Placas, desenhos e cartazes compõem o cenário da peça e exigem atenção

Crítica publicada no Site da Revista Crescer
Por Dib Carneiro Neto – São Paulo – 14.07.2017

Linguagem múltipla em peça para fazer as crianças pensarem

A peça fica em cartaz até 23 de julho. Fotos: Cia De Feitos

Peça provoca crianças a pensar na “incoerência das guerras”

Inimigos, com a Cia. De Feitos, não poderia ser mais atual: por que mesmo as pessoas estão se sentindo inimigas umas das outras?

Gosto demais das peças da companhia De Feitos, criada em 2009 e capitaneada pelo diretor Carlos Canhameiro. Já vi O Pato, A Morte e a Tulipa (2011), Selma (2013) e Achados & Perdidos (2015). Sou fã declarado. Acho que eles são um dos melhores e maiores exemplos de grupo que vê o teatro para crianças de forma moderna, inovadora, sem medo de arriscar e de propor linguagens. A Cia. está em cartaz no SESC Belenzinho por mais dois fins de semana com ‘Inimigos’ – e mais uma vez confirmo o talento do grupo para a ousadia.

A linguagem praticada no palco é mista, múltipla, híbrida. É teatro saudavelmente ‘contaminado’ por muitas artes, como música (sempre ao vivo) e artes plásticas, e por muitas técnicas, como sombras e retroprojeção. Nada é mastigadinho, tudo é sugerido, simbolizado, proposto. Desta vez, o espaço para o não-verbal é bastante priorizado. É preciso estar atento a tantas sugestões e ideias vindas de elementos alegóricos, como placas, desenhos, painéis, cartazes.

O uso em cena de convenções gráficas, códigos e sinais é fartamente criativo. Como o hilário momento (auxiliado pela trilha sonora incidental) em que se faz referência aos botões/teclas de pause, play, rewind e forward. A identificação da plateia é imediata.  Na cenografia, o uso de bobinas de papel e papelão é um recurso visual inteligente, instigante e, claro, plasticamente belo. Na trilha sonora cantada ao vivo, é divertidíssimo o truque de soltar sempre a mesma canção cada vez que algum personagem usa a palavra ‘manual’. Funciona muito bem.

E por que ‘manual’? Pois a peça fala de manuais de guerra. A história se passa em algum lugar que poderia ser uma cidade, uma floresta ou um deserto onde existem dois buracos. A guerra coloca dois soldados em lados opostos. E assim eles ‘brincam’ de ser inimigos conforme ensina o manual da guerra. Porém, os dois inimigos são exatamente iguais, quase sempre assustados, com saudades das famílias, nervosos, com frio, com calor e com fome. Seus manuais são exatamente iguais. Então, por que lutam? Esse é justamente o importante tema do espetáculo: a incoerência das guerras. Trata-se da livre adaptação do livro O Inimigo, do consagrado escritor suíço Davide Cali.

A propósito do tema, Canhameiro, diretor e autor da adaptação, escreveu no programa da peça: “Quem é o inimigo? Quem é você? Assim cantava uma tal Legião Urbana, lá pelos idos de 1985. E parece que ainda hoje continuamos sem saber se o vizinho, o time adversário, a cor da camisa, a crença alheia, o sexo oposto etc. é o inimigo ou se somos nós. Inimigos por qual razão mesmo? Há razão para sermos Inimigos?” Ou seja, é realmente um assunto muito atual, tão atual que a esperta adaptação tira proveito disso e faz certas referências ao Brasil de hoje. O adaptador amplia em vez de restringir o tema. Os ‘inimigos’ podem ser rivais no futebol, diferentes na escolha da religião, fanáticos por partidos políticos e assim por diante.

Uma última observação, não sobre a impecável peça, mas sobre o público da peça. Justamente por ser um espetáculo que mais sugere do que ‘entrega de bandeja’, a ansiedade dos pais – ah, esses adultos – sobe pra Lua. Fiquei chocado mais uma vez ao constatar o quanto os pais e as mães ficam ‘narrando’ a peça para os filhos, em voz alta, sem a menor cerimônia, como se estivessem na sala de casa, sem se preocupar se estão incomodando a pessoa ao lado. Mais grave até do que incomodar a pessoa ao lado, é não deixar o filho descobrir o espetáculo sozinho, é tirar dele a chance de entender por si só as convenções, as referências, as sugestões. Por que essa necessidade de ficar contando para a criança o que está acontecendo no palco? Se ela não entender tudo, vai perguntar depois. E nem é necessário captar tudo. Cada um terá um tipo de fruição do tema, da proposta, da encenação. Isso é que é rico no teatro. Isso é que é lindo na Cia. De Feitos. Condeno há tempos e sempre condenarei essa ansiedade dos adultos nas plateias de teatro infantil.  E tenho dito.

Serviço

Local: SESC Belenzinho – Teatro
Rua Padre Adelino, 1.000, Belenzinho – São Paulo
Telefone: (11) 2076-9700
Capacidade: 392 pessoas
Sábados e domingos, às 12h (meio-dia)
Duração: 55 minutos
Classificação: Livre
Ingressos: R$ 20,00 (inteira); 10,00 (aposentado, pessoa com mais de 60 anos, pessoa com deficiência, estudante e servidor da escola pública com comprovante) e R$ 6,00 (trabalhador do comércio de bens, serviços e turismo credenciado no Sesc e dependentes). Sessões especiais: Dia 22/07 (sábado) com descrição em linguagem de sinais (Libras) e dia 23/07 (domingo) com audiodescrição com fones (para retirar é preciso apresentar de documento com foto)
Temporada: 24 de junho a 23 de julho de 2017