Os três velhinhos bem gagás mais parecem crianças (Jackie Obrigon, Guto Togniazzolo e Fausto Franco)

Crítica publicada no Site da Revista Crescer
Por Dib Carneiro Neto – São Paulo – 17.04.2017

A peça é cheia de nuances interpretáveis. Fotos: Maria Clara Diniz

Os personagens Gagá, Lelé e Tantã

Gagá, um jeito de fazer teatro para crianças sem medo de arriscar.

Peça infantil de Marcelo Romagnoli não tem enredo linear e pergunta mais do que responde, estimulando toda a família a ‘voar’ sem redes de proteção

Na semana passada, escrevi neste espaço sobre dois autores novos, ambos ainda engatinhando na arte de fazer dramaturgia para crianças. Hoje, falo de um autor/diretor veterano e premiadíssimo que tem pleno domínio do que faz no teatro infantil, mas se reinventa a cada novo trabalho, apoiado em muita criatividade e imaginação. Um autor que, portanto, é velho e é novo, porque quanto mais se consolida mais sabe recomeçar, ousar, arriscar e se renovar, acreditando na importância de ter a bagagem que já tem, desde que ela seja usada para impulsioná-lo a novos voos, em vez de “sentar nos louros da vitória” e acomodar-se em um jeito único de fazer teatro.

Falo de Marcelo Romagnoli, que você e sua família certamente conhecem como autor/diretor/adaptador de espetáculos como Terremota, O Menino Teresa, Sapecado, Espoleta, O Menino Que Mordeu Picasso, Felizardo, Felpo Filva e tantos outros – a maior parte encenados por seu grupo, a Banda Mirim. Pois atualmente ele está em cartaz no Sesc Pinheiros, em São Paulo, aos domingos, com o imperdível Gagá.

Sabe quando a gente fica tentando descobrir para qual faixa etária os espetáculos são destinados? Pois vá ver Gagá e depois tente definir uma faixa de idade. Se existe uma peça que subverte essas convenções típicas de tijolinhos de jornal, essa peça é Gagá. É teatro adulto no horário de teatro infantil? Sim. É teatro infantil com pegada de teatro adulto? Também. É teatro para todas as idades? Certíssimo. Mas, sobretudo, é teatro – e dos bons. E quando é teatro bom, todo mundo se interessa e gosta, não importa a idade.
É maravilhoso levar os filhos para ver os clássicos, contos e recontos, fábulas consagradas, histórias conhecidas desde o berço, lendas, mitos e folclores. Isso alimenta a fantasia das crianças, estimula a imaginação. Mas ache um tempo para ir com a família ver também espetáculos com novas propostas, novas ideias, ousadias dramatúrgicas, descompromissos arriscados, ausências de linearidades aristotélicas. Assim é Gagá.

O espetáculo ocorre em um não-lugar. Tudo é branco, limpo, desprovido de marcas (cenário e luz de Marisa Bentivegna). A idade dos três personagens? Sei lá. Aparentemente são três velhinhos bem gagás, como diz o título, mas como eles se parecem com crianças… Sim, são muito sapecas. Estão presos, estão mortos, estão no pátio de hospício, no quarto de hospital? Já estão há tempos no céu ou à beira de entrar no paraíso? Um dos personagens, à certa altura, diz textualmente: “Aqui não tem céu.” Mas então o quê? Estariam ali prontos para nascer ou para morrer? Que tempo é esse? “Agora a criança sou eu?”, pergunta um deles quase no final da peça. “Exatamente”, responde o outro. Exatamente?! “Ninguém sabe nada exatamente”, proclama o terceiro. E não à toa será justamente essa a última palavra do espetáculo: “exatamente”.

Gagá é “exatamente” assim. Não importam as definições, as certezas, tampouco o enredo. Importa mais deixar-se entregar ao jogo de palavras, ao nonsense pirandelliano proposital, às tiradas filosóficas, às provocações infantis, às rabugices da idade avançada, aos sonhos imorredouros, aos estímulos alegóricos. Mas como assim? O meu filho vai sair do teatro com mais dúvidas do que com certezas? Ótimo que seja assim. Teatro é isso também. E muito. Romagnoli é artista que instiga, provoca, estimula. A garotada precisa saber, desde cedo, o quanto é amplo o leque de possibilidades teatrais. Esse premiado dramaturgo oferece liberdade em forma de arte. E, assim, quanto menos passível for a criança de ser manipulada e domesticada, mais saudável ela será sempre, durante toda a sua vida. Cinderela e Pinóquio, com começo, meio e fim, são necessários na infância? Demais. Mas Gagá, escrito com a mesma pena fluida da matéria de que são feitos os sonhos, também é muito necessário para a formação da criatividade do público mirim. Tenha certeza: proporcionar aos seus filhos uma peça como Gagá é como dar-lhes linha e agulha para costurarem asas nas próprias costas – asas que os conduzirão a uma vida adulta mais livre, mais rica em linguagens, mais farta em descobertas, menos fechada em certezas.

A sabedoria popular não diz que, ao ficarmos velhos, voltamos a ser crianças? Pois essa parece ter sido a premissa para a concepção de Gagá. Em cena, três grandes atores do circuito paulistano – Jackie Obrigon, Guto Togniazzolo e Fausto Franco – fazem a festa, com muito talento e ricas nuances interpretativas. Impossível dizer qual dos três é melhor nesse jogo de ser criança e ser idoso, nesse desafio de ser rabugento e ser pueril, nessa corda bamba entre ser esperançoso e resignado. Gagá, Lelé e Tantã, os três personagens, são três ‘cavaleiros de triste figura’ e também são três pirralhos aprontando todas. A identificação do público vem de todo jeito: “Sou eu brigando com meu irmãozinho”, pode dizer uma menina na plateia. Ou: “É minha avó batendo boca com meu avô”, pode pensar outra criança. É tudo isso – e muito mais.

Curioso é que, no início do ano, estive eu como crítico convidado em São José do Rio Preto, interior de São Paulo, prestigiando o 13.º Festival ‘Em Janeiro Teatro pra Criança É o Maior Barato’, promovido pelo grupo local Fábrica de Sonhos. Pois na grade havia outras duas peças que falavam de velhice – em um festival de teatro infantil. Eram elas: Cuca Caduca Cabeça de Vento, do Grupo Mon’onírico, e ‘Por Quê?’, da Cia. Cênica, ambas dirigidas por Linaldo Telles (a segunda, em parceria com Fagner Rodrigues). Achei o máximo essa tendência, que agora se completa com esse Gagá, de Romagnoli. Pois isso prova mais uma vez o quanto a dramaturgia para crianças pode ser abrangente, sem limites de idade nem entraves temáticos. Fiquei pensando cá com meus botões: temos a ‘modalidade’ chamada teatro infantil, depois começaram a falar em teatro jovem (para adolescentes), em seguida veio a vertente do teatro para bebês – e agora estaria surgindo o ‘teatro da terceira idade’? Bom, para quem gosta de distribuir rótulos em profusão, eis um prato cheio.

O texto de Marcelo Romagnoli é direto, ágil, feito só de frases curtas. Há lindas citações que fazem pensar, que remetem a conteúdos filosóficos, a questionamentos de forte empatia com o público. Alguns exemplos disso no texto da peça:

No escuro todo mundo é livre.
Só temos o silêncio.
Todo mundo é livre para dizer tchau.
Se a gente combina antes, dói menos.
A vida é muito mais bonita quando se tem grandes ideias.
A gente tem tudo o que existe.
A gente chora tudo o que não pode.
Todas as coisas são e não são.
Todo tempo é ao mesmo tempo.
Quem se contenta com o que tem é feliz.
De longe tudo é fácil.

O ardiloso autor ainda acha tempo para ‘brincar’ de metalinguagem e acrescenta mais uma possibilidade ao enredo: não é céu, não é hospício, não é hospital – é uma peça de teatro. Ele brechtianamente revela o jogo ao propor duas quebras nos diálogos. E ambas pela voz do personagem Gagá (Guto Tognazzolo), talvez o mais enigmático dos três, por surgir sozinho e somente na segunda metade do espetáculo. Em determinado momento ele diz: “Não tem ninguém. Isso significa que a peça acabou?” E mais adiante reforça que estão ‘apenas’ fazendo teatro: “Esta cena acabou. Vamos trocar logo as fraldas.” Numa peça como essa, feita de areia movediça e armadilhas fantasiosas, acrescentar esses momentos anti-ilusionistas é artimanha das mais inteligentes – e rica para a iniciação teatral das crianças.

Ao mesmo tempo, Romagnoli – como bom contador de histórias que é e sempre foi – não deixa também de enaltecer a força da ficção. E inclui uma cena sempre infalível: em que se contam histórias antes de dormir. Se, como crítico, até aí consegui segurar a explosão de emoção por ver texto tão potente e incomum sendo encenado com tamanha competência, nessa hora foi impossível resistir e, confesso sem pudores, meus olhos se molharam. De novo, na voz de Gagá: “Conte uma história. (…) E invente uma história ‘arrepilante’. De fogo e labaredas. Com monstros de chifres. E rabos e espetos. Tempestade. Luz no fim do túnel. E todas as outras injustiças. Por favor.” Quer homenagem mais linda ao teatro, uma arte que, afinal, em sua essência, é sempre feita por irrefreáveis contadores de histórias? Chorei, sim.

Mas irresistível mesmo-mesmo é o trecho final – e aqui o spoiler é permitido, pois a peça é tão fora de qualquer padrão que não há nada a se revelar que possa prejudicar o impacto de um não-enredo. Tantã: “O que acontece depois?” Lelé: “Ele vai sonhar.” Tantã: “Essa é a melhor parte.” Lelé: “Exatamente.” Marcelo Romagnoli despede-se do público fazendo seus personagens anunciarem que agora é hora de sonhar – e é a melhor parte. Vamos todos para casa com a pulga atrás da orelha? Com as frases de efeito martelando em nossas cabeças? Com mais perguntas do que respostas? Pensando em como montar um enredo linear em nossas cabeças? Sim. Essa é a melhor parte. A nossa parte. E, pouco antes, Gagá ainda ousa perguntar: “Vocês não vão se esquecer de mim, vão?”

Como seria possível esquecer de Gagá?

Serviço

SESC Pinheiros – Auditório (3º andar)
Rua Paes Leme, 195, Pinheiros, São Paulo
Telefone: 11 3095-9400
Duração: 50 minutos
Capacidade: 98 lugares
Domingos, às 15h e às 17h.
Classificação etária: Livre
Ingressos: Grátis para crianças até 12 anos. R$ 17,00 (inteira), R$ 8,50 (meia) eR$ 5,00 (comerciários credenciados)
Temporada: De 12 de março a 30 de abril de 2017