Há aproximadamente 10 anos assinando uma coluna semanal no suplemento infantil O Estadinho, comecei a frequentar compulsivamente as sessões de teatro infantil em Florianópolis para escrever sobre o que se via/fazia por aqui. Tentando ser imparcial sem impor meu ponto de vista, me dispus a entrevistar os espectadores adultos e crianças, buscando subsídios para ser fiel à opinião do público.
A produção cultural para a infância e adolescência sempre me atraiu, mas me incomodava enormemente a falta de criatividade, o respeito ao universo infantil nas montagens locais. Para minha surpresa, na primeira investida casa lotada, um dos pais entrevistados começou a gritar pela polícia, xingando a peça de desonesta e detestável e exigindo cadeia aos integrantes do elenco. Seu filho, num canto, assustado com a reação do pai, limitou-se a comentar: eu gostei.
O episódio me marcou. Havia um enigma a ser desvendado: será que só os adultos conseguem discernir um espetáculo de qualidade de produções medíocres? Crianças são seres em formação. Na falta de referências, podem ser terrivelmente influenciadas. Cabe aos pais e às escolas proporcionar as possibilidades de escolha para que se desenvolva nas mesmas um senso crítico capaz de separar o joio do trigo.
O problema seguramente não se restringe a Santa Catarina. Em todo o país e em boa parte do planeta, a produção voltada para a infância é considerada de menor valor. Ela só sobe na escola quando são computados os lucros. Mesmo entre os teatreiros, há preconceito. Fazer teatro infantil é relegado a segundo plano, geralmente assumido pelos iniciantes, que procuram adquirir experiência com crianças para então fazer teatro de verdade. Em alguns casos a produção infantil é destinada a levantar o caixa, depois de uma produção adulta sem sucesso.
Fazer teatro não é montar espetáculos. Não se trata de escolher um texto a partir do número de atores de que se dispõe. É fundamental pensar como trabalhar com uma criança e não se utilizar de gente despreparada que começa a trabalhar justo para a criança. Os atores começam pelo teatro infantil, quando deveriam terminar por ele. Teatro tem que transformar quem faz e quem assiste. É movimento puro.
Na carona de boa parte da literatura infanto-juvenil, os textos escritos ou adaptados para teatro abusam dos diminutivos, se utilizam de vozes de desenhos animados mal dublados e menosprezam a capacidade de raciocínio do espectador. É comum ver baús com tesouros encantados posicionados no meio do palco, enquanto atores imbecilizados perguntam ao público onde terá se escondido o mesmo. A histeria se torna coletiva. Na ânsia de desvendar o óbvio, crianças excitadas gritam pelo tesouro, pelo lobo que está ali do lado, louco pra te comer, e só o ator não consegue ver. Onde é que foi parar a verdade? Teatro é ficção, não mentira.
Em geral, as produções se dividem em dois tipos. De um lado as remanescentes da geração bicho-grilo, que abusam de florzinhas e borboletas saltitantes, onde reinam personagens estanques, desprovidas de conflitos e problemas, em que as soluções surgem como num passe de mágica, sem exigir qualquer tipo de esforço do protagonista, numa harmonia irreal que pinta o mundo como num paraíso. De outro, adaptações desatualizadas de contos de fadas que não estabelecem qualquer vínculo com o mundo real da criança ou ainda adaptações de sucessos televisivos (leia-se: Flintstones, Tartarugas Ninja e Batmans e Robins da vida).
A interpretação impostada, caricatural, quando não irritantemente infantilóide, aliada ao moralismo e no preconceito reinantes na “mensagem da história”, deixam claro que o tratamento dispensado às produções ditas adultas não é nem de longe cogitado nas infantis. A ladainha se repete no que diz respeito a cenário e figurino. Panos pintados com desenhos primários, sem qualquer noção de perspectiva e figurinos que mais se assemelham a fantasias de carnaval, menosprezam a capacidade de percepção da criança.
Fazer teatro infantil implica numa vivência exaustiva com o universo da criança, seus valores, sua linguagem e seu modo de expressar. Imprescindível resgatar a criança do adulto que faz teatro, resgatar o riso e a lágrima verdadeiros no ator, para atingir a verdadeiros no ator, para atingir a verdade do espectador, seja ele adulto ou criança.
Exceções existem, é claro. Em geral estruturadas em buscas, em pesquisas de linguagem que permeiam o trabalho de grupos que se dispõem não a fazer teatro infantil, mas a fazer Teatro. Teatro que não se baseia na História nem na odarice, mas no jogo, no respeito à inteligência e na exploração do lúdico. E aí são bem-vindos os pais, filhos, avós e recém-nascidos, sem riscos de tédio, nem dores de cabeça.
A atitude mercenária, irresponsável e muitas vezes descompromissada reinante nas propostas de teatro infantil, faz pensar no tipo de investimento que está fazendo no espectador do futuro. Além de concorrer com o cinema, o vídeo, os games e os parques de diversões, o teatro corre o risco de ter como principal inimigo, o próprio teatro.
Marisa Naspolini
Atriz, diretora, professora de teatro e jornalista de Santa Catarina
Obs.
Texto retirado da Revista FENATIB, referente ao 4º Festival Nacional de Teatro Infantil de Blumenau (2000)