Crítica publicada no Jornal do Brasil
Por Flora Sussekind – Rio de Janeiro – 17.09.1982
Aí Vem o Dilúvio
Só pela conquista do Teatro da Pequena Cruzada para o teatro infantil já estaria plenamente justificada a montagem de O Embarque de Noé na sua nova versão a cargo de Toninho Lopes. Sem dúvida, um dos motivos de a qualidade dos espetáculos infantis ter caído tanto é a falta de um espaço próprio para ensaiar e montar as peças. Os grupos ligados a teatro infantil conhecem de cor as dificuldades de se ocupar o horário vespertino de um teatro que ainda tem outro espetáculo à noite. São obrigados a construir cenários com dimensões tais que não tirem do lugar nada do espetáculo adulto. São obrigados a usar uma iluminação que também não mexa com a do outro espetáculo. E assim por diante. Com todas estas restrições fica mesmo bem difícil realizar experiências renovadoras no campo do teatro para crianças. Por isso o sonho de todos os grupos é, em geral, a criação de algumas salas de espetáculo exclusivamente para teatro e shows voltados para a plateia infantil. O exemplo que sempre se tem em mente é o do Tablado que, com sua autonomia, consegue fazer maravilhas no pequeno espaço cênico disponível. E o grupo responsável pela remontagem de O Embarque de Noé já começa o seu primeiro trabalho com essa autonomia. Com um teatro só para eles.
Se, por um lado, a ocupação do Teatro Fonte da Saudade é uma grande vantagem, por outro, o grupo conta também com alguns problemas. A acústica da sala não é muito boa. E, obrigados a ligarem os aparelhos de ar refrigerado por causa do calor, contam ainda com um ruído extra. Além do ruído que uma plateia de crianças já produz habitualmente. O que parece ter criado sérias dificuldades para o grupo, porque os atores se veem na obrigação de quase gritarem para que se possa ouvi-los. Seu desgaste é triplo. Têm que superar o barulho da plateia, dos aparelhos de ar e a própria acústica da sala. Por isso, logo no início do espetáculo de domingo, mal se ouviam as falas. A ponto de os próprios espectadores fazerem “Psiu” uns para os outros na tentativa de acompanhar o texto de Maria Clara Machado. Com o correr do espetáculo, entretanto, muitos dos atores já tinham encontrado um tom apropriado e bem mais audível.
No que diz respeito, no entanto, à parte propriamente musical do espetáculo, o problema acústico não teve maiores repercussões. É tudo em playback. O que tira um pouco a teatralidade; mas, nesse caso, acaba tendo um efeito contrário. Em momentos de difícil audição dos atores, quando a música entra em cena, recupera-se a atenção dos espectadores. Sobretudo graças à qualidade das músicas e arranjos de Ubirajara Cabral.
Há independentemente da acústica, alguns ótimos momentos no espetáculo. Como o surgimento apenas da cabecinha de Noé numa janela no alto da barca que não era muito perceptível até então por parte dos espectadores, como as cenas envolvendo o interessante personagem mudo que é o Pinguim, como o início da chuva, surpreendente e sedutor para as crianças. No geral, sem grandes ousadias, sem fugir ao tom farsesco da peça, o grupo conseguiu montar um dos bons espetáculos infantis da atual temporada. E, se mantiverem um trabalho constante na Pequena Cruzada, é bem provável que, melhoradas as atuais condições do teatro, venham a ser responsáveis por algumas das boas produções para crianças também nos próximos anos.