Matéria publicada no O Globo – Obituário
Por Roberta Oliveira – Rio de Janeiro – 01.05.2001

Claudia Jimenez, à esquerda, e Lucélia Santos numa das versões de Pluft, o Fantasminha – 12.05.1987

Ao lado de Rubens Corrêa em O Tempo e os Conways – 17.03.1969

Maria Clara com bonecos representando dois personagens seus, Pluft e O Cavalinho Azul: contato com a arte ainda na infância – Foto: Marco Antonio Teixeira – 23.09.1995

Barra

Maria Clara Machado nunca teve filhos. Pelo menos biológicos. Filhos seus eram suas peças e seus discípulos, que ela tratava com a mesma imparcialidade e carinho.

Sempre que uma de suas peças era levada novamente ao palco, o entrevistador não resistia, queria saber se aquele texto era o seu preferido.

Com as pernas esticadas sobre uma cadeira, Maria Clara, a maior autora de teatro infantil que o Brasil já teve, sorria, mastigava pensativa a piteira que adotou para poder abandonar o vício do fumo e respondia que, para ela, não havia uma peça preferida. Todas eram suas filhas, todas mereciam o mesmo tratamento. Menos imparcial era a visão que Maria Clara tinha do papel do Teatro Tablado, a casa da Lagoa que transformou em templo artístico nos últimos 50 anos, na história do teatro brasileiro: “É um papelão, no bom sentido, é claro”.

O bom humor só era ameaçado nos ensaios, quando, sem aviso, Maria Clara encarnava a “generalíssima”, como ficou conhecida por sua rigidez. “Não sou nem do tipo autoritário, nem mãezona, mas tem hora que é preciso dar uma bronca”, disse a diretora certa vez, lembrando um episódio que deixava claro que, pelo menos nos ensaios, seu pulso era de ferro. “Uma vez, nos anos 70, entrei no camarim e estavam fumando maconha. Claro que proibi. Não por mim, mas pela instituição.”

Ao lado de Tônia Carrero, o Primeiro Contato com o Teatro 

Não se satisfazer com pouco era um sentimento que vinha de longe. Quando criança, Maria Clara não era o que se pode chamar de uma menina prendada, daquelas que lavam, passam e cozinham. Sorte sua. Enquanto as cinco irmãs ajudavam a mãe nas tarefas do lar, ela era encarregada de entreter as visitas para quem seu pai, o escritor Aníbal Machado, abria as portas da lendária casa na Rua Visconde de Pirajá, em Ipanema. Foi ali que Maria Clara teve o primeiro encontro com a arte. Ainda criança, ela dividiu o palco da casa com Tônia Carrero, na época a jovem Mariinha, numa peça de títeres que o argentino Javier Villafañe improvisara. Incentivada pela amiga Maria Julieta Drummond de Andrade, em 1949 Maria Clara concorreu a uma bolsa de estudos que o governo francês concedia anualmente a jovens intelectuais. De Paris, trocava cartas amorosas com o pai. Parte delas seria reunida em Eu e o Teatro, autobiografia de 1991.

Em 1951, nascia um Grupo Amador de Teatro: o Tablado

Foi na França que teve contato maior com o teatro e a dança, tendo se tornado aluna aplicada do mímico Decroux, do diretor Jean-Louis Barrault e de Rudolf Laban. De volta ao Brasil, um ano mais tarde, foi trabalhar como enfermeira no Patronato da Gávea. Por lá, perceberam que ela só levava jeito mesmo com as crianças e a deixaram montar um pequeno teatro para crianças das comunidades pobres vizinhas. A ideia inicial era montar peças com um elenco composto pelos moradores, mas, como só havia operários na região, e estes acordavam às 5h, não houve condições de realizar seu sonho. O jeito foi criar, ao lado de Martim Gonçalves, um grupo amador que montasse peças para este público, e não com ele. Nascia então, em 1951, o Teatro Tablado. Da primeira turma da escola, faziam parte Djenane Machado, Nora Esteves, Marieta Severo e Hildegard Angel.

Em 1955, Pluft Tornou-se o Texto Mais Premiado da Autora 

O primeiro sucesso de crítica veio em 1955 quando estreou O Boi e O Burro a Caminho de Belém, texto escrito para bonecos e transformado em peça para atores a conselho da figurinista Kalma Murtinho, então atriz da companhia. Não há, no entanto, como comparar a recepção de O Boi e o Burro a Caminho de Belém com a de Pluft, o Fantasminha , que, tendo estreado em 1953, tornou-se o maior sucesso do Tablado e texto mais montado da autora. “Ela é a minha peça mais completa, dura só uma hora e tem tudo, humor, poesia e situações”, disse Maria Clara em 1995, ao remontar a peça no Tablado.

Depois de Pluft, Maria Clara não parou mais de escrever. Foram mais de 25 peças, entre elas O Rapto das Cebolinhas, A Coruja Sofia, O Cavalinho Azul e A Bruxinha que Era Boa, que com linguagem ousada conquistavam crianças e adultos.

Mágoas eram poucas. O fato de nunca ter sido censurada era uma delas, como gostava de brincar, mas até essa foi deixada para trás nos anos 70, quando Maria Minhoca foi proibida em Pernambuco e em Porto Alegre por conter piadas envolvendo soldados. Outra mágoa: o fato de nem sempre ser considerada diretora, além de atriz e autora.

Quando estava bem-disposta, Maria Clara seguia uma rotina rígida. Acordava às 7h e caminhava pela Praia de Ipanema, bairro em que morava desde os 4 anos. Ia sempre sozinha porque, como costumava dizer, aquela era a “hora de pensar, de olhar o mar”. Mas que, por mais de uma vez, ela associou à morte: “Toda manhã saio e observo o mar. Ele está ali, continuará estando, eu é que vou embora. Queria me preparar bem para a morte, mas será que alguém consegue isso? Os jovens aprendem a crescer, mas ninguém nos ensina a ser velho. Olho para o passado como um acúmulo de coisas boas e ruins, e sinto carinho por tudo, menos ansiedade”, dizia.

Nos últimos tempos, nem sempre Maria Clara conseguia sair para andar, mas não deixava de ir até o Tablado, onde traçava as diretrizes do teatro ao lado de colaboradores como a atriz e diretora Cacá Mourthé, sua sobrinha, e Silvia Fucs, seu braço direito. Afinal, não era lá tão fácil cuidar de uma escola que formou mais de cinco mil atores, entre eles dezenas de estrelas de hoje como Cláudia Abreu, Malu Mader, Louise Cardoso e Miguel Falabella. Até o fim do ano passado, ainda dava aulas de interpretação para as turmas da terceira idade, os últimos a terem a sorte de aprender com uma das maiores professoras que o teatro brasileiro já teve.

Maria Clara Machado morreu ontem, aos 80 anos, às 20h45m, de linfoma de Hodgkin, um tipo de câncer do sistema imunológico. Ela estava em sua casa, em Ipanema, cercada de parentes e amigos. Após o velório na Capela do Patronato do Operário da Gávea, que fica no Tablado, o enterro será hoje, às 16h, no Cemitério do Caju.

Peças que Marcaram 

Desde 1953, quando estreou como autora, a carreira de Maria Clara foi marcada por grandes sucessos. Alguns deles:

O Boi e o Burro a Caminho de Belém, 1953. Esse auto de Natal marca a estreia da autora no teatro infantil.

O Rapto das Cebolinhas, 1954. Com ela, Maria Clara venceu um concurso. E convenceu-se de que estava no caminho certo.

Pluft, o Fantasminha, 1955. A peça mais conhecida de Maria Clara divertiu e enterneceu muitas gerações com a famosa pergunta do fantasminha: “Mamãe, gente existe?” 

A Bruxinha Que Era Boa, 1958. A história da bruxinha que sofre por ser meiguinha demais ainda é um dos textos mais encenados da autora.

O Cavalinho Azul, 1960. Um texto caro à Maria Clara, virou filme pelas mãos de Eduardo Escorel em 1983.

A Menina e o Vento, 1963. A aventura de uma garota que monta na cacunda do vento para descobrir a vida. 

Aprendiz de Feiticeiro, 1968. Neste texto, a autora ironiza a capacidade mental das autoridades militares. Eles haviam tomado o poder quatro anos antes.

Tribobó City, 1971. Um grande musical com jeitão de faroeste caboclo.

Os Cigarras e Os Formigas, 1977. A manjada fábula ganhou uma irreverente adaptação de Maria Clara, que também temperou outros clássicos como A Gata Borralheira, 1962; O Gato de Botas, 1986; João e Maria, 1979 e A Bela Adormecida, 1997.

A Coruja Sofia, 1994. Sem escrever desde O Gato de Botas, Maria Clara voltou à ativa nesta bonita peça com preocupações ecológicas. 

Jonas e a Baleia, 2000. Última peça da autora, escrita em parceria com Cacá Mourthé, em que ela reconta um episódio bíblico.