Crítica Publicada em O Globo – Rio Show
Por Tania Brandão – Rio de Janeiro – 02.02.1988

Barra

O voo é curto mas cheio de fé

Um espetáculo, dois exercícios uma questão: a pesquisa do potencial expressivo do palco. E um problema: a estreia dos novos diretores José Luis Rinaldi (Exercício nº 2) e André Monteiro (Exercício nº 3), sábado, no Senac da Tijuca, não revelou poéticas novas, independentes frente à linha de trabalho traçada por Bia Lessa, supervisora da equipe. O resultado é tímido; revela novos talentos, promissores, mas longe de garantir uma vertente nítida, nova,  de debate do fato teatral. Há um caminho insinuado, mas as hesitações são fortes demais.

Exercício nº 2 é uma adaptação sumária da trama de Justine, de Lawrence Durrell. Quer dizer, o texto literário é pretexto para explorar o tema do tempo. O resultado, muito diretamente influenciado pelo trabalho de Bia Lessa, não chega a apresentar contundência enquanto leitura da trajetória de um grupo de personagens em um lugar determinado exatamente à beira de um precipício. O abismo não acontece. Deliberadamente distante do romance, a montagem está confirmada a um meio termo perigoso: deixa de seguir a literatura com fidelidade, mas não foi ousada a ponto de apagar o fantasma da obra literária anterior (como acontecia com Os Possessos de Bia Lessa). Recorre mesmo a falas descabidas (“Sente-se”) em relação à busca de uma linha não realista. Para o espectador, fica a impressão de incompletude, falta de contundência e clareza; um pouco como se o jovem diretor não tivesse ele próprio clareza de objetivo.

A beleza de diversos momentos cênicos é, mesmo assim, arrebatadora. São muitas as imagens cênicas fortes: o chão de pedras soltas dos afetos, o abismo aéreo à beira do qual acontecem os amores, materializados em pedras pelo chão e na abertura abismal do fundo do palco. A cenografia de Fernando Mello da Costa é, ao fim e ao cabo, o grande trunfo, assim como a busca de um estilo sóbrio de interpretação. A juventude do elenco, no entanto, neutraliza o impacto da montagem. Marcos Oliveira destaca-se, apesar de um excesso de expressões mecanizadas. Henrique Gouveia, dotado de temperatura metafísica muito especial, é prejudicado por sérios problemas vocais. Márcia Victória e Ingrid Somberg não chegam a irradiar sedução feminina à altura da trama, apesar da dedicação comovente. Já o exercício nº 3 propõe um outro caminho, mas afastado da influência de Bia Lessa, mais inclinado para o humor, tributário do realismo mágico latino-americano. Mesmo assim há indefinição, até mais visível: a oscilação entre o código do absurdo e aquele serviçal à tradução da realidade, o realismo Tout Court. Dentro de uma casa pobre, os diversos personagens mostram o desencontro de diferentes grupos etários, o mal entendido de diversas relações afetivas, a solidão cômico-patética do ser humano. Na interpretação, também a falta de unidade incomoda; os atores percorrem desde o despojamento total (a menina Maria Borda) até o automatismo vagamente louco (Gabriela Lins e Silva) e a caricatura mecanizada (Carolina Virguez e Marcos Oliveira). Há um desejo muito diluído de questionar os critérios de tempo e espaço; mas estas referências não estão nunca postas em xeque e tampouco há clareza sobre a sua manipulação. A sensação é a de um catálogo do inusitado, com entradas e saídas por dentro de um armário, personagens que dormem sob a cama ou sob a mesa, moram sobre o armário, aparecem de dentro do sofá. Tadeusz Kantor aparece diretamente citado, com os mortos dentro do armário; diretamente demais.

Não há dúvida de que é a estreia de diretores marcador pela inquietude. Mas há um longo caminho a percorrer. Existe fragilidade na geometria das marcações, nem sempre limpas; existe fragilidade na luz, pródiga em lanças sombras nos rostos dos atores (especialmente no Exercício nº 2). Por vezes a trilha musical (Caíque Botkay) aparece como efeito direto demais, ameaça roubar a cena; mas quem quiser saber dos novos caminhos de pesquisa teatral de ir ver: se não há acontecimento retumbante, há um processo que precisa ser visto, acompanhado.