Fernanda Paixão

As artistas-pesquisadoras Fernanda Paixão (*) e Cirila Targhetta (**) dialogam sobre arte para a primeira infância, a partir da dissertação de mestrado de Fernanda, “Performance Relacional: Composições entre Bebês e Adultas/os”, pelo PPGAC/UNIRIO, com orientação da Profa. Dra. Tania Alice.

CIRILA: Você acredita que existe um chocolate para adultas/os e outro para crianças? (ou então) Porque fazer/criar arte para bebês e crianças em seus primeiros anos?

FERNANDA: Sinto que a medida que crescemos vamos ganhando músculo, força e flexibilidade para diversos tipos de chocolates (risos), ampliando nosso paladar.  Uma vez, assisti a um documentário sobre o orfanato em Budapeste, Hungria coordenado pela pediatra Emmi Pikler e uma das cenas que mais me impactou foi a de um bebê (caminhante) descendo uma escada.

A educadora olhava pra ele debaixo da escada, e ele descia devagar trocando olhar com a educadora. A Emmi Pikler trouxe para aquele orfanato uma abordagem que visa uma atitude não invasiva nos cuidados com as crianças e naquele momento o bebê estava em total envolvimento com suas capacidades para descer aquela escada. Eu, normalmente, seguraria sua mão e subiria com ele.

Assisti essa cena antes de pensar em performance com/para bebês e percebi naquele momento o quanto a linguagem da performance arte poderia contribuir para uma escuta profunda às crianças. Meu mestrado foi sobre performance relacional, onde o encontro é a própria obra de arte e claro, como elaboramos e construímos esse encontro.

Nesse sentido de construção de encontros e lapidação de uma escuta com menos interferência e mais acolhedora, me parece que a arte para/com bebês não é só para bebês é muito para adultas/os.

Em relação a faixa etária, eu como artista costumo elaborar diferentes trabalhos para diversas idades, não me especializei em fazer arte para primeira infância, o que me move é o assunto, o tema, a causa do que estamos falando, um ativismo artístico. O que é necessário falar agora? Com quem? Naquele momento as crianças em seus primeiros anos nos ajudariam muito a perceber questões relacionadas a hierarquia de saberes, escuta e autonomia ao mesmo tempo que promoveria outras possibilidades de relação para elas próprias com seus responsáveis, e então sinto que teve benefícios para adultes e bebês ao mesmo tempo.

CIRILA: Como foi desenvolver essa “pesquisa-composição” em meio aos “sobressaltos, surpresas e imprevisibilidades” exacerbados pelos protocolos sanitários advindos pela pandemia da Covid-19?

FERNANDA: Meu último encontro com os bebês foi na primeira semana de março de 2020, Universidade de Concórdia – Montreal! Uma loucura, em poucos dias a noção de que não poderíamos estar junto chegou ao mundo de forma radical, foi uma sorte. No momento da quarentena eu estava escrevendo sobre os encontros presenciais, um misto de agradecimento por ter conseguido encontrar e uma tristeza pela incerteza de novos encontros.

CIRILA: Você menciona na sua dissertação como você encontrou as/os bebês. Nesta trajetória relacional entre adultos e bebês, você estabelece fronteiras, fricções e/ou interseções entre a arte e a educação?

FERNANDA: Estabeleço, fronteiras, fricções e interseções em diferentes momentos. A educação me trouxe o tema, a inquietação, a necessidade de escutar mais e ser escutada, de não ser autoritária e de relativizar os saberes, sem diminuir o saber da criança. Quando fiz a performance Encontro-Performance no Solar dos Abacaxis e em uma casa com um grupo de bebês no Rio de janeiro, percebi uma fricção e uma interseção entre educação e arte, eu ainda estava em estado performer/educadora.

Na performance Naif em que eu fico rastejando, engatinhando, rolando e andando por algumas horas, eu me propus a estar em um estado de performance mais radical. A diferença nesse caso, foi que eu saí da posição de facilitar uma experiência e observar como a criança se desenvolveria e entrei na posição de quem esta totalmente vivendo a experiência junto, experimentando os brinquedos, sem perder a conexão com as/os bebês.

Tinha momentos que eu ficava em um canto da sala com um material e os bebês em outro, uma liberdade. O encontro teve uma conexão diferente entre mim e as/os bebês, pois eu estava dentro de um programa performativo, fazendo as partituras corporais que havia me proposto e estabelecendo uma relação a partir disso, invés de ficar distante sentada observando ou conduzindo, a experiência deles. A relação se deu de uma forma muito profunda também com os pais que recebiam algumas sugestões antes de entrar, por exemplo: quanto tempo você consegue ficar sem conduzir o bebê? Assim, a performance teve um sentido para mim, para os bebês e para os pais em diferentes níveis de reflexão e experimentação.

CIRILA: Como é a utilização das materialidades nas suas criações performáticas para bebês?

FERNANDA: A materialidade é algo que sigo aprofundando e refletindo. Durante o mestrado a proposta foi tinta não alérgica guache para crianças que já tinham tido contato com tinta e já não estavam colocando na boca, escolhi não usar tintas comestíveis por conta da cor que imprime no papel ser diferente. Com o guache, era mais visível quando as tintas se misturavam a diferenças das cores. Na performance Naif, eu optei por objetos que não tivessem uma representatividade, mais sem formas ou figuras de pano, com textura. O intuito era trazer objetos que possibilitassem um nível de invenção maior e fosse “gostoso” em termos de textura.

CIRILA: Como foi para você criar e compartilhar a performance “EU – NÃO – SOU” de maneira virtual?

FERNANDA: Bem desafiante! A proposta inicial era fazer uma performance somente com adultas/os após os encontros com as/os bebês. Após tanta reflexão, como construir a performance final do mestrado? E ai veio a pandemia e então estive por um tempo totalmente perdida, me perguntando o que seria performance relacional nesse contexto, o que seria ser artista. Através de meditação e contemplação da natureza encontrei o antigo questionamento: Quem eu sou? E se eu não fosse o que penso que sou?  E assim surgiu o programa performativo de EU-NÃO-SOU. A forma virtual trouxe uma expansão geográfica e cultural de público, tiveram cariocas, paulistas e paulistanas/os, mexicanas e uma brasileira no exterior. Por outro lado, o encontro presencial traria outras presenças, qualidades e talvez seria uma outra performance.

CIRILA: Por fim, uma vez finalizada a escrita, o que vem agora?

FERNANDA: Gostaria de seguir fazendo a performance Naif em centros culturais, a partir do ano que vem, em que acredito estar mais possível o encontro presencial nas artes. Estou me preparando para o doutorado e minha pesquisa segue em performance relacional, porém estou criando uma série de Conversas com a terra, em que me disponho a estar em encontro com a natureza, percebendo o que ela nos diz. As/os bebês trouxeram para mim a dimensão da conversa não verbal de forma bem intensa e a sabedoria que há na “não palavra”. Outros sons, ruídos, movimentos que falam, ensinam. Publiquei uma escrita-performance na Plataforma-Pluriverso com um pouco desse trabalho. O invisível segue nas minhas pesquisas também no que podemos aprender com os saberes femininos ancestrais, ervas, magias, bruxaria ancestral. A pandemia me virou do avesso.

FERNANDA PAIXÃO (*)

Artista e educadora – humor, som, corpo e imagem fundamentam seu trabalho. Mestre em Estudos da Performance pela Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro (UNIRIO), integra o grupo de pesquisa Práticas Performativas Contemporâneas. Trabalhou em diversos programas educativos como Centro Cultural Banco do Brasil, Biblioteca Parque da Rocinha, Museu de Arte Naif – RJ, Instituto de Arte Tear e colaborou com oficinas criativas para a orquestra Nova Sinfonia da Escola de Música e Cidadania. Adora ouvir passarinhos e os sons urbanos da cidade, fez Residência em Arte Sonora no Centro Cultural Oi Futuro, desde então essa linguagem faz parte fundamental de seu trabalho performático. Seu trabalho nas artes do corpo teve como base durante os primeiros 10 anos a palhaçaria e a contação de histórias. Seu principal trabalho como palhaça é o solo Lóve dirigido por Karla Concá que circulou por diversas cidades do Brasil e Europa. Além de ter sido idealizadora e curadora do Festival Carioca de Contação de Histórias por 4 anos. Saiba mais: https://fernandapaixao.com/

CIRILA TARGHETA (**)

Doutoranda pelo Programa de Pós-Graduação em Artes Cênicas pela Universidade de Brasília (PPG-CEN), Cirila defendeu seu Mestrado em 2019 com a pesquisa VOA(R): Uma Poética Cênica para os Primeiros Anos. Possui especialização em Teatro Físico pela escola Moveo – Centro de Teatro Físico y Mimo Corporal Dramático (Barcelona/Espanha). Graduou-se em 2008 como bacharel em Artes Cênicas pela Universidade de Brasília (UnB). Em 2009 fundou o Coletivo Antônia, companhia brasiliense que investiga as linguagens cênicas para bebes e crianças em seus primeiros anos. Paralelo às apresentações, o Coletivo Antônia fomenta espaços de pensamento e busca compartilhar saberes sobre as artes para a primeira infância, participando de debates, mesas redondas e conversas livres sobre o tema. É membro da VINCULAR – Red Latinoamericana de Creación para los Primeiros Años, uma iniciativa latino-americana que reúne companhias de diversos países, bem como da Small Size Network, uma rede internacional composta por artistas de mais de 80 países que desenvolvem projetos artísticos para a primeira infância. Atualmente, Cirila é representante regional do Distrito Federal pelo Centro Brasileiro de Teatro para a Infância e Juventude (CBTIJ), vinculado ao Internacional Association of Theatre for Children and Young People (ASSITEJ).