Centro Gulbenkian, a convite do Departamento Municipal de Cultura. A imprensa, porém, que desdenha o teatro infantil, os ignorou.
E eles, muito ocupados com o tempo breve de que dispunham para desenvolver suas tarefas pedagógicas no Rio e supervisionar a montagem brasileira do Magicien, também nada fizeram para difundir suas opiniões e tornar conhecido aqui o trabalho que estão realizando no seu atelier de sensibilização lúdica, para crianças de todas as condições sociais, em Orleans, na França.
Felizmente, além dos ensinamentos que ministraram no Centro Gulbenkian, deixaram-nos O Mago das Cores na irretocável versão de Olga Savary em português, atualmente em cartaz no Teatro da Praia. Assim, na ausência das teorias que poderiam explicitar em longos papos com jornalistas e críticos, eles nos mostram, na prática, a importância que atribuem à criatividade e à ética em termos de teatro infantil. Creio poder deduzir que sua preocupação básica é a de suscitar o senso da novidade, da mudança, da exigência que recusa o já visto ou as explicações mistificadoras. E, sobretudo, a de não trapacear, vale dizer, a de não tratar as crianças como se elas fossem débeis mentais, em vez de seres humanos em formação. Por isto, me congratularia se sua visita ao Brasil fizesse frutificar as sementes do fecundo exemplo que nos oferecem, no campo artístico e no da integridade.
Não pretendo sugerir que mais uma vez nos curvemos à França. Apesar dos pesares, temos, entre nós, exemplos igualmente admiráveis, artistas que respeitam a criança e não lhe vendem gato por lebre. Ainda recentemente tive ocasião de me referir nesta coluna e no meu comentário dominical em O DIA ao Grupo Hombu e ao seu maravilhoso e premiado espetáculo A Gaiola de Avatsiú, que começava por ser radicalmente brasileiro, na forma e no conteúdo, e constituía nobre exaltação à liberdade, instigante até para adultos que dela se desabituaram.
E, em termos de teatro de bonecos, penso que quem tem o Mamulengo Só-Riso pode pedir meças ao mais pintado, sem temor de fazer vexame no confronto.
Mas uma boa lição nunca é demais e só pode ser proveitosa para nós num momento em que, devido à irracional proliferação dos subsídios oficiais, se multiplicam os negócios de ocasião sob o rótulo de “teatro infantil”. Produtores improvisados, atores de circunstância, em sua maioria profissionais frustrados que não conseguiram situar-se no mercado global, cenógrafos que mais parecem (maus) pintores de forro, textos da pior qualidade, tudo isso e o mais que só faria alongar esta lista calamitosa, compõem o quadro típico do teatro poluído e poluidor que está sendo imposto às crianças, com a cumplicidade de pais desinformados e irresponsáveis. E é aí que O Mago das Cores assume particular relevância, enquanto realização e enquanto proposta de teatro para plateias mirins.
Ruest e Pato, com um cenário que corresponde a um livro de imagens, começam por nos exibir um mundo de que a variedade pictórica está ausente.
Um mundo cinza, em que predominam o tédio e a paz neutra dos cemitérios.
Um mundo que não convida a nenhuma espécie de participação imaginativa.
Pressionado pelo desespero geral, o Mago entrega-se a experiências insones e faz surgir o azul. Depois, o amarelo. Em seguida, o vermelho. Mas nenhuma destas cores, sucedendo-se alternadamente na paisagem, lhe alterava a uniformidade. Mudava o visual, com a troca de uma cor por outra, mas não a vida, em sua complexidade. Surgiam os novos rios, mas não a cachoeira, a foz, o mar. O Mago ensaia, então, a sua obra-prima: o arco-íris. E num arco-íris cabe toda a fantasia do homem, toda a sua ânsia, que nada consegue represar. Para transcender o vulgar e o comesinho, o trivial e o submisso. Misturando as cores, rasgam-se insuspeitadas fronteiras, multiplicam-se os horizontes, alarga-se o mundo até o infinito cósmico.
Acho, pelo que me foi dado ver no Teatro da Praia, que as crianças, melhor do que ninguém, captam o significado desta alegoria exemplar. Não se trata da habitual mascarada, menos ainda de mágicas convencionais exaustas que, hoje em dia, já não convencem a infância que convive, no recesso do lar, com as mulheres biônicas e os viajantes siderais da tevê. Trata-se de um desafio, lúdico e racional, às sensibilidades em botão, de uma volta aos valores básicos deformados pela paranoia televisiva. As crianças aprendem o caráter evolutivo da escalada do homem, o mérito da persistência e da pesquisa, o lúdico prazer de transformar que levou o ser primevo do Afganistão a fundir o cobre ou o chinês da era Chang a ligar as matérias que comporiam o bronze.
Chegará uma época, na escola, em que elas terão de estudar os arco-íris científicos, de Copérnico e Einstein, as descobertas que revolucionaram a vida e a condição do homem e lhe permitiram assenhorar-se dos segredos do Universo: a química, o oxigênio, o átomo. Neste sentido, O Mago das Cores funciona como uma espécie de graciosa introdução, combinando diversão com pedagogia no melhor sentido da palavra.
Ao espetáculo brasileiro talvez falte a sólida mímica de Serge Ruest, que fazia o Mago na versão original francesa. Mas seu substituto caboclo, o moço Dirceu Rabelo, compensa o menor lastro técnico com a irradiante simpatia conseguindo um desempenho não tão eficaz, mas ainda assim bastante atraente. Já José Roberto Mendes, que ocupa o lugar de Pato na manipulação dos bonecos e como eventual parceiro de carne osso do Mago, realiza trabalho que nada fica a dever ao do mestre.
Houve, na montagem brasileira, o propósito de transcrever literalmente, sem outras achegas que não as da sensível poetisa Olga Savary na tradução, o espetáculo francês, que venceu vários torneios internacionais e merecem a honra de participar no programa inaugural do Centro Pompidou, de Paris. Tal propósito me parece defensável, na medida em que Le Magicien des Couleurs tem indiscutível conteúdo universalista.
Mas teria sido de tentar, talvez, um maior aprofundamento no abrasileiramento formal, sobretudo ao nível da interpretação e da cenografia. O tema é perfeitamente assimilável, mas a forma permaneceu francesa, inclusive na faixa musical, cujo barroquismo erudito tem pouco a ver com a nossa realidade cultural.
O essencial, porém, não foi lesado: as crianças encontram, no palco do Teatro da Praia, não um “mágico” tirando coelhos de uma cartola furada, mas um ser humano como deveriam ser todos: empreendedor, ativo, indomável, voltado para a transformação do meio em que vive. E que, como quem cumpre missão inalienável, extrai humor e poesia do seu pote de cores, para que as mentes recebam estímulos vitais e todos recuperemos a alegria saudável, essa sim, mágica, sem a qual a vida é cinza e o arco-íris um sonho adiado.
O Mago das Cores, de Veronique Rateau em versão portuguesa de Olga Savary. Produção de Rodrigo Farias Lima. Direção Geral de Serge Ruest e Pato, cenário de Jean Philipe Boin, músicas de Jean Dennis Bennet.
Intérpretes: Dirceu Rabelo e José Roberto Mendes, este manipulando também os bonecos. Em cena no Teatro da Praia, aos sábados e domingos, às 16 horas, com ingressos a Cr$ 60 (adultos) e Cr$ 40 (crianças).
Cotação: **** (bom)