Crítica publicada na Última Hora
Por Armindo Blanco – Rio de Janeiro – 16.07.1975
Viagem ao País do Último Círculo
Ano passado, Ilo Krugli e seu grupo Ventoforte brilharam com Histórias de Lenços e Ventos. Era um espetáculo destinado ao público infantil, mas a Associação Carioca de Críticos Teatrais considerou-o uma das cinco melhores realizações teatrais do ano, independentemente da faixa etária.
Agora o Ventoforte volta desta vez na Sala Corpo/Som do Museu de Arte Moderna, com Da Metade do Caminho ao País do Último Círculo, em versão dupla: à tarde para crianças, à noite para adultos. Trata-se de um espetáculo onírico e mágico de grande impacto visual, explorando metaforicamente as fronteiras que separam e/ou em que se confundem aparência e realidade.
Se é que cabe falar de enredo, que pelo menos não existe na dimensão aristotélica da palavra, poderia dizer-se que o espetáculo se desenvolve sobre as aventuras de três jovens que se perdem nos labirintos dos vários países que percorrem: o País do Silêncio, o País Luminoso, o País das Máquinas e dos Relógios, o País do Sim e o País do Não. Na versão adaptada à psicologia dos adultos, um desses jovens conhece um destino trágico, abatido pela Guerra. Uma Guerra ainda convencional, desencadeada por duas terríveis potências: o Dogma e a Morte. Diferente, porém, da que acaba fazendo perder seu emprego de vigia ao Gigante Azul, alerta contra a provável invasão de um exército inimigo. Só que este, ao invés de se fazer presente, enviou ultimato por satélite e não houve como escapar à fatalidade de uma rendição.
Guerra, silêncio, opressão, tecnologia massificante. Magia existe? O que é magia? Talvez a bandeira do País do Último Círculo, um pano branco com um espaço vazio no meio. Nesse espaço, você pode colocar tudo o que o atormenta e conquistar a liberdade em toda a sua plenitude. Mas isto só é dado a quem não fica na Metade do Caminho, área predileta dos medíocres, dos que não sabem sonhar, dos que fogem dos labirintos e não acreditam em magia, preferindo a tranquilidade gregária do Sim ou do Não.
O novo texto de Ilo Krugli, fascinante artista argentino que se radicou entre nós, depois de ter colaborado com suas marionetes pedagógicas na escolinha de mestre Augusto Rodrigues, é aquilo a que poderíamos chamar baseados em Umberto Eco, uma obra aberta. No seu derrame de cores, na riqueza da sua simbologia, na sua peregrinação pelo mundo fantástico que coexiste subjetivamente com a nossa palpável realidade cotidiana, nos seus cantos e danças que me fizeram lembrar o grande folclorista argentino Joaquim Perez Fernandez, na diversidade estética das formas. O País do Último Círculo é um instigante desafio à imaginação do público. O que se propõe a cada espectador é que se liberte de todas as suas amarras, que se exercite nos próprios labirintos, que faça a sua opção entre o Sim e o Não.
Tendo o que oferecer em si mesmo, o texto de Krugli não se realiza sem a nossa participação. A estória que ele ensaia não acaba no final do espetáculo. Prossegue dentro de nós, perene como todos os mistérios que o homem ainda não conseguiu clarificar. É, ao mesmo tempo, um repto e um começo, uma semente jogada entre passado e futuro. Uma frágil ponte de tule entre a criança e o homem, construída com meias verdades, únicas que conhecemos, um humanismo democrático corroído por hesitações e desesperanças, uma angústia impotente contra o espelho da morte e a tirania da falta de tempo.
Ilo Krugli dirigiu, escreveu, fez cenários e figurinos, desenhou bonecos e formas animadas, com a colaboração de Ian Guest (direção musical), Ausonia Bernardes (expressão corporal), Jorginho de Carvalho (iluminação) e Beto Coimbra e Caíque Botkay (música e letra das canções). Não creio que valha a pena destacar nomes do elenco. O Ventoforte é um grupo sem estrelas, mas irradiantemente jovem e animado por um sólido e raro espírito de equipe. Essa é a impressão que transmite, num trabalho cujos méritos invulgares pertencem a todos e que nos compensa das muitas noites desperdiçadas com o atual teatro estabelecido, mediocremente entregue à futilidade e à grossura, vale dizer: entrincheirado como um argentário voraz na Metade do Caminho.