Crítica publicada no Jornal A Notícia
Por Armindo Blanco – Rio de Janeiro – 08.09.1978
Tem Dragão, Sim
Era uma vez. A Fada e O Dragão que Carlos Lyra escreveu e musicou expressamente para crianças, começa como de hábito. Mas tem uma diferença: sua principal preocupação parece ser a de desmoralizar os mitos que, segundo Bruno Bettelheim (ver A Psicanálise dos Contos de Fadas, ed. Paz e Terra) exercem salutar influência sobre a imaginação infantil. Assim, a fada de Carlinhos é uma vulgar mentirosa que tenta atemorizar as crianças com balelas como aquela de que no bosque havia um dragão. Isto ninguém lhe perdoa. Nem mesmo as crianças da plateia: quando os heróis da peça promovem um plebiscito para saber se a fada mentirosa deve ser absolvida e reintegrada, todo mundo responde em uníssono: Nããããooo! Fazia tempo, desde que Hebe Camargo se recolheu à vida privada, que não se via uma fada/madrinha com ibope tão baixo.
Compreendo a intenção do autor: ele, homem adulto, sabe que no bosque não tem nenhum dragão. Então por que corroborar as mentiras da fada e jogar em cena um dragão de araque, jogando fogo pelas ventas? Em vez do dragão, ele nos mostra um artesão de bonitas barbas e falinhas mansas, incapaz de fazer mal a uma mosca. No bosque, além dele, só havia uma panterinha cor de rosa e outros bichanos igualmente patuscos e bem falantes. Logo, os meninos que foram ao bosque, apesar das advertências, atrás do fujão Pratinha, na vida leiga filho de Sebastião Prata, dito Grande Otelo, voltaram incólumes e dispostos a desmascarar não só a fada como também o seu serviço particular de dedo-duragem.
Tudo bem. Mas esvaziados os mitos, o que resta para que as crianças reencontrem o universo em que melhor parecem mover-se, ou seja, o que alimenta seus mecanismos psíquicos através de fábulas que transcendem as noções de tempo e de lugar e lhes oferecem meios de identificação com a realidade imediata? Pouca coisa. A Fada e O Dragão é uma pecinha sobre o medo causado por ficções aterradoras. Não há nenhuma razão para temer supostos dragões, diz Carlinhos Lyra. Mas o que ele parece desconhecer é que, de fato, existem dragões à solta, nos espreitando a cada esquina. Podem ter outros nomes, configuração diversa, mas seria suicida negar a sua existência. Por exemplo: em cada refrigerante químico que as crianças ingerem diariamente, há um dragão oculto, um dragão cancerígeno que adora vísceras tenras. Talvez fosse disto que a fada de Carlos Lyra queria falar, quando anunciava que o dragão do bosque era muito puxado a devorar crianças.
Mas Carlos Lyra acha que não há nenhum dragão. O que há é um mundo alegre, cordial, onde a união faz a força (até aí estamos todos de acordo, exceto quem vive de dividir para reinar) e onde se pode cirandar sem outro risco que não o dos pesadelos com que nos inibem os passos (aí o papo já é discutível).
Boas e paternais intenções, as do autor. Infelizmente, este seu texto, que supomos ser o primeiro que escreve para crianças, embora proporcione um espetáculo bonitinho, não provoca, não avança: tudo fica ali no meio do campo, passe para cá, firula para lá, como certos times de futebol que o povo chama de pipoqueiros porque só fazem gol de bola parada.
Sem dúvida, os atores são muito simpáticos, Lígia Diniz é aquela beleza, mais como panterinha do que como fada, a coreografia de Kate Lyra é muito graciosa, e as músicas são extremamente melodiosas. Tudo somado, porém, é feito sorvete: na hora, refresca; depois, a sede volta maior do que antes.
“Há um significado mais profundo nos contos de fadas que me contaram na infância do que na verdade que a vida me ensinou”, disse certa vez o grande poeta alemão Schiller. O problema não é, apenas, negar o dragão, mas, através dele, e apresentando-o como se fosse real, levar as crianças a identificar os dragões da vida que, nessa fase de sua existência, elas não têm como reconhecer. Hoje em dia, os dragões são acobertados por mentiras douradas, travestem-se de gente boa, têm mil truques para escravizar as mentes e sugar as energias dos corpos.
Meninos, acreditem: tem dragão, sim.
A Fada e o Dragão
de Carlos Lyra e Nélson Lins de Barros.Direção de Carlos Lyra. Figurinos de Olga Resende. Coreografia de Kate Lyra. Intérpretes: Lígia Diniz, Cacá Silveira, Alice Viveiros, Pratinha, Elvira Rocha, Paulinho de Tarso, Daltony Nóbrega, Petit Legrand e Bia Payne. Em cena no Teatro Vanucci, Shopping Center da Gávea, Rua Marquês de São Vicente, nº 52, aos sábados e domingos às 16h, com ingressos a Cr$ 50. Cotação: *** (pela harmonia audiovisual)