Crítica publicada na Última Hora
Por Maria Teresa Amaral – Rio de Janeiro – 1995

Barra

Funk-se é um espetáculo teatral, em cartaz no Teatro da Praia, fruto das oficinas do Centro de Artes Calouste Gulbenkian, da Secretaria Municipal de Cultura. A peça criou, ao longo de sua carreira, marolas por ser o assunto polêmico e o tratamento honesto: fala do funk, da cultura das favelas e sua interpenetração com a cultura “mauricinha” e “patricinha” principalmente da Zona Sul.

Muito já foi dito sobre esse assunto, que envolve desde a antropologia urbana até segurança, preconceito, etnocentria e o direito ou não de exercê-la. Ainda na última terça feira Arnaldo Jabor nos deu o prazer de lê-lo (Globo e Folha de S. Paulo) em Favelas do Rio São Países Estrangeiros.

Cito seu último parágrafo: “E ouso dizer: a violência atual e as favelas só se resolvem no Rio se dermos aos seus habitantes condições de se defenderem de nossas “soluções”. Não há soluções conhecidas. E elas não virão pelo charme de urbanistas cultos, nem de pranchetas magníficas, nem de verbas generosas fluindo pelo óbvio, nem de armamentos sofisticados, nem de policiais bem pagos. Tem de haver uma transferência de poder. Se for preciso, autonomia municipal para as favelas, com prefeitos próprios e líderes. A miséria tem de planejar seu destino. O futuro do Rio está na imaginação administrativa dos miseráveis. Temos de reconhecer sua independência. As favelas são países estrangeiros”.

Esta solução, fascinante porque multicultural e extremamente contemporânea, passa pela pá de cal no estado-nação, aliás com fim previsto por vários teóricos para breve. Só que as favelas andam ficando gulosas: já impõem toque de recolher a bairros “do asfalto” e seus tiros atingem janelas e pessoas em Copacabana e Ipanema.

Imagino que viraremos sérvios, bósnios e croatas, tiros de AR-15 qual lazers cruzando os céus. Desembarcaremos em pleno Mad Max, tendo a democracia como forma de governo tão distante quanto a organização quase anárquica dos druidas. Por que afinal de contas quem conhece, biblicamente, um pouco de democracia? Ou nem que seja só de leitura? Ipanema, Tijuca, Copa e mais alguns bairros? Talvez lá pela Barra alguém se habilite a defendê-la? Flamengo? No Leblon quantos? Eu aqui na Urca, acho com toda a minha alma, como Churchill, que dos males a democracia é o menor. Mas eu, quem sou eu, e quando serei obrigada a comprar meu fuzil com equipamento infravermelho, e sei lá o quê, ou morrer heroica e tolamente gritando: “Liberté, Egalité et Fraternité”?

Parece-me que o tempo está mais “aux armes citoyens”. Mas felizmente não é o que acham os meninos de Funk-se nem a plateia jovem que os aplaude entusiasticamente. Seba, ator e amigo meu, saiu feliz de ver “essa juventude que acredita na paz como nós acreditávamos”.

Crer na paz será só um rito de passagem? Perambular, envolver-se com culturas proibidas não será outro? Não é atoa que o diabo depois de velho se fez ermitão.

Muito pulei eu cercas pessoas e políticas em ritos de passagem, que fiz continuar muito tempo, anormalmente, para que o gosto de adolescência me adocicasse a boca, mesmo com risco de qualquer diabete da cuca. E às vezes ainda pago preços altíssimos por esses pecados do risco, beiras de precipício e de prazer.

Que poderia eu dizer a uma filha, que como a “patricinha” da peça, resolvesse, em clima de novela da Globo, apaixonar-se e casar, arriscando-se por sobre arames farpados dos sérvios e bósnios do Rio, rompendo as grades de seu prédio e o cerco de soldados dos donos do morro?

Quase que escrevi senhores do morro. Contive-me. Porque se eles são senhores, que somos nós? Escravos? Sempre achei que a Abolição foi mútua, com a anistia dos torturadores. Mas se não foi, o Jabor tem razão: não adianta ficar se lamentando. Nunca adianta. É verdade que o carioca anda muito resmunguento. Paremos com isso.

Vamos então seguir novo curso de pensamento: quem vamos amarrar nas pontes ou paióis, como os sérvios, ou como os traficantes fizeram com o leãozinho no D. Martha? Virará o Morro dos Prazeres as colinas de Golan?

Ou poderemos viver em plena realidade virtual, numa dobra da Internet que nos convenha, entrando na telinha plim-plim  ou mudando os finais da vida como os simpáticos garotos de Funk-se. Ah, se fosse possível! O velho Shakespeare já sabia das dificuldades quando matou Romeu e Julieta, que note-se, pertenciam a mesma cultura aristocrática. Mas vai ver na época uma briga de família era mais séria que os abismos culturais de hoje. Quem sabe?

Mas não tira pedaço, e até dá prazer ver em cena tanto entusiasmo com o teatro e com a vida, como em Funk-se. Observar as galeras na plateia reagindo a sua primeira experiência teatral. Esse teatro adolescente, recém-batizado, pode acabar dando de quatro no chamado teatro adulto ( foi assim nos setenta com os espetáculos infantis). Podem ir ao Teatro da Praia: não vão se arrepender.