Crítica publicada no Jornal do Brasil – Caderno B
Por Lucia Cerrone – Rio de Janeiro – 25.01.1997
Ficção científica que funciona bem
Em 1993, o diretor Ernesto Piccolo e o autor Rogério Blat se juntaram para redescobrir o Rio de janeiro. Tudo começou num curso de teatro, no Cândido Mendes, que rapidamente ficou pequeno para o tipo de espetáculo que ali se encenaria. Quem conhece a obra completa da dupla sabe exatamente quão impossível seria lidar com 70 atores no minúsculo espaço. Transferido para o Centro de Artes Calouste Gulbenkian, eles inauguraram o projeto Rio em Quanto é Tempo. Dele fazem parte os espetáculos Funk-se, Com o Rio na Barriga e O Passado a Limpo.
Quando se pensava que estava completa a trilogia, a dupla Blat e Piccolo volta à cena com O Futuro Era Hoje, também desta vez para o Calouste Gulbenkian. O novo espetáculo é uma síntese dos anteriores, que estão intimamente ligados em seus enredos. Não são exatamente para serem vistos como um seriado, tipo Bucker Roger e Flash Gordon (estes são modelos previstos já para o próximo espetáculo, o DNA Brasil), mas, de qualquer maneira, têm enredo cheio de referências e tramas que se interligam na história.
Em O Passado a Limpo, tudo começa realmente na época da vinda da Corte portuguesa para o Brasil, quando três passageiros do futuro ajudam o menino Mariano a construir uma passagem secreta no lugar onde muitos anos depois seria instalada a Rodoviária Novo Rio. Em Com o Rio na Barriga, mesmo sem nenhuma viagem intergaláctica, é criado o herói nacional Aristides, uma espécie de Chance Garden de O Videota, que conserta o país com sua desconcertante inocência.
Pois bem: em O Futuro era Hoje, passado em 2023, o mundo esta um caos, e a F.N.A.L (Frente Nacional Aristides de Libertação) se reúne para mandar de volta ao passado um voluntário que impeça o assassinato do herói Aristides. Isso no exato momento em que ele estava na Rodoviária Novo Rio embarcando para Brasília para se encontrar com o presidente da República.
Mas se este é o plot principal do Futuro, seu enredo tem humor rascante que envolve a plateia além da compreensão da Intrincada trama. Em 2003, as famílias de maior projeção social são formadas de masculino e masculino. O casal drag queen Valter (Afrânio Barreiros) e Soraya (Leo Cunha), em hilariante performance, sofrem com o filho errado que o banco de sêmen lhes mandou. O Creuza, que deveria ser branco, homossexual e judeu, reunindo assim três minorias, é negro e heterossexual, para a desgraça e vergonha da família. Mas é justamente o Creuza que volta ao passado para impedir a morte de Aristide e salvar o futuro.
A direção de Piccolo é afinadíssima com o texto futurista de Blat. As famosas cenas de multidão – desta vez são 60 atores no elenco – criam um espetáculo supermovimentado que avança pela plateia em perfeita sincronia com o palco. Os figurinos de Kalma Murtinho lembram os clássicos da science fiction, sem a padronização costumeira. Para cada personagem foi criado um traje diferente, onde se destacam os adereços de Beto Silva. As rampas cenográficas Gill Haguenauer estão bem colocadas no espaço, mas é a iluminação de Dimitri Martinovich que pontua o espetáculo em precisa respiração.
Fechando o evento teatral, as coreografias de Daniela Visco e a trilha musical irretocável de Charles Khan e Guilherme Hermolin têm resposta imediata na plateia. Uma aventura teatral da melhor qualidade.
Cotação: 3 estrelas (Ótimo)