Matéria publicada no Jornal do Brasil – Caderno B
Por Eduardo Graça e Lucia Cerrone – Rio de Janeiro – 09.09.1998
A Fada Madrinha
Por Eduardo Graça
Há 50 anos, Lúcia Benedetti garantia, com sua peça O Casaco Encantado, solo firme para a consolidação do teatro infantil brasileiro, que será homenageado hoje com festa reunindo a nata do gênero.
Dezesseis de outubro de 1948, Teatro Ginástico. Pela primeira vez no país o público poderia conferir um espetáculo com elenco profissional, formado por adultos, representando para crianças. Até então, a paciência era a virtude mais cultivada pelos pais que tinham de esperar pelas companhias europeias que, sazonalmente, passavam, em geral, ingênuas adaptações de dramas clássicos. Há pouco mais de um mês da comemoração dos 50 anos de O Casaco Encantado, a peça de Lúcia Benedetti que instaurou o teatro para crianças no Brasil e se transformou na coqueluche da época, o Centro Brasileiro de Teatro para a Infância e a Juventude (CBTIJ) e a FUNARTE lançam hoje, no Palácio Gustavo Capanema, a campanha 50 anos de teatro para a infância e a juventude, com uma festa que reunirá hoje, a partir das 20h, a nata do teatro infantil brasileiro.
Afastada das coxias há mais de uma década e dedicando-se à criação de uma original e gigantesca obra baseada nas histórias bíblicas, Lúcia Benedetti 84 anos, não padece de qualquer encantamento maligno. Livre do feitiço do esquecimento, longe das bruxas da depressão, mostra rara lucidez ao analisar meio século de contos de fadas nos palcos do país. “Acho ótimo que, apesar dos pesares, a comemoração seja feita. Mas é preciso lembrar que quem mais lucrou com O casaco encantado foi o teatro adulto. Em 48, havia cinco teatros na cidade, hoje existem dezenas. Atores fantásticos como Sérgio Brito, Nicette Bruno e Eva Tudor surgiram nos infantis. Afinal de contas, quem é que deve comemorar?”, pergunta Lúcia.
A questão certamente é debatida com exaustão pelos fundadores do CBTIJ, organismo ligado à Associação Internacional de Teatro para a Infância e a Juventude que comanda esta campanha nacional de valorização do teatro infantil. A iniciativa- que conta ainda com a encenação de espetáculos infantis gratuitos a partir de outubro no Museu da República – parte da perspectiva de que as artes cênicas podem atuar decisivamente no crescimento cultural das crianças. Seu presidente, Antonio Carlos Bernardes, já transformou o Museu da República em área preferencial para o teatro infantil.
No fim dos anos 40, não era esta, certamente, a preocupação da intelectualidade carioca. A capital federal, é verdade, vivia um momento de inegável efervescência cultural. Getúlio e seu retrato haviam deixado o Catete, e nem mesmo o reacionário governo Dutra havia conseguido abafar a brisa democrática que chegava da Europa redemocratizada com força de um tufão. Na literatura, ainda dominada pelo grupo regionalista, Graciliano Ramos havia publicado livros dedicados ao público infantil, mas as crianças eram deixadas de lado quando se pensava nos palcos.
Quem percebeu rapidamente a lacuna a ser ocupada for Francisco Pepe, irmão do ator Raul Roulien, que encomendou uma peça à escritora Lúcia Benedetti. O Casaco Encantado, que foi mais uma vez encenado no ano passado, por obra e graça da cenógrafa e figurinista Rosa Magalhães, filha de Lúcia, com direção de Ivone Hoffman, resiste ao tempo de forma inquestionável. Ironicamente, a critica de teatro infantil do Jornal do Brasil, Lúcia Cerrone, aponta a ausência de qualquer tentativa de se atingir uma ampla faixa de público como um dos maiores trunfos da peça de Lúcia Benedetti.
“Aquele foi o maior susto da minha vida. Já estava assustada com o grupo de grandes artistas envolvido na encenação. Mas quase morri de medo quando, na estreia, vi a elite intelectual do Rio no teatro. Só pensava que era apenas uma jornalista e escritora que jamais havia pensado em trabalhar com o público infantil”, conta Lúcia. Não havia razão para maiores temores. O casaco encantado, é de fato, um espetáculo para crianças.
Ali Lúcia conta a história de dois alfaiates que, em um reino qualquer, derrubam um balde de tinta no casaco do rei. Sob pena de que suas cabeças sejam cortadas, eles precisam aprontar um casaco do dia para a noite. Terminada a tarefa, chega à casa um mago que, depois de um desentendimento, transforma um dos alfaiates em sapo. A partir de então, todo aquele que vestir o casaco é condenado a pular incessantemente. Até o inevitável, ainda que nada óbvio, final feliz, pipocam no palco bruxas, amuletos, transformações inusitadas e outros signos caros aos contos de fadas.
Quando aponta, de forma certeira, a dívida de gratidão que o teatro brasileiro deve cultivar por deu prodigioso casaco, Lúcia Benedetti não se confunde com as fadas madrinhas de seus textos. A autora sabe que, se O Casaco Encantado possibilitou a consolidação do teatro adulto (e pede-se aí a formação de plateia e de atores, além da expansão do número de palcos) seu par infantil vem se sustentando nas últimas décadas como um dos setores mais importantes do panorama cultural nacional. Afinal por seara circularam Maria Clara Machado e seu Tablado, Ilo Krugli e seu Ventoforte, Sylvia Orthof, o XPTO, o impagável Giramundo e o Mamulengo Sorriso, de Pernambuco.
Com esta improvisada lista, pode-se uma ideia do dilema vivido pela Telerj ao selecionar os nomes a serem homenageados em seus cartões telefônicos, apresentados hoje na festança. Na primeira leva, os eleitos foram, além de Lúcia Benedetti, Silvia Aderne, Ilo Krugli, Maria Clara Machado, Ziraldo e Silvia Orthof. Nos cartões aparecem estampados espetáculos que marcaram a história do gênero no país.
“Vivemos como ciganos”
Ao lado de O Casaco Encantado, ali estão Flicts (1977), de Ziraldo e Aderbal Freire-Filho, Cobra Norato (1978), do grupo mineiro Giramundo, de teatro de bonecos, A Gaiola de Avatsiu (1977), marcando a estreia do já mitológico grupo Hombu, Histórias de Lenços e Ventos (1974), de Ilo Krugli e seu grupo Vento Forte, que revolucionou a linguagem do teatro infantil, Pluft, o Fantasminha (1975), de Maria Clara Machado, a majestosa criadora do Tablado e Gema do Ovo da Ema (1980) de Sylvia Orthof, que transportou para o palco sua poesia simbólica.
Puristas dirão que, durante algum tempo O Casaco Encantado disputou com A Revolta dos Brinquedos, de Pernambuco de Oliveira, o pioneirismo do gênero no país, já que as peças são da mesma época. Mas a crítica concorda que o texto de Benedetti é muito mais do que um marco. Prova disso é o fato de sua autora Ter sido a responsável pelo livro Aspectos do teatro infantil, verdadeira bíblia dedicada aos profissionais da área. Grande contadora de histórias, Lucia Benedetti não se rende, no entanto, aos que a consideram parte da memória viva do teatro voltado para crianças. Um de seus hábitos mais arraigados é o de dar palpites na execução dos enredos que Rosa elabora para as escolas de samba. “Ela adora dar seu pitaco e, em geral, eu aceito. Em A história do boi, da Estácio, em 87, o último carro alegórico saiu todo da cabeça dela”, conta. Sem saber como encerrar o desfile, Rosa decidiu seguir o conselho de sua mãe: criar uma alegoria que lembrasse o fato de que o boi, depois de cozinhado, vira sempre vaca. As arquibancadas da Sapucaí tremeram quando gigantescas panelas passaram pela avenida cozinhando dezenas de travestis, com seus chifres e telas descomunais.
O talento, aliás, continua pulsando nas pilhas de contos para crianças, elaborados a partir de histórias bíblicas, que se amontoam no apartamento de Copacabana. “Mas não tenho interesse em publicá-los. Não acho que haja mais clima para este tipo de literatura no país”, afirma. Oportunidade rara tiveram os leitores da revista Globo Rural, que no ano passado puderam conferir o último texto publicado por Lúcia, um conto típico da roça desses com cheiro de fubá e gosto de paçoca, que girava em torno do casamento de sua linda senhorinha, devota de Santo Antônio. Coisas de Lúcia. “Fico contente pelos que ainda estão batalhando pelo teatro infantil. Mas não é fácil, pois não temos pousada. Sempre vivemos como ciganos e, com exceção de Maria Clara, que construiu sua casa, ainda temos que pedir abrigo para apresentar nosso trabalho”, diz…
Uma década depois da primeira encenação, sua própria sua própria filha se emocionaria com o espetáculo. “Mas a verdade é que o que mais me recordo daquela montagem era o Jardel Filho no papel de príncipe. Fiquei completamente apaixonada por ele”, conta Rosa. Mas como cultura e criança não rimavam mesmo nos anos de populismo, Lúcia precisou contar com a ajuda do anjo da guarda Paschoal Carlos magno para finalmente levar O casaco encantado ao palco do Ginástico. A esta altura, Francisco Pepe já havia desistido do projeto. Azar o dele. Com um elenco formado por Henriette Morineau, Dari Reis e Jaci Campos, a peça foi qualificada por crítica e público da época como um terremoto mirim. “Na verdade eu só queria dar às crianças a chance de assistirem a grandes artistas no palco”, revela Lúcia. Esta paradoxal fada madrinha que, com seu terremoto, garantiu solo firme para a consolidação do teatro brasileiro.
Entre Plufts, lenços e ventos sobre os palcos
Por Lucia Cerrone
O teatro infantil, no modelo como é hoje encenado, completa este ano meio século de existência, sem muito alarde ou comemoração à altura de sua importância. Tudo começou em 1948, quando a autora Lúcia Benedetti recebeu do empresário Francisco Pepe a encomenda de escrever um texto nos moldes de uma montagem que chegava ao Rio vinda da Áustria. A peça se chamava Juca e Chico. Em 15 dias, a autora estava com a peça pronta, mas o empresário não levou avante o projeto. Lúcia, sem muita cerimônia, entregou o texto ao amigo Pascoal Carlos Magno, que em 24 horas conseguiu que a Cia. Dos Artistas Unidos, uma das mais famosas da época, entrasse em processo de ensaio. A peça era O Casaco Encantado, e no papel da bruxa Josefina, nada menos que Henriette Morineau. O sucesso foi tanto que a peça ganhou também sessões noturnas e depois excursionou por todo o país durante um ano. No mesmo ano, desta vez em São Paulo, Pernambuco de Oliveira e Pedro Veiga escreveram A revolta dos brinquedos, mas a peça só foi montada um ano depois. Mesmo assim, os dois foram responsáveis pela primeira companhia de teatro infantil do Brasil, o Teatro da carochinha. Ainda em 48, também em São Paulo, Tatiana Belinky e Júlio Gouveia estrearam no Teatro Municipal a peça Peter Pan, primeiro espetáculo do grupo TESP (Teatro Escola de São Paulo), que ficou em atividade de 48 a 64, atuando também na televisão, logo no seu ano de inauguração,1951. O Belinky/Gouveia foi responsável pela primeira versão de O Sítio do Pica-Pau Amarelo para TV.
O Tablado de Maria Clara Machado lança seu primeiro espetáculo para crianças em 53. O boi e o burro a caminho de Belém, um auto de natal escrito originalmente para teatro de bonecos, é só o começo da brilhante carreira da autora e diretora do teatrinho do Patronato da Gávea. De lá saíram para o mundo: Pluft, o Fantasminha, O Rapto das Cebolinhas, Tribobó City, O Diamante do Grão Mongol, entre tantas outras.
Em 1974, o Vento Forte de Ilo Krugli sopra novos ares no teatro dedicado às crianças. Sua peça, Histórias de Lenços e Ventos é hoje considerada “um divisor de águas” do teatro infantil. Encenada nos jardins do Museu de Arte Moderna (MAM), o espetáculo falava de tudo que era proibido no palco do teatro adulto. A censura cochila, afinal é só uma peça infantil. Em cena, o Rei Metal Mal leva embora Azulzinha. São muitos os desaparecidos e a imprensa não noticia. As cores choram a perda da amiga, mas, como se dizia na época, “ a dor da gente não sai no jornal”.
Ilo, finalizando seu livro de memórias, ainda sem título, a ser lançado no próximo ano, diz que a princípio não tinha a intenção de escrever um espetáculo político: “ Eu tinha sido preso no Chile, tinha visto a morte de perto no golpe militar. Escrevi Lenços e ventos em pouquíssimos dias para levar para o festival de teatro infantil de Curitiba. Mas eu me lembro quando apresentamos a peça no MAM, ela já era muito irônica. A gente começava o espetáculo escrevendo sempre o nome de um desaparecido no jornal. A luta com o Rei Metal era feita com teatro de sombra, e dizíamos: o corpo a corpo com o poder é impossível. No espetáculo para a censura, o censor literalmente dormiu, mas quando ele já ia embora, voltou, ficou muito vermelho e disse: “Essa peça tem alguma coisa”, mas não soube identificar o que o incomodava tanto e deixou passar”.
Nos conturbados anos 70, a tribo estava toda no palco. De lá saltaram para cena o Navegando de Lúcia Coelho, Hombu de Silvia Aderne e Beto Coimbra e o Teatro Quintal de Bia Bedran. Todos muito atuantes até os dias de hoje. Os anos 80 foram marcados pela mistura de estilos, que se projeta até esse fim de século. Tem lugar para todo mundo e até para revival de estilo.
No palco dos anos 90 a reinvenção do teatro jovem de Carlos Wilson chega à nova plateia numa reedição pronta para consumo. Espetáculos como D´Artagnan e os Três Mosqueteiros, O Guarani, Romeo e Isolda, Banana Split e outros eventos inauguram uma nova fase: o teatro com casa lotada e plateia satisfeita.
Na profusão de estilos, se destaca a qualidade, encenadores de companhias estáveis como Cia. Do Teatro Medieval, de Márcia Frederico, a Cia. Teatral de Sura Berditchevsky, a Nosconosco de Célia Bispo e Roberto Dória, o Núcleo da Infância e da Juventude, de Dudu Sandroni e a Cia. De Teatro Artesanal, entre outras, marcam a sua trajetória no palco dedicado às crianças não só pela pesquisa de linguagem, mas pelas produções bem cuidadas que apresentam. Outros diretores mantém a sua grife em um registro autoral indiscutível. Entre eles Karen Acioly, Carlos Augusto Nazareth, Lupe Gigliotti e Cininha de Paula, Cacá Mourthé, Henrique Tavares, Ronaldo Tasso e Marcello Caridad. Tem teatro para todo mundo. E nessa guerra de egos, sai ganhando a plateia.