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Neste ano a organização do Festival optou por discutir dramaturgia, considerando que o tema, ainda que longe de estar esgotado, já conta com estudos que auxiliam na compreensão dos problemas que envolvem a produção do texto dramático para crianças (1). Por isso, organizou a mesa redonda: A Dramaturgia no Teatro Infanto-Juvenil, convidando os diretores Osvaldo Gabrieli e Daniel Herz para trazerem suas experiências e reflexões sobre o tema.

Dentre os problemas mais comuns na produção do espetáculo para crianças, destacam-se a concepção do que seja o trabalho artístico para público formado por crianças – o espetáculo; o trabalho do ator – interpretação; e o texto – dramaturgia.

Espetáculo feito por artistas profissionais ou não, ocupando horários alternativos, distinto do horário noturno, com atores interpretando para plateia formada predominantemente por crianças, é atividade recente no Brasil.

Inicia no final dos anos 40, princípio dos anos 50 com Lúcia Benedetti, Tatiana Belinky, Maria Clara Machado, escrevendo e encenando, por isso são nomes lembrados como precursores desta arte no Brasil (2).

Quando leio os textos dramáticos encenados naquele período percebo a existência de evidentes funções educativas, diria até mesmo didáticas e pedagógicas (3). Sob olhares contemporâneos são textos que objetivam ensinar valores éticos e morais contidos na “moral da história” explicitada claramente para a plateia. As narrativas punem quem desobedece ou mente e premiam os bonzinhos, quem fala a verdade e respeita os mais velhos, por exemplo. Ao ler tais textos e outros deste período parecem permeados por personagens estereotipadas e com certa dose de maniqueísmo (4). Do ponto de vista da estrutura do texto, é uma dramaturgia que obedece aos preceitos de “princípio, meio e fim”, ou da peça “bem feita”.

Mas esta dramaturgia revela, sobretudo, o entendimento que se tinha sobre o que ser criança. Predominantemente se acreditava que ser criança era um estágio de vida como o de “vir a ser adulto”. A criança não era…seria. O tempo para viver a vida todavia não tinha chegado. Viver a infância sim, mas aprendendo, adquirindo saberes que definiriam sua personalidade quando adulta. Não era estágio da vida a ser vivido como período para desfrutar as alegrias e tristezas próprias de cada etapa da vida humana. Mas, período de preparação para outra etapa, esta sim mais importante, a vida adulta.

Em 1973 estreia o espetáculo “História de Lenços e Ventos” escrito e dirigido por Ilo Krugli. Hoje, estudos apontam este trabalho como um marco que redefine a forma de fazer e pensar teatro para crianças no Brasil. “História de Lenços e Ventos” abandona características do “teatro educativo” e valoriza a encenação, o espetáculo, reduzindo distâncias entre teatro infantil e teatro adulto. Propõe a valorização da imaginação, fantasia, onde dramaturgia e interpretação são pautadas pelo jogo. Ludicidade e poesia são elementos indispensáveis neste novo tipo de encenação.

Este trabalho de Ilo desencadeia junto a outras companhias que trabalham para crianças a valorização do jogo, ação e imagens. O texto dramático falado perde o valor enquanto elemento central na encenação. A peça “bem feita”, a narrativa com “princípio meio e fim” começa a dar lugar à dramaturgia construída por fragmentos, à descontinuidade da narrativa.

Isso revela mudanças no entendimento do que seja infância. Da compreensão da criança como adulto em miniatura, ou estágio para o aprendizado de valores para pôr em prática na futura vida adulta, esta nova forma de fazer teatro vê a infância como período da vida a ser vivido como criança. Entende que aprender não é atividade a ser realizada concentradamente num período da vida, é permanente. Acredita na criança como ser humano dotado de inteligência, sensibilidade, capaz de criticar e refletir.

Encontrar as raízes deste pensamento e suas repercussões na produção teatral para crianças nos anos 70 é sem dúvida um tema instigante mas exige tempo para investigação. Limito-me a indicar a contribuição da Escolinha de Arte do Brasil, cujo trabalho se pauta pela filosofia da “educação pela arte” defendendo que todo homem tem direito ao contato com a arte, seja como apreciador ou criador: John Dewey e Herbert Read, pensadores onde se pode encontrar essa matriz teórica, acreditam que o homem com oportunidades para se educar através da arte, pode desenvolver melhor suas potencialidades, caráter, personalidade e humanidade (5). Vejo estreitas relações entre estas ideias e o teatro produzido para crianças, principalmente na década de 70.

Nos anos 80 e 90 se percebe que além das tendências anteriormente mencionadas continuarem vivas na produção de espetáculos para crianças, surge novas concepções e propostas. É neste período que se começa a falar em espetáculos destinados especificamente para adolescentes.

Teatro infantil, teatro adolescente, teatro jovem… já são muitas as denominações. Acredito, como escreve Miriam Bevilacqua que “o exercício de escrever, dirigir e produzir para jovens é rico e útil, se conseguir penetrar no seu universo singular, enxerga-lo e entende-lo pelo olhar do adolescente e traçar conflitos e situações que sejam próprios, mas que falem a uma alma de qualquer idade.”

Neste contexto de fim de século se situam as obras de dois encenadores para o público infanto juvenil: Osvaldo Gabrieli, diretor do XPTO em São Paulo e Daniel Herz, diretor da Companhia de Teatro Atores de Laura no Rio de Janeiro.

Osvaldo, diretor, cenógrafo, dramaturgo, cria espetáculos a partir de elementos como forma, cor, movimento e sobretudo do jogo, do trabalho corporal do ator. Abandonando os princípios aristotélicos, inclusive a estrutura dualista de oposição geradora do conflito dramático, cria espetáculos explorando a fragmentação da trama dramática com cenas onde o espectador não sabe exatamente onde começa e termina. São sensações aleatórias e fragmentadas estabelecendo ao mesmo tempo total comunicação com o público, possibilitando diferentes leituras do espetáculo.

Daniel, visionário da importância do teatro como arte do encontro de pessoas, vê sentido no trabalho coletivo, certo de que o encontro é permeado por conflitos que expressam diferenças desencadeadoras de estímulos na construção coletiva do texto dramático. Ousa misturar temas como sexualidade, sensualidade, morte e dor, rompendo com a crença de que estes não são conteúdos a serem tratados em obras de arte para crianças e adolescentes.

Enfim… o trabalho de ambos integra o que há de inquieto, instigante e inteligente no teatro produzido para crianças e adolescentes nos últimos anos no Brasil.

A presença dos dois diretores na mesa redonda sobre dramaturgia no FENATIB permite aprofundar a discussão sobre a construção do texto dramático. Os principais pontos da discussão na mesa redonda.

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Notas

(1) Refiro-me a estudos de Maria Lucia Pupo, Cláudia de Arruda Campos, Ilíada Silva Alves de Castro e Maria Aparecida de Souza.
(2) Seria incorreto afirmar que antes de 1948, quando estreia a peça “O Casaco Encantado” de Lúcia Benedetti, não existia teatro feito para crianças no Brasil. Desde o princípio do século podem ser encontradas iniciativas importantes envolvendo nomes como Olavo Bilac, Coelho Neto, Carlos Góis, Joracy Camargo, Henrique Pongetti e Vicente Guimarães entre outros. Porém, eram textos e espetáculos que pretendiam envolver crianças e adolescentes na representação, ou seja, era teatro infantil ainda visto como “valioso instrumento educativo” e menos como obra de arte destinada a um público específico.
(3) A expressão “educativo” merece muito cuidado quando relacionada ao teatro uma vez que algum sentido educativo mais amplo ou restrito sempre esteve pressente na atividade teatral. O que interessa discutir é em que medida o “educativo” provoca estreitamentos, sobressaindo o sentido didático em detrimento do que se poderia chamar de artístico.
(4) A leitura dos textos Pluft, O Fantasminha de Maria Clara Machado e Branca de Neve de Lúcia Benedetti, podem ilustrar a questão.
(5) Vale destacar que Ilo Krugli foi professor na Escolinha de Artes do Brasil, convidado por Augusto Rodrigues, seu fundador: No mesmo período, artistas como Noemia Varela, Cecília Conde e Marilda Kobachuk, entre outros artistas professores, também atuaram na Escolinha.

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Bibliografia

ÁRIES, Philippe. História Social da Criança e da Família. Rio de Janeiro: Zahar,1978
BEVILACQUA, Miriam. Introdução ao Tema Dramaturgia para Adolescentes. In.: Programa do Encontro: Um Mergulho na Dramaturgia para Público Adolescente. São Paulo: SESC Consolação, 1999
CAMPOS, Cláudia de Arruda. Artistas Brasileiros – Maria Clara Machado. São Paulo: Edusp, 1998
CASTRO, Ilíada Silva Alves de. Dramaturgia no Teatro para Crianças em São Paulo – uma análise de autores e textos premiados. Dissertação apresentada à ECA/USP. São Paulo, 1987
FREITAS, Marcos Cezar. (org.) História Social da Infância no Brasil. São Paulo: Cortez, 1997
GABRIELI, Osvaldo. Um Théâtre pour lê Troième Millénaire, in. : Puck N.8 – Ecritures Dramaturgies. Charleville – Mézières : Éditions Institut International de la Marionnette. 1995
HERZ, Daniel. Decote seguida de Romeu e Julieta. Rio de Janeiro: Garamond, 1997
PUPO, Maria Lucia de Souza Barros. No Reino da Desigualdade. São Paulo: Perspectiva, 1991
SOUZA, Maria Aparecida de Souza, Reflexões Acerca do Teatro para Crianças em Florianópolis. Monografia apresentada ao Programa de Pós-graduação do CEART/UDESC. Florianópolis, 1996
Texto retirado da 3ª Revista FENATIB, do Festival Nacional de Teatro Infantil de Blumenau, do ano de 1999 e lançada em 2000

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Valmor Beltrame – Nini
Professor de teatro no Departamento de Artes Cênicas do Centro de Artes da Universidade do Estado de Santa Catarina – UDESC, em Florianópolis.

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Obs.
Texto retirado da Revista FENATIB, referente ao 3º Festival Nacional de Teatro Infantil de Blumenau (1999)