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A dramaturgia do movimento, conforme entendida na contemporaneidade, nasce a partir das inovações de teorias teatrais novecentistas que passam a desenvolver métodos de análise do movimento e da ação cênica. Das mais variadas teorias nasce de forma orgânica, e muitas vezes complementar na interação entre tantas e diversas teorias, uma ampla rede conceitual que gradualmente sedimentará metodologias de composição da dramaturgia do corpo, ou como é mais conhecida no âmbito da dança, dramaturgia do movimento.

Neste artigo apresentamos de forma sintética alguns conceitos que regem a nossa prática pedagógica e artística, procurando, através das suas definições aplicativas, incrementar os procedimentos de composição da dramaturgia do movimento no teatro e na dança. Os conceitos de eucinética, coreologia e partitura corporal constituem, na nossa prática artística de “dramaturgos-do-corpo”, as bases instrumentais para a definição dos principais procedimentos de composição da ação cênica. Optamos em apresentar os conceitos de forma serial, sem explorar e aprofundar devidamente a relação intrínseca existente no corpo teórico que os circunscreve, para que tenhamos de forma sintética e instrumental os pressupostos necessários para uma futura investigação teórica.

Existem dois grandes planos de composição da dramaturgia do movimento que, seguindo a terminologia proposta por Rudolf Laban, podem ser definidos como eucinético e coreológico. A eucinética se ocupa da composição das ações dinâmicas segundo princípios psicofísicos dentro da unidade espaço-tempo-energia determinada nos limites do corpo do ator-dançarino. A eucinética é a pesquisa da composição e do sentido do movimento num domínio onde são identificados os aspectos dinâmicos da ação. O nível eucinético é um primeiro plano de composição no qual são determinados os segmento da ação, as diversas qualidades de energia, as variações do ritmo e a orquestração das relações entre as diversas partes do corpo do ator. A coreologia, por outro lado, é o estudo da harmonia das formas sobre a qual baseia-se a criação de seqüência e escalas de movimentos projetados no espaço. Trata do sentido e da composição dos desenhos e das projeções do movimento expressivo no espaço geral, amplificado para fora e além do corpo do ator em forma de arquitetura espacial. A coreologia constitui, em extensão ao plano eucinético, um segundo nível de composição da dramaturgia do movimento, onde ocorre o estudo e a composição da ação construída sobre elementos direcionais e sobre leis da estruturação e da configuração espacial do movimento.

Tais planos, acima definidos, ordenam o trabalho de composição das partituras corporais, sendo estas instrumentos básicos de composição da dramaturgia do movimento.

Pode-se encontrar referências sobre o conceito de partitura em diversas teorias novecentistas que se dispuseram a estudar o corpo e a unidade psicofísica do ator. Stanislavski, o primeiro teórico a utilizar o termo partitura, foca sua pesquisas sobre a ação física como célula constitutiva da linha geral das ações dramatúrgicas. Voltada para a construção da personagem, a linha geral das ações físicas assegura uma atuação capaz de ser fixada e reproduzida numa partitura, garantindo uma harmonia e uma lógica conseqüêncial voltada à verossimilhança. Meyerhold não utiliza exatamente o termo partitura, mas herdando o sentido de precisão ideoplástica de Stanislavski, fala da necessidade de registro do “desenho do movimento” ou da “escritura dos movimentos plásticos”. De um lado, o trabalho de Meyerhold era marcado pela tendência tipicamente futurista de liberação dos objetos cénicos com ênfase nos significados flutuantes e dinâmicos da construção cénica; de outro lado, a biomecânica aderia-se perfeitamente ao formalismo russo com um certo desinteresse pela semântica com ênfase na construção e na estrutura rítmica. Ao longo de anos de pesquisa, Meyerhold torna o trabalho de composição dramatúrgica sempre mais independente do texto, modelando a partitura através de noções propriamente musicais ao invés de se utilizar do pensamento dramatúrgico literário. Assim, sua linguagem de trabalho é composta de terminologias e de palavras como “ritmo”, “dança”, “biomecânica”, que, gradualmente, substituiriam ou incrementariam a noção clássica de interpretação dramática. No mais, a biomecânica de Meyerhold define dois níveis de análise fundamentais para a criação de uma “pauta” de ação: o otkas e o predigra. O otkas é a ação contrária que precede a ação intencional, uma espécie de contra-impulso ou movimento preparatório que recolhe a energia necessária para agir e revela gradualmente a intenção da ação final. O predigra é a “pré-récita”, uma série de ações que o ator realiza livre da emissão verbal do texto, mas que, seguindo a sua lógica de composição, estrutura corporalmente o texto. Atualizando o conceito utilizado por Stanislavski, Grotowski limita a utilização do instrumento da partitura ao trabalho do ator sobre si mesmo, empregando-o sobre as ações físicas, ou seja, sobre tudo o que não é texto. Pare ele o ator deve pensar em termos de movimento através da ação interiorizada e codificada. Sua preocupação a respeito da partitura pode ser notada nas suas reflexões a cerca da artificialidade (composição de artifícios), que segundo ele é a articulação de um papei através de signos criados pelo ator. Trata-se de uma metáfora que Grotowski utiliza ao se referir à notação dos signos visíveis constituintes das ações físicas do ator, que deve passar por um processo de auto-revelação de modo que possa discipliná-lo e transformá-lo em signos.

Na contemporaneidade das técnicas de composição da dramaturgia do movimento, a partitura pode ser entendida como um instrumento do ator que funciona como um esquema objetivo e diretivo criado a partir de referenciais e pontos de apoio para a elaboração da complexa relação existente entre a dramaturgia do corpo e a composição da cena. Segundo Patrice Pavis, tais pontos de apoio sustentam a memória anestésica, o “corpo pensante” do ator (1). Este grau de definição de códigos da dramaturgia do movimento é guiado, segundo a terminologia de Pavis, pela partitura preparatória. A partitura preparatória seria o recolhimento e a fixação de materiais trazidos pelo ator que ao longo dos ensaios são remodelados e re-significados a partir do olhar do diretor, gerando a partitura terminal. A análise dos princípios de composição cénica dos movimentos expressivos deve ser assim guiada por um instrumental que faça o estudo da forma geral da ação, do seu ritmo em linhas gerais (início, ápice, conclusão) e da precisão dos detalhes fixados. Dessa forma, a partitura serve para fixar a forma da ação, ou seja, animá-la de detalhes, impulsos e contra-impulsos, sendo a sua elaboração importante para o ator, pois dela depende a sua precisão, a qualidade de sua presença corporal e, também, a qualidade orgânica do sentido interior da ação. De acordo com Barba, é necessário que exista uma relação entre as partituras das ações físicas e a subpartitura, os pontos de apoio, a mobilização interna do ator. A subpartitura seria o que está subjacente à partitura corporal, o que não pode ser visto concretamente, mas que pode se caracterizar por imagens detalhadas que permeiam o imaginário do ator. Desta forma, para Eugênio Barba, o termo partitura, quando aplicado ao trabalho do ator, indica uma coerência orgânica. E é a organiddade que torna a “ação real”, ou seja, ela garante o fato de a ação existir respeitando princípios pré-expressivos que convertem o corpo do ator em um “corpo-em-vida”. Orientando-se através de conceitos como ação real e pré-expressividade, busca-se a organiddade do movimento através da precisão da forma e da expressão a fim de desenvolver e organizar o bios cénico do ator, para então emergir novas relações e inesperadas possibilidades de significados dramatúrgicos.

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Bibliografia

BARBA, Eugênio. Uazione reate. In «Teatro e Storia», a. VII, n. 2, II Mulino, Bologna. 1992
DE MARINIS, Marco (org.). Drammaturgia delfattore, Porretta Terme , I Quaderni dei Batello, 1996
DE MARINIS, Marco. Rifare ii corpo. Lavoro su se stessi e ricerca sulle azioni fisiche dentro e fuori dei teatro nel Novecento. In «Teatro e Storia», a. XII, v. 19, II Mulino, Bologna, 1998
GROTOWSKI, Jerzy. Risposta a Stanislavskij. In CRUCIANI, F. e FALLETTI, C. (org.). L’attore creativo. Milano, La Casa Usher, 1989
LABAN, Rudolf. Choreutics. London, Macdonald and Evans, 1966
PAVIS, Patrice. A Análise dos Espetáculos. São Paulo: Perspectiva, 2003

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Notas

(1) PAVIS, 2003:91.

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Milton de Andrade
Diretor e coreógrafo, Doutor em Artes Cénicas pela Universidade de Bolonha (Itália), docente do Centro de Artes da UDESC.

Monica Siedler
Atriz-dançarina, graduada em Artes Cénicas, pesquisadora do Grupo Poéticas Teatrais do Centro de Artes da UDESC.

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Obs.
Texto retirado da Revista FENATIB, referente ao 8º e 9º Festival Nacional de Teatro Infantil de Blumenau (2004 e 2005)