A pesquisa estuda o modo como duas escolas dedicadas à formação de marionetistas organizam o ensino do teatro de animação, com ênfase na heterogeneidade e hibridismo, que atualmente caracterizam essa arte. As escolas trabalham com ideias e conceitos de cinco dramaturgos e diretores teatrais do século XIX e primeiras décadas do século XX, considerados pioneiros numa nova concepção de interpretação teatral, tendo como referência a marionete. Artistas como Heinrich Von Kleist, Maurice Maeterlinck, Alfred Jarry, Edward Gordon Craig e Vsevolod Meyerhold se apropriam do teatro de Marionetes como gênero artístico e da marionete como referência para o novo trabalho do ator.
Somente a partir da década de 50, na Europa, e dos anos 60, no Brasil, as ideias desses pensadores repercutiram na criação de espetáculos de teatro de animação. Desde então, diversos marionetistas romperam com a homogeneidade predominante na poética tradicional do teatro de bonecos. Ao ultrapassar certas convenções dessa arte, eles usam variados meios de expressão, abandonam o boneco do tipo antropomorfo, desprezam o palquinho tradicional do teatro de bonecos, transformando-o num teatro bastante heterogêneo.
A proximidade com outras linguagens artísticas incluindo a dança, a mímica, o circo, o teatro de atores, as artes plásticas e o espetáculo multimídia torna esta arte mais atual, híbrida, mas distanciada dos códigos e registros que historicamente a levaram a ser conhecida do grande público.
Tal heterogeneidade do teatro de animação não elimina suas especificidades. Ao contrário, remete à necessidade de compreender o complexo trabalho do ator-animador, que consiste em animar a forma inanimada, em transpor suas emoções ao objeto. Uma das questões centrais da investigação é: como ensinar essa linguagem artística considerando a heterogeneidade e hibridismo que caracterizam essa arte contemporaneamente?
A observação do funcionamento de duas escolas de teatro de marionetes indica princípios de trabalho relevante a serem considerados. Inicialmente se destaca o cuidado com a superação dos riscos do empirismo a que uma concepção de formação inspirada na prática normalmente está submetida, assim como superar a formação pela transmissão da experiência pessoal, uma vez que esse tipo de formação se dá quase sempre num sentido único, e não contempla as amplas concepções teatrais, a diversidade de caminhos e o vasto panorama de meios que o campo do teatro reúne.
É importante que a escola de teatro paute seu trabalho por uma filosofia que não a enclausure no sistema fechado do imobilismo acadêmico e se inspire na diversidade do teatro contemporâneo. E tenha presente perguntas como: Que ator marionetista formar? Para qual teatro? Ou melhor, para quais teatros? Respostas claras para estas perguntas são difíceis de se obter.
Outra ideia fundamental é a de uma formação de base idêntica a do ator, porque o marionetista é um homem de teatro. No entanto, precisa descobrir um teatro plural, uma vez que a profissão de marionetista tem exigências diferentes. Formar marionetistas é uma tarefa árdua em razão da diversidade de modalidades cênicas e de técnicas que o campo da marionete cobre. A expressão teatro de animação abarca diversas estéticas. Conforme Niculescu, é como uma orquestra, porque existe o boneco de luva, fio, haste, vara, sombras e cada um deles não se constitui somente em técnica, mas pressupõe também uma estética.
Compreender os princípios estéticos de cada uma dessas linguagens, experimentando e praticando seus recursos técnicos, certamente gera crises entre a amplitude das propostas e a exiguidade do tempo para executá-las com profundidade. Mesmo assim, Niculescu vê a escola como o lugar onde o aluno marionetista adquirirá os conhecimentos básicos: a ideia não é de que saia virtuoso, como um violinista que durante quatro anos só estuda um instrumento. Praticar diferentes linguagens, quando se começa a fazer teatro, me parece um bom caminho. Depois, quando sai da escola, mais informado, conhecendo mais as linguagens, há bases mais sólidas para responder aos seus desejos. E no tempo criativo dos ensaios, é possível aprofundar e se definir por uma estética, um tipo de espetáculo.
O permanente movimento entre o conhecimento da história, das ideias, das formulações teóricas e suas relações com o teatro feito hoje pelos que ela chama de mestres, ou criadores, desafiando e estimulando o jovem artista a se expressar, é a base da sua concepção: eu imagino uma escola multidisciplinar, global, o ir e vir entre técnica e criação. É como rios paralelos que misturam suas águas. A arte e a profissão não são coisas separadas. A profissão está em permanente evolução e busca, afirma Copeau. Estas palavras são ainda mais verdadeiras para o teatro de marionetes. Não esqueçamos que vivemos num tempo onde se multiplicam os vínculos entre os homens, artes e culturas. E que uma escola é uma oportunidade de sair do isolamento, de se abrir às práticas artísticas vindas de outros horizontes. É sobre o percurso da escola que se podem construir as pontes entre o passado e o futuro para colocar as bases menos frágeis a uma busca individual e abrir, eventualmente, as perspectivas do futuro do teatro. Eu continuo ligada à ideia de confiar à escola a construção de um percurso onde reine o espírito de abertura, a curiosidade, a coragem do risco, a criatividade, o rigor (Niculescu). Para Mangani, a arte do teatro de títeres é uma linguagem específica, com uma metodologia e instrumentos que lhe são próprios: no ator titeriteiro, o instrumento não é somente o boneco, mas a síntese. O amalgamento, se pode até dizer a incorporeidade que se estabelece entre o corpo e um objeto inerte, para transformar estes dois elementos num terceiro, que é o veículo expressivo. O que a escola busca transmitir é que a técnica, com paciência e perseverança, todos aprendem, mas nem todos são artistas. Normalmente se pensa que primeiro é preciso ter técnica para depois conseguir expressar-se, quando na verdade se vai adquirindo tudo junto. E às vezes, quando se prioriza a técnica… já é tarde.
A prioridade da escola é formar titeriteiros intérpretes, onde os princípios técnicos da confecção e da manipulação acompanhem o que a escola considera vital: interpretação titeriteira e dramaturgia. Para Mangani, essa interpretação se diferencia da interpretação do ator: continuo acreditando que a formação do titeriteiro é uma síntese superadora da formação do ator, por um lado, e da formação técnica de fazer títeres, por outro. Dá ênfase à necessidade de compreender a atividade do titeriteiro como um trabalho que exige outros conhecimentos, uma outra qualidade que não é só a do intérprete. Não se trata da simples soma do trabalho do ator com a expressividade do objeto. A interpretação titeriteira pressupõe que dessa união, da mistura de elementos que se apresentam no trabalho do ator e da expressividade das formas, resulte um outro elemento, uno, que é a interpretação mediada pelo objeto. Opera-se, assim, a fusão de dois elementos numa ligação íntima, combinada: a interpretação do ator – titeriteiro. Mangani aponta a fundamentação ideológica e estética que permeia a prática da escola: a busca interior, o autoconhecimento, o rigor de abordar-se a si mesmo exigem do artista o domínio da técnica. Mas ela precisa ser acrescida de algo seu, pessoal. Algo como cultivar-se, sensibilizar-se. Há também um fundamento ético questionando o para quê formar, pelo qual também se reflete na escola sobre a função social da arte e o papel do artista na sociedade. Não induzimos a que se posicione desta ou daquela maneira. O que fazemos, na escola, é que se pergunte sobre as coisas e se responda de acordo com sua posição própria. Tudo o que se faz significa algo e, pelo menos, se deve saber o que significa (Mangani). Ao relacionar e interligar ideologia, estética e ética, a diretora aponta para a importância de o processo de formação do artista contemplar reflexões sobre elementos como inquietude e permanente questionamento sobre a própria produção, responsabilidade social e vinculação com o contexto social onde vive. Isso reforça a crença na importância de desenvolver as capacidades expressivas e a inteligência, possibilitando o desenvolvimento mais completo do ser humano. O que se percebe, de modo geral, nas motivações das diretoras das escolas é o desejo de renovação teatral. Como diz BARBA (1995:26), se por um lado a escola é um compromisso com o que já existe, por outro, é um lugar onde as utopias se tornam realidade, onde as tensões que sustentam o ato teatral assumem formas e são colocadas em teste. (…) As escolas se iniciam para renovar o teatro, para colocar os alicerces do teatro do futuro e para ampliar as perspectivas do futuro do teatro.
Depreende-se que, para ensinar esta arte, é fundamental não confiná-la em si mesma como linguagem artística. A formação do ator marionetista contempla o estudo e a relação com artistas que trabalham com outras linguagens. Segundo Niculescu: atualmente, as definições de teatro são imprecisas. Não existem fronteiras entre os gêneros, estilos, artes. Mais do que nunca as artes da cena – e entre elas o teatro, sempre cruzado – conhecem uma fisionomia imprevisível de linguagens cênicas.
A constatação de que a produção artística contemporânea é permeada de interferências de expressões artísticas de diversos campos acaba influenciando os procedimentos pedagógicos da escola. O desafio está em ampliar o olhar do aluno ator, apoiando-se em experiências de gerações e em conceitos formulados por diferentes estudiosos do teatro. O conhecimento simultâneo da multiplicidade de expressões artísticas reforça a ideia de teatro como arte polifônica e ao mesmo tempo híbrida, heterogênea.
Referência Bibliográfica
BARBA, Eugenio e SAVARESE, Nicola. A arte secreta do ator: dicionário de antropologia teatral. Campinas: Hucitec, 1995
BELTRAME, Valmor. Animar o Inanimado: a formação profissional no teatro de bonecos. Tese (Doutorado em Teatro) ECA-USP, PLASSARD, Didier. L’acteur in Effigie. Paris: L’Age d’Homme,1992
Valmor Beltrani (Nini)
Marionetista e diretor teatral, doutor em teatro e professor no Programa de Pós-Graduação em Teatro – Mestrado, na UDESC – Universidade do Estado de Santa Catarina
Obs.
Texto retirado da Revista FENATIB, referente ao 10º Festival Nacional de Teatro Infantil de Blumenau (2006)