Matéria publicada em O Globo – Caderno Prosa & Verso – Capa
Sem Identificação – Rio de Janeiro – 22.01.2011
Genial autora e criadora do Tablado tem sua obra reunida em edição de luxo. (**)
Maria Clara Machado celebraria em 2011 duas datas redondas: seus 90 anos e os 60 de seu filho querido, o grupo de teatro amador O Tablado. Na sua falta, os que a conheceram e as crianças de todas as idades que tiveram o privilégio de se emocionar com uma ou várias das 29 peças que criou, montou e dirigiu, receberam valioso presente: o livro com sua obra completa, lançado no final de 2010 pela Nova Aguilar.
A leitura desses esplêndidos textos da dramaturgia brasileira reavivou-me a lembrança dos momentos inaugurais em que os assisti com prazer e emoção, na juventude, depois com os meus filhos e agora com a expectativa de voltar a vê-los com os netos. A presente edição se distingue pelo fato de que, pela primeira vez, um autor de obras destinadas a crianças, também apreciada por adultos, alcança este privilégio: a publicação das 29 peças e preciosas informações sobre datas das estreias, cenários e figurinos, direção, nomes de autores e músicos e as partituras das canções, tudo em um único livro de esmerada produção gráfica.
Organizado com atenção impecável e afetuosa por Luiz Raul Machado, o livro reúne em ordem cronológica 24 peças originalmente publicadas pela editora Agir em 1970 e 1986, acrescenta A Coruja Sofia (publicada separadamente) e quatro peças inéditas em livro. Na introdução, Luiz Raul nos conta um pouco da vida de Maria Clara, nascida em Belo Horizonte no dia 23 de abril de 1921, filha do escritor Aníbal Machado, que em 1925 se mudou para o Rio e logo passou a morar na casa da rua Visconde de Pirajá, 487. Mais tarde Maria Clara definiu-se: “sou mineira até não poder mais, mas vivo aqui desde os quatro anos, gosto mesmo é do mar de Ipanema”.
Aos domingos, o autor de “João Ternura”, intelectual respeitado e, para a filha, “o homem mais sábio que conheci”, recebia poetas, escritores, jornalistas, artistas para um encontro semanal de bate-papo inteligente, que marcou época na vida literária da cidade. Maria Clara cursou o colégio São Paulo e em 1938 entrou para o movimento Bandeirante, que exerceu grande influência em sua formação.”Numa época especialmente repressiva para a as mulheres, ser bandeirante favorecia o exercício da liberdade, do companheirismo e da aventura com responsabilidade”, nas palavras do organizador do livro.
Com a entrada do Brasil na Segunda Guerra, ela decidiu ser enfermeira e atuou como bandeirante no ambulatório do Patronato Operário da Gávea, mas logo percebeu não ter vocação para esse trabalho. Decidiu montar um teatro de bonecos para as crianças do Patronato e instalou o ateliê, onde preparava os cenários e as roupas, na garagem de sua casa. A titereiras eram as amigas bandeirantes, entusiasmada com a nova atividade. No início encenavam o teatro de bonecos em festas infantis, época em que Maria Clara escreveu e apresentou sua primeira peça, o auto de Natal O Boi e o Burro a Caminho de Belém com grande sucesso.
Em 1941 Aníbal Machado escreveu carta para a filha que se encontrava em um acampamento de bandeirantes nos Estados Unidos: “Se não me engano, a sua vocação mais acentuada é mesmo para o teatro (…) não é uma perspectiva que me pareça absurda para o seu futuro, apenas exige muito trabalho, tenacidade e entusiasmo”. A disciplina bandeirante e a capacidade de liderança que ali adquiriu, somadas ao entusiasmo que a animava, permitiram que Maria Clara realizasse a grande obra que apenas começava a tomar forma.
Fortuna crítica mostra importância da autora
Em 1949/1950 estava em Paris para seguir um curso dirigido por Jean Louis Barrault. No ano seguinte voltou a Paris para aprender mímica com Etiénne Decroux, mestre de Marcel Marceau. Ao voltar fundou, com o apoio de seu pai, de Martim Gonçalves, Carmem Sylvia Murgel, Eddy Rezende, Jorge Leão Teixeira, João Sérgio Marinho Nunes e outros amigos ligados ao teatro, o grupo amador o Tablado, no Patronato Operário da Gávea. Trabalhou como diretora e atriz, de início em peças de autores estrangeiros e em 1953 reescreveu e dirigiu O Boi e o Burro a Caminho de Belém, agora com autores. No mesmo ano montou O Rapto das Cebolinhas e ganhou o prêmio da prefeitura do Distrito Federal para teatro infantil, o que ocorreu também no ano seguinte com A Bruxinha que era Boa. Maria Clara recebeu muitos prêmios, entre eles O Golfinho de Ouro do Museu da Imagem e do Som e o prêmio Moliére da Air France, ambos para melhor autor teatral em 1978. Em 1991 a Academia Brasileira de letras concedeu-lhe o prêmio Machado de Assis pelo conjunto da obra.
Em 1955 produziu seu maior sucesso, Pluft, o Fantasminha, traduzido para vários idiomas. Neste mesmo ano foi convidada para substituir Henriette Morineau em O Diálogo das Carmelitas e montou Tio Vânia no Tablado. A trajetória de Maria Clara encontra-se, em detalhes, na cronologia que se segue aos textos de Luis Raul Machado e, descrita de forma mais pessoal nas partes de sua autoria, no capítulo “Maria Calara Machado por Maria Clara Machado”.
A fortuna crítica apresentada no livro nos dá a perfeita ideia do prestígio da autora. Luiz Raul selecionou alguns comentários entusiásticos de Carlos Drummond de Andrade no Correio da Manha e depois no Jornal do Brasil, e de Maria Julieta, filha do poeta (também tradutora para o espanhol de obras de Maria Clara) em O Globo, em 1984. Do crítico paulista Décio de Almeida Prado em O Estado de São Paulo, de Austregésilo de Athayde no Jornal do Comercio e dos críticos Van Jaffa, Yan Michalski e Barbara Heliodora. Há ainda textos de Luiz Paulo Horta, Maria Antonieta Cunha, Flora Süssekind e Miguel Falabella. O capítulo se encerra com um belo texto até então inédito, de Ana Maria Machado, escrito logo após a morte da autora.
Segue-se a iconografia com fotos e a bibliografia na qual destaco dois dos mais belos livros na literatura infantil brasileira: O Cavalinho Azul, editado pela Cedibra em 1979, com ilustrações de Marie Louise Nery, e Pluft, o Fantasminha, da mesma editora em 1985, ilustrado por Anna Letycia, ambos reeditados pela Nova Fronteira, com ilustrações de Graça Lima.
Para minha alegria assisti a quase todas as peças de Maria Clara com meus pais e mais tarde com meus filhos, sempre emocionada e encantada com a magia do seu teatro. Ao ler esse “Teatro Infantil Completo” relembrei minha vida no bandeirantismo, o belo caminho que Maria Clara percorreu durante toda a sua vida e a enorme influência que exerceu sobre os rumos do teatro brasileiro.
(*) Maria Claro Machado – Teatro Infantil Completo, org. de Luiz Machado. Editora Nova Aguilar, 1155 pgs, R$ 249,90
(**) Laura Sandroni é escritora e membro do Conselho Curador da Fundação Nacional do Livro Infantil e Juvenil.