Barra

Introdução

O teatro de sombras é manifestação artística muito popular em diversas regiões do continente asiático. Para historiadores como Meher Contractor (1982), tudo iniciou na Índia, já para Max von Boehn (1972), o berço dessa tradição é a China. Cada um dos historiadores apresenta dados, silhuetas antigas, que datam de 2.500 anos e 3.000 anos atrás, que pertencem ao acervo de museus tentando comprovar que naquele período o teatro de sombras já era praticado nos dois países. Tamara V. Fielding (2002) afirma que na ilha de Java o teatro de sombras era popular há mil anos atrás. Estudos também confirmam a existência desta arte na Tailândia e Taiwan. Na Grécia e no norte africano, especialmente na África mediterrânea, existem amplos registros da existência do teatro de sombras, chegando finalmente a Europa ocidental a partir do século XVIII. A discussão sobre a geografia onde o teatro de sombras começou a ser praticado e ainda hoje se mantêm como expressão viva é importante na medida em que possibilita compreender as relações, conexões e diferenças existentes nas distintas formas como é realizado em cada região. No entanto, o objetivo deste estudo é compreender como se dá o trabalho do ator no teatro de sombras no oriente.

O Teatro de Sombras na China – O teatro de sombras e o teatro de marionetes da China estão intimamente ligados ao teatro cantado de atores. Representam só um repertório e obedecem ao mesmo calendário. São realizados mais frequentemente por apenas um manipulador, mas também são encontradas companhias formadas por muitos atores-animadores. Os marionetistas solistas são chamados de Mestres, porque guardam um pouco do prestígio que envolve os mágicos e outros artistas populares. Antigamente eram atores itinerantes que iam de cidade em cidade para a festa no templo local. Hoje, na maioria das cidades residem artistas que circulam pelas vilas próximas. Vale destacar dois aspectos interessantes do teatro de sombras na China: o princípio de recreação que estimula o contato com um mundo mágico e o aspecto educativo do mesmo.

A lenda que conta o nascimento do teatro de sombras na China pode revelar aspectos interessantes para compreender a estética desta arte.

O Imperador Wu Ti, da dinastia dos Han, teve o desgosto de perder sua dançarina predileta. Havia vinte anos que ele governava com sabedoria e juízo o Império Celeste e seu reinado era dos mais gloriosos de todos os tempos. Mas Wu Ti era muito supersticioso e acreditava nas artes mágicas. Quando a dançarina morreu, ele, no seu desespero, voltou-se para o mágico da corte, exigindo que fizesse voltar a linda defunta, do país das sombras. Ameaçado de pena de morte, o mágico não perdeu a cabeça… Numa pele de peixe, cuidadosamente preparada para torná-la macia e transparente, recortou a silhueta da dançarina, tão linda e graciosa como ela fora. Numa varanda do palácio imperial, mandou esticar uma cortina branca em frente a um campo aberto. Com o Imperador e a corte reunida na varanda, e à luz do sol que se filtrava através da cortina, ele fez evoluir à sombra da dançarina, ao som de uma flauta e todos ficaram alucinados com a semelhança. (Obry, SD:20)

Alguns elementos contidos na lenda remetem a reflexões e permitem considerações como: quando diz “recortou a silhueta da dançarina tão linda e graciosa como ela fora” dá a referência da imagem real, da imagem cotidiana para a produção das silhuetas deste teatro. O “mágico marionetista” reproduziu a imagem da dançarina da forma mais fiel possível. A impressão é de que não ousou incluir qualquer detalhe que não reproduzisse a imagem da amada do Imperador. Isso se confirma quando fala da manipulação: “fez evoluir à sombra da dançarina… e todos ficaram alucinados com a semelhança.” Ou seja, no teatro de sombras chinês, os movimentos da animação da personagem são selecionados para reproduzir os movimentos humanos no seu cotidiano. A expressão “semelhança” remete tanto a esta referência sobre o real como pode ter a conotação de “verdade”, de convencimento, de movimento verossímil capaz de tornar crível que a imagem projetada era mesmo à da dançarina predileta do Imperador.

É interessante perceber que certas referências do cotidiano são mais perceptíveis e presentes no teatro de sombras chinês do que noutras expressões do teatro de sombras do sudeste asiático, principalmente quando comparadas à Índia e Jaza. Isso se evidencia quando se tem como referência o teatro de sombras contemporâneo chinês. Segundo o marionetista e professor Qi Yongheng, da província de Habei – China, em curso ministrado na França em 1982 no Instituto Internacional da Marionete, o teatro do seu país se caracteriza por:

– dramaturgia cujos temas são a vida cotidiana, acontecimentos do dia a dia capazes de reforçar valores como amizade, solidariedade, respeito à autoridade, à natureza.

– o marionetista é valorizado por sua capacidade e destreza na manipulação das silhuetas, tornando-se virtuoso na medida em que reproduzir movimentos capazes de se assemelharem ao dos animais e seres humanos representados.

– As silhuetas, tanto em seus movimentos quanto nos seus traços de confecção são criadas partindo da observação do real, ou seja, obedecem proporcionalidades entre tamanho do corpo e membros.

– A partir de 1966, com a Revolução Cultural, passam a abandonar muitos dos recursos comumente utilizados no espetáculo adaptando-os a esta situação. Novos tipos de varas de manipulação e lâmpadas foram providenciadas, alterando a estética dos espetáculos. Os marionetistas solicitaram ao governo a produção de varas de acrílico para substituir as varas de bambu, frequentemente utilizadas na manipulação das silhuetas. Estas novas varas garantiram a impossibilidade do público desvendar os mecanismos de articulação das silhuetas.

– Também passaram a usar lâmpada fluorescente, às vezes denominadas lâmpadas frias, abandonando as outras formas de iluminação. Estas lâmpadas exigem que a silhueta permaneça colada à tela para que aconteça a sua adequada projeção. Refletem exatamente o desenho, a forma da silhueta recortada. Os efeitos de deformação poética da imagem (ampliação e diminuição da imagem produzindo imagens fantásticas e irreais, deformadas, não acontecem quando esses recursos são utilizados). Com este tipo de lâmpadas as imagens mostradas ao público através da tela são exatamente as antecipadamente desenhadas e recortadas pelos marionetistas.

No entanto, seria equivocado dizer que se trata de um teatro naturalista ou realista. É um teatro altamente estilizado, com movimentos e gestos cuidadosamente controlados, com figurinos e cores portando significados específicos. O teatro de sombras chinês é estilização, simbologia e inventividade. Não é realismo, mas economia de meios. O trabalho vocal do narrador, as distintas modulações da voz afastam o espetáculo da estética naturalista. Usam o seguinte princípio: para dizer algo de forma figurada não recorrem à forma abstrata. Mesclam, dosam, uma ação cotidiana com um som estilizado. Essa mistura torna essa arte distinta.

O Ator no Teatro de Sombras Chinês 

Tradicionalmente iniciava seu aprendizado aos 4 anos de idade, aprendendo com o pai ou membro da família. Era a formação por tradição, e o aprendizado se dava observando o trabalho do pai e obedecendo a execução de rigorosos exercícios para dominar a manipulação. O pai, ou parente, o Mestre ia desvendando os segredos da profissão ao aprendiz, até atingir maturidade para iniciar seu trabalho independente. Os princípios mais importantes a perseguir nesta etapa da formação eram: dominar a dramaturgia; aprender a confeccionar as marionetes; ser exímio manipulador. Para isso necessitava de longo período de aprendizagem, exigindo a realização de exercícios físicos diários, sobretudo dos dedos, pulsos e braços, mesmo não trabalhando diretamente no espetáculo.

Um dos grandes desafios é manipular as silhuetas nas cenas de combate onde os guerreiros aparecem montados em cavalos totalmente articulados. É preciso habilidade para manipular 15 varetas e fios, simultaneamente, de forma sincronizada produzindo gestos e ações que impressionam pela beleza e veracidade. Em meados dos anos de 1970, com a criação das academias, o ensino não está restrito ao aprendizado na relação pai e filho. Hoje, crianças com tenra idade vão para a escola de marionetes e lá aprendem esta arte com reconhecidos professores.

Barra

Bibliografia

BALBIR, Nicole. Les Marionnettes en Inde.In.: Les Marionnettes. Paris: Bordas, 1982
BERNARD, Annie. Les Marionnettes Indonésiennes. In.: Les Marionnettes. Paris: Bordas, 1982
BOEHN Max von. Puppets & Automata. New York: Dover Publications, 1972
COLEMAN, Isabel y BRIAN , Rosamund, Teatro de Sombras Chinescas. París: Editorial Bouret, 1974
BORBA FILHO, Hermilo. Fisionomia e Espírito do Mamulengo. Rio de Janeiro: Funarte, 1987
CHESNAIS, Jacques. Históire Générale des Marionnettes. Paris: Éditions D’aujourd’hui, 1980
CONTRACTOR, Meher. O Teatro de Sombras na Índia. Mimeografado. 1982
GUINSBURG, Jacó. Da cena em Cena. In.: Revista Urdimento. N.1 Florianópolis, 1997
MARIONNETTES, spécial Théâtres d’Ombres. Revista da UNIMA França. N.77. Paris, setembro de 1982
NICOLAS, Michéle. Karagoz: le théâtre d’ombres turc. Paris: Bordas, 1982
OBRY, Olga. O Teatro na Escola. São Paulo: Melhoramentos, s.d.
PAVIS, Patrice. L’analyse des Spectacles; théâtre, mime,danse, danse-théâtre,cinéma. Paris: Nathan, 1996
PIMPANEAU, Jacques. Les marionnettes en Chine. In.: Les Marionnettes, Paris: Bordas, 1982
PRONKO, Leonard C.. Teatro: Leste & Oeste. São Paulo: Perspectiva, 1986
VATSYAYAN, Kapila. Les Marionnettes Indiennes: tradition et renouveau. In: PUCK n.7 La Marionnette et les Autres Arts. Charleville-Mézières: Institut International de la Marionnette, 1994

Barra

Valmor Beltrame – Nini
Professor e Doutor em Teatro na UDESC – Universidade Federal de Santa Catarina