Muito já foi dito sobre as vantagens que inúmeras atividades exercem sobre o ser humano, por exemplo, a criança que pratica algum tipo de esporte adquire melhor desenvolvimento físico, melhor coordenação motora, capacidade de concentração mais aguçada, aprende a colaborar com o grupo, respeita melhor as regras e assim aprende melhor a lidar com os limites, etc.
Muito também já foi dito sobre as diversas aquisições envolvidas ao praticar algum tipo de atividade artística, e de acordo com a atividade praticada adquire-se diferentes habilidades e capacidades.
Não é preciso ser um grande cientista para detectar esses ganhos tão importantes, apenas com uma observação mais aguçada podemos perceber as diferenças que o indivíduo apresenta antes e depois de passar por alguma dessas experiências. Porém, se quisermos ir um pouco mais além dessas constatações empíricas, podemos nos debruçar sobre as descobertas na área da neurologia e da própria psicologia para refletirmos um pouco mais sobre a importância desses diferentes estímulos para as pessoas.
Inteligências Múltiplas
Nos últimos vinte anos várias pesquisas vêm sendo feitas sobre o funcionamento do cérebro com aparelhos cada vez mais especializados para as diferentes verificações. Portanto tem sido possível mapear o cérebro humano através de “varreduras” realizadas pelos aparelhos de ressonância magnética, por exemplo.
Nesses inúmeros estudos chegamos à Teoria das Múltiplas Inteligências, ou seja, temos em nosso cérebro diferentes áreas em que são desenvolvidas mais ou menos, de acordo com a predominância de interesses de cada um, uma determinada inteligência. Essa teoria, desenvolvida pela equipe da Universidade de Harvard e coordenada por Howard Gardner coloca por terra aquela antiga noção de que só existia um determinado padrão de pessoa inteligente, geralmente relacionado ao campo da lógica-matemática. Hoje em dia podemos legitimar uma pessoa pela sua inteligência na área musical, o que antes era visto como “uma pessoa preguiçosa para aprender, um vagabundo que só queria saber de escutar ou tocar música”.
Gardner começou mapeando algumas áreas no cérebro que se “iluminavam” distintamente de acordo com o estímulo ou atividade realizada, eram elas: a inteligência lingüística, a lógico-matemática, a espacial, a musical, a cinestésico-corporal, a naturalista ou biológica, a intrapessoal e a interpessoal, a essas oito o professor Nílson Machado, doutor em educação pela USP, acrescentou a inteligência pictórica, que se manifesta na criança através de seus desenhos ou outros signos pictóricos, ainda antes que a linguagem escrita lhe seja acessível, nos grandes cartunistas os personagens “falam” por suas expressões não verbais.
É importante lembrar que uma competência não exclui a outra, muito pelo contrário elas são complementares, e se relacionam de forma interdisciplinar, podendo ser mais ou menos desenvolvidas de acordo com a prática e os estímulos que são oferecidos, no entanto, aquilo que chamamos um dom natural acaba sendo explicado por haver uma correspondência física no próprio cérebro, este muitas vezes já apresenta uma determinada área mais expandida do que as outras desde muito cedo.
Sobre essas diferenças de pessoa para pessoa acrescentamos também as informações mais recentes sobre as diferenças físicas cerebrais entre homens e mulheres, a constatação de que a mulher tem a área da linguagem oral mais desenvolvida do que a do homem, enquanto que este desenvolve mais facilmente a área da lógica-matemática, e outras verificações que até já se tornaram banalizadas pela enorme divulgação nos meios de comunicação de massa.
Bem, não é meu intuito aqui me estender profundamente sobre a teoria das Inteligências Múltiplas, apenas aproveito essa descoberta científica para embasar um pouco mais as reflexões que proponho sobre a importância do teatro no desenvolvimento humano.
O Teatro
Se pensarmos no teatro como uma das manifestações artísticas do ser humano mais completas, podemos dizer que ele é um excelente alimento de estímulos para as mentes ávidas das crianças. Uma vez que na composição de um espetáculo teatral temos a possibilidade de acrescentarmos a música que compõe a trilha sonora, as artes plásticas que aparecem nos figurinos, nos adereços cênicos, no cenário e em toda a plasticidade que a combinação entre esses elementos geram, temos a dança e a expressão corporal no movimento e qualidade de gestos dos atores, temos a literatura que pode ser explorada através da história que é mais do que contada, “vivida” pelos intérpretes, e ainda associando o jogo teatral às múltiplas inteligências percebemos que podemos acrescentar a lógica-matemática na organização em que as cenas são colocadas de forma a encadearem uma seqüência lógica que dará sentido à trama apresentada, temos a inteligência naturalista ou biológica no momento em que o uso de efeitos especiais são utilizados e na própria iluminação que não deixa de ser um artifício engendrado pelo homem para manipular os elementos da natureza criando diferentes sensações e ambientações, temos a inteligência interpessoal uma vez em que o teatro é uma atividade de equipe, portanto é preciso saber lidar com o outro, e no momento em que esse grupo de artistas se apresenta, ele deve saber usar sua capacidade interpessoal para lidar com essa platéia criando uma empatia e despertando um carisma necessário para transmitir sua arte e estabelecer uma comunicação, e finalmente a intrapessoal que é essencial para o ator, pois exige que este tenha um auto-conhecimento desenvolvido uma vez que seu instrumento de trabalho é ele próprio, é preciso então que ele esteja sabendo administrar seus sentimentos e emoções para inclusive poder transmitir aqueles que são adequados no momento específico de quando se está em cena, e a intrapessoal também é desenvolvida pela platéia que assiste a um espetáculo uma vez que as situações vividas na cena teatral provocam neste espectador uma série de reações, sentimentos, emoções, e uma vez que este entra em contato com seu mundo interno pode administrar também seus próprios sentimentos, identificando-os e classificando-os e assim também participando de um processo de enriquecimento pessoal.
Existem várias maneiras de participar deste processo: atuando e participando ativamente da cena teatral, ou seja, sendo participante do jogo teatral como grupo em processo – isto é, fazendo aula de teatro, construindo um espetáculo, apenas jogando livremente sem um “líder profissional”; assistindo a um espetáculo teatral, que pode ser encenado por profissionais ou amadores mais ou menos qualificados.
Neste momento proponho refletirmos sobre as aquisições feitas no ato de assistir a um espetáculo teatral, pois sobre o processo de participação do jogo teatral me parece mais óbvio detectarmos os ganhos obtidos. Mas, o que será que ocorre com uma criança ao assistir a um espetáculo de teatro?
A Criança e o Espetáculo Teatral
Escolhi falar sobre a criança como espectador porque daí podemos concluir os benefícios também conquistados pelo adulto ao longo do seu processo de desenvolvimento. Bem, tomemos a criança como referência, a neurologia, mais uma vez nos informa que o cérebro da criança, na fase dos dois aos doze anos, está no auge do seu processo de construção que poderíamos dizer que se retirássemos um dos dois hemisférios, o outro conseguiria sozinho reconstruir todas as conexões necessárias, tal a sua plasticidade e capacidade de adaptação, fato que no adulto não ocorreria, pois o cérebro adulto encontra-se com padrões mais rígidos e mais solidificados. É nesta fase infantil também que está no auge a produção de mielina, substância que irá ajudar os neurônios a realizarem as sinapses, ou seja, a comunicação entre as células se fazem de forma mais rápida e eficiente. É por este fato que podemos dizer que esta é a idade ideal para a aquisição de novos aprendizados, pois nossa mente está apta a fixar e memorizar novos conceitos, a se adaptar às novidades e a responder de forma mais espontânea aos estímulos externos.
Pois bem, se esta é uma fase áurea da psique humana, também é o momento em que devemos nos preocupar com o que estaremos oferecendo à essas mentes ávidas, pois assim como não devemos sobrecarregá-la de estímulos, também devemos nos ater a qualidade do que está sendo oferecido. Assim como não devemos super alimentar uma pessoa gulosa, e nem lhe oferecer toda sorte de produtos existentes no mercado, essa é a preocupação com a qualidade do que esse jovem espectador irá assistir, por isso o teatro como qualquer outra arte ou ciência deve ser realizado por pessoas competentes que estudaram e preparam de forma cuidadosa o que estará sendo exposto e a quem.
A criança, ao assistir a uma peça, tem os seguintes benefícios:
Convívio social – aprende a se comportar de determinada maneira para assistir ao teatro, uma vez que ela não está sozinha, deve saber respeitar a concentração dos outros espectadores, fazendo um certo silêncio, e também não interferindo de forma inadequada no espetáculo para que esse possa se desenrolar sem grandes obstáculos. Temos aí a relação interpessoal em jogo.
Ampliação do seu repertório de histórias – a cada nova peça que assiste é mais uma história que conhece, aumentando assim sua cultura geral, seu vocabulário com a compreensão de novas palavras e expressões, que dentro de um contexto ganham sentido e entendimento pleno. Neste caso sua inteligência lingüística está se estendendo.
Noções de lógica e causalidade – ao assistir de fora a uma peça, a criança compreende melhor o conjunto das informações, percebendo a idéia de início-meio-fim, as cenas se encadeiam numa seqüência quase matemática onde tal atitude causa tal impacto e assim por diante. Sua capacidade lógico-matemática entra em ação sem ela precisar se esforçar para isso.
Leitura da linguagem não verbal – muitos códigos são usados nas diferentes linguagens teatrais, temos o uso da expressão corporal, da mímica, da dança, do circo, de sombras, de manipulação de bonecos e adereços de animação, de instrumentos musicais e de percussão, uma infinidade de elementos que despertam a capacidade de leitura de signos que irão gerar novos significados, ajudando assim a construção do simbólico operando de forma tal a desenvolver a capacidade de abstração no futuro próximo, falando aqui do conceito Piagetiano da construção da inteligência. E dentro da nossa teoria das Inteligências Múltiplas teríamos nesse momento várias áreas predominando: a pictórica, a cinestésica-corporal e a musical.
A elaboração de suas próprias emoções – ao se envolver com a história vivida no “palco”, a criança irá despertar uma série de sentimentos e reações emocionais, ela irá vibrar, torcendo pelo herói, ela irá sentir raiva, medo, frustração, compaixão, ternura, tristeza e tantas outras sensações, que dependendo de como a história é conduzida fará com que ela desencadeie um processo de elaboração desses sentimentos, pode ser que ela precise desenhar sobre o que viu, que precise se movimentar fisicamente, que precise chorar, rir, contar e recontar trechos da história para os outros, ou até silenciar durante algum tempo. O que torna esse fato um tanto diferente de quando assistimos a um filme ou desenho animado? O teatro é ao vivo. As pessoas são de verdade e acessíveis. Há uma troca verdadeira ,”on line”, e se os atores forem sensíveis, o que geralmente são, eles saberão adequar o “tom” do espetáculo aquele determinado público, e isso faz uma grande diferença. Pois, o ator percebe quando pode e deve exagerar um pouco mais em determinado aspecto da cena, se deve ou não sublinhar um outro trecho, de acordo com a resposta sutil dos olhares e ruídos das crianças. Temos aqui o aprendizado rico e verdadeiro da nossa habilidade intrapessoal.
Conclusão
Eis aqui algumas das infinitas contribuições que o teatro pode e deve fazer para ajudar na construção de um ser humano melhor, mais sensível e mais habilitado para lidar num mundo tão complexo quanto a mente humana é capaz de criar.
Márcia Frederico
Atriz, autora, professora de teatro, psicóloga – psicodramatista.