Cena de Nerina, a Ovelha Negra

Crítica publicada no Site da Revista Crescer
Por Dib Carneiro Neto – São Paulo – 31.03.2017

A peça fica em cartaz até 23 de abril. Fotos: Cacá Diniz

O grande destaque da montagem é a música

Peça sobre preconceito encanta pela alto astral musical

Com Nerina, a Ovelha Negra, a cia. Maracujá acerta mais uma vez na transposição para o palco de um livro sem palavras de Michele Iacocca

Pela terceira vez, o Grupo Maracujá Laboratório de Artes, capitaneado pelo diretor, dramaturgo e ator Sidnei Caria, debruça-se sobre um livro sem palavras do consagrado autor Michele Iacocca, italiano radicado no Brasil. Primeiro foi o livro As Aventuras de Bambolina, depois Rabisco – Um Cachorro Perfeito. Agora chegou a vez de adaptarem Nerina, a Ovelha Negra – e o resultado fica em cartaz em São Paulo, no palco principal do Sesc Pompeia, até 23 de abril.

O casamento artístico Caria-Iacocca mais uma vez brinda o público de todas as idades com uma pérola cênica imperdível. A parceria continua harmoniosa, frutífera e inspiradora. É lindo ver, na adaptação, que, por ser uma peça vinda de um livro, Caria fez questão de colocar o objeto livro em cena, numa alusão sempre necessária à importância da leitura, presente também – até mais explicitamente ainda – em outro espetáculo da mesma companhia, O Buraco do Muro. Aqui, em Nerina, a referência ao livro sutilmente se transmite também pelo telão. Quando vão mudar as projeções das ilustrações, elas passam pela tela como se estivéssemos virando as páginas de um livro. É sutil, mas reforça a ideia de se manusear um livro – gesto que a atual geração corre o risco de perder, se os pais não insistirem em estimular a presença do objeto livro dentro de casa, não só os eletrônicos. (E veja como o teatro para crianças não precisa ser tatibitate e catequético: em vez das frases “Não deixem de ler, como é importante a leitura, nunca parem de ler”, a peça da Maracujá usa sutilezas e passa o mesmo recado de forma mais eficiente do que a lição professoral dita com todas as palavras, como muito autor retrógrado e pouco criativo ainda pensa que é o jeito melhor de se fazer dramaturgia para crianças. Não é. Use metáforas, simbologias, alegorias, sutilezas – teatro é isso, não é sala de aula.)

De novo, o grupo trabalha com a técnica de puppet toys, maravilhosamente utilizada em ‘Rabisco’ (quem viu nunca se esquece!). Consiste na animação de pequenos bonecos (utilizando ímãs e fios de nylon) em maquetes instaladas em um canto do palco. Com o uso de microcâmeras, esses movimentos dos bonecos (aqui, ovelhas) são projetados em um telão, tudo ao vivo. É incrível.

Mas, a meu ver, desta vez, o grande destaque da montagem é a música. O grupo decidiu chamar uma ‘ajudante’ muito especial, a diretora musical Fernanda Maia, para cuidar da trilha. Ou seja, virou quase um musical! O elenco (Bia Rezende, Camila Ivo, Lucas Luciano, Piva Silva, Sidnei Caria, Silas Caria e Yasmin Oli) canta o tempo todo, linda e afinadamente. Como não há texto no livro, as letras das canções (escritas por Sidnei Caria e Michele Iacocca) dão conta de auxiliar na compreensão do enredo, que fala do preconceito sofrido por Nerina (negrinha, em italiano), rejeitada pelas próprias irmãs, todas branquinhas feito algodão. Um dos trechos de uma canção diz: “Quando um certo alguém bem diferente chega assim tão de repente, vem e mostra pra você que a vida também tem coisa estranha.” Ou: “O estranho o que é, afinal? Será que ele é sempre mau? E nunca pode ser legal, só porque não é igual?”

Fernanda Maia, sempre talentosíssima, pegou também clássicos da música erudita (a valsa Danúbio Azul, de Strauss; a Nona Sinfonia, de Beethoven; a Aleluia, de Handel, e a Sinfonia nº 40, de Mozart) e fez tudo virar uma deliciosa brincadeira sonora. Esse tipo de paródia musical funciona muito bem e diverte os adultos, que conhecem esses clássicos. Afinal, é fundamental divertir também os adultos em uma peça para crianças.

A dramaturgia é muito bem construída, com ritmo e força. A cena em que as irmãs branquinhas expulsam Nerina de sua convivência é dura, pungente, tristemente forte e linda. Bia Rezende, no papel de Nerina, quando canta é de uma doçura inacreditável. Sua voz doce, sentida, sofrida, nos encanta sem cair nunca no pieguismo fácil. As ovelhas brancas são as verdadeiras vilãs da história, se é que seja necessário separar sempre os personagens maniqueisticamente entre os bons e os maus. Mas o fato é que, em uma história de ovelhas, presume-se que o personagem a se combater seja… o lobo. Aqui, os lobos surgem só depois de meia-hora final de peça. E a solução para o conflito entre as irmãs virá deles, os lobos, por incrível que pareça. Isso é muito legal na história.

Fiquei um pouco em dúvida com relação a isso, pois (lá vem spoiler) Nerina só ganha o respeito das irmãs quando se veste de lobo e as assusta, conseguindo assim com esse gesto – misto de bravura e braveza – evitar que todas caiam em um abismo. Saí com a pulga atrás da orelha: mas a lição da peça é que temos de assumir nosso lado ameaçador para conquistar respeito? Repassei a questão para o diretor, ator e dramaturgo da peça, Sidnei Caria, que me enviou a resposta por escrito e autorizou sua publicação: “Bom, sua questão é super compreensível, pois foi uma grande dúvida nossa também durante o processo. Conversamos muito sobre isso com o Michele e com nossos 4 integrantes negros do grupo Maracujá, o Eder, o Renan e as duas meninas que se revezam fazendo a Nerina, Yasmin e Bia. Sentimos que hoje está mais complicado encontrar a forma ‘certa’ de falar de ‘minorias’. Nossa pergunta constante nos ensaios era exatamente essa que você me faz agora: o fato de ela só ser respeitada depois que faz um ‘favor’ às ovelhas brancas, não as deixando cair no abismo. É uma linha muito tênue. A Nerina é aliciada pelos lobos. Poderia ter optado pelo caminho do ódio, do grito, pois aprendeu com ele também. Mas ela opta por usar esse grito para salvá-las. Não para pedir respeito. São duas coisas diferentes. Sim, primeiramente Nerina grita com as ovelhas brancas e se vinga. Mas percebe que isso foi um erro, que essa atitude criou algo que poderia matar a todas. A vingança não traria coisas boas. E ela usa novamente desse artifício não para pedir respeito, mas para trazer as ovelhas à razão. Ao mesmo tempo, as branquinhas se descontrolam com Nerina, porque não esperavam que ela se opusesse à expulsão – e que ela, sendo uma, sozinha, pudesse ser assim tão forte. E, ao mesmo tempo, percebem que essa atitude delas poderia levá-las ao abismo, uma metáfora para sua própria destruição. A aceitação de Nerina não é pelo grupo, é pela percepção de que Nerina também é uma ovelha. Apenas a situação limite (cair no abismo) traz essa compreensão a todas. De que outra forma Nerina conseguiria que as outras a ouvissem? As brancas a empurraram para isso, a excluindo de forma violenta.

Enfim, é sempre um desafio mexer nessas questões sem que algum grupo questione a forma como devemos abordá-las.”

Vá conferir. Vale a pena.

Serviço

Teatro do Sesc Pompeia
Rua Clélia, 93, Pompeia, São Paulo
Telefone: (11) 3871-7700
Sábado e domingo, às 12h (sessão extra no feriado do dia 21/4)
Duração: 50 min
Classificação etária: Livre
Ingressos: Crianças de até 12 anos não pagam. R$ 17,00 (inteira), R$ 8,50 (meia)  e R$ 5,00 (comerciários credenciados)
Temporada: De 11 de março a 23 de abril de 2017