Eduardo Brito, Vera Mancini, Mário Cezar Camargo e Clara Carvalho na montagem de Nossa Cidade.

O grupo Tapa transmite a intenção final do autor

Crítica publicada em O Estado de São Paulo
Por Jefferson Del Rios – São Paulo – 1989

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A maior e menor cidade do mundo

Com intenso poder de atingir as emoções, Nossa Cidade, em cartaz no Teatro Anchieta, é considerada a obra-prima do dramaturgo norte-americano Thornton Wilder

Thornton Wilder, já falecido, foi um jovial e requintado scholar norte-americano que, principalmente nos anos 30, construiu uma literatura baseada em irônica ternura. Érico Veríssimo gostou de conhecê-lo e registrou o encontro em Gato Preto em Campo de Neve. Nascido em 1897, estudou em Yale e Princeton, o que já é uma boa referência intelectual e mostra suas confortáveis origens sociais (lecionaria, posteriormente, em Harward e na Universidade de Chicago). Essa privilegiada situação foi de encontro a um temperamento brando e dotado de senso de humor, características que derramou em romances, novelas, pequenas e longas peças de teatro. Uma das últimas, The Matchmaker, daria origem ao musical Hello Dolly.

Não se pode dizer que Wilder trabalhou exclusivamente com determinada fórmula, o que seria reduzir seu talento a mero artifício técnico. Ele soube captar com naturalidade sentimentos básicos da humanidade e transformá-los em ficção de primeira: o desejo de amor, o medo da rejeição e da morte. Mas, ainda assim, não é tudo. Thornton Wilder tornou-se um criador respeitado pelos que o sucederam (a geração de Arthur Miller), porque encontrou também uma maneira indireta de tratar da ambição do homem, o que o inclui de certa forma na corrente dos autores com preocupações sociais. Sua marca, contudo, é o vôo metafísico. Analisando sua produção em O Teatro Norte-Americano Hoje, Malcolm Goldstein observou que as situações imaginadas por Wilder “são momentos de eternidade selecionados e impostos à nossa atenção contra o panorama do infinito.”

Nada melhor do que a sua obra-prima, Nossa Cidade, escrita em 1938, ou seja, há meio século, para exemplificar à perfeição os sentimentos do dramaturgo. A ação se passa numa cidadezinha de New Hampshire, entre o Maine e Vermont, na fronteira canadense, um local imaginário chamado Grover´s Corner. Não há nada de heróico ou chocante na vida daquela gente. Suas existências nada têm de especial: nada, enfim, que possa transformá-los em heróis ou vítimas. Goldstein frisa que “a sua cidade é apenas um ponto qualquer no Cosmos. No entanto, exatamente por ser um lugar comum acaba por representar todas as sociedades, e o que acontece aos seus habitantes constitui, de modo geral, os principais acontecimentos da vida de todas as pessoas e é o intenso poder da peça atingir nossas emoções”.

O enredo de Nossa Cidade envolve mais de 20 personagens centradas em torno do cotidiano de duas famílias, os Gibbs e os Webbs, e, a partir desse núcleo, o fio da ação envolve os filhos mais velhos das famílias: Georges e Emily. Malcolm Goldstein salienta, com toda a razão: “Essa história simples e a emoção que ela evoca representam fatos tão básicos da vida de toda a civilização que o seu impacto teatral é universalmente assombroso”.

Crítica: Um precioso exercício de universalidade

A pequena Grover´s Corner, de Thornton Wilder, transformou-se em Pires de Camargo. Não estamos mais no extremo norte dos EUA, de outonos avermelhados, mas numa divisa paulista com Minas Gerais. A humanidade que circula sob os refletores é, no entanto, a mesma. A peça, traduzida pela jornalista e escritora Elsie Lessa, foi adaptada pelo diretor Eduardo Tolentino, solução defensável por tornar o original mais íntimo do público sem perda das qualidades fundamentais.

O espetáculo de Tolentino impõe-se pela sua bela tradução visual e por manter o fluxo emotivo em todas as interpretações do elenco numeroso, em que idades e experiências diversas se encontram no mesmo tom sóbrio, no domínio que cada um tem da sua intervenção, conjunta ou isolada. A beleza plástica das cenas – que muito se deve aos figurinos de Lola Tolentino – acolhe tanto instantes de movimentação em que o autor revela o cotidiano da cidade, como todo o segundo ato solene e semi-estático. Como um álbum de família.

A jornada no tempo dessa comunidade é comentada por um diretor de cena que se situa à margem dos fatos, recurso anti-ilusionista que introduz uma curiosa cumplicidade distanciada da plateia em relação ao que se passa. A fragmentação do entrecho exige dos intérpretes um empenho maior; e aqui ocorre o triunfo do elenco e da direção. Enfim, um novo espetáculo. Com a força emocional das pausas, dos gestos interrompidos e dos olhares significativos. Todo um movimento subterrâneo junto ao aspecto mais direto do texto. Não há ruptura entre o alto acabamento da atuação madura de Umberto Magnani, Walderez de Barros, Mário Cezar Camargo e Vera Mancini – um quarteto central – e o empenho comovido de Clara Carvalho e do surpreendente Brian Penido. É difícil a avaliação em detalhes de interpretações que se destacam em minutos, como, por exemplo, a noção de tempo demonstrada por Marco Antônio Rodrigues numa cena de cemitério. Há todo um jogo de artistas extremamente afinados. Se algo falta é retoque pequeno ou acréscimo. Ênio Gonçalves, presença simpática e vital no contexto dramático, poderia ser menos contido, modesto quase, em favor de um certo bom humor.

O Grupo Tapa, com seu espetáculo, transmite a intenção final de Wilder: o problema do homem não é o malogro na tentativa de alcançar a grandeza mas em não saber usufruir a poesia da existência comum. O segredo é dizer isso, sem ser conformista. A montagem – depois de São Paulo – percorrerá 35 cidades do interior paulista; e todas, provavelmente, se transformarão numa mesma e nossa cidade.

Serviço:
Nossa Cidade, de Thornton Wilder. Produção do Grupo Tapa. Adaptação e direção de Eduardo Tolentino. Com Umberto Magnani, Walderez de Barros, Ênio Gonçalves, Eduardo Brito, Brian Penido, Mário Cezar Camargo, Vera Mancini, Clara Carvalho, Maria Pompeu e Genésio Barros. Teatro Anchieta (r. Dr. V. Nova, 245 ) – De quarta a sexta, às 21 horas. Sábado, às 20h e 22h30. Domingos, às 19h. NCz$ 10,00