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A análise dos textos encaminhados ao Concurso de Dramaturgia do CBTIJ levantou questões que seriam objeto de prolongada e minuciosa discussão.

O que desde logo despertou a atenção foi a incompreensão do que seriam temas tabus“. Se uma visão equivocada, e felizmente cada vez mais ultrapassada, antes destinava à criança “qualquer coisa” em “tom lúdico”, gerando espetáculos tolos, feitos de “brincadeiras” sem nexo, marcações gratuitas com tombos, encontrões e “sustos”, um dançar ou cantar a qualquer pretexto, o apelo à plateia etc., veio crescendo a consciência de que isso não tem mais sentido ou interesse para a criança que tem hoje contato direto com os objetos da cultura e as mais variadas solicitações e ofertas vindas da literatura, da música, do cinema, da TV – na qual, como comprovam as pesquisas feitas, ela vê tudo ou quase tudo que aí se exibe. E se acentuando a preocupação com o fato de que em teatro nada era destinado especificamente ao jovem, hoje tão visado (pelo menos em tese…) nas políticas públicas e seguidamente focado no marketing voltado para o consumo e a “diversão”.

Acreditando que “temas-tabus” seriam quaisquer temas antes não contemplados no teatro a destinado às crianças e aos jovens, surgiram textos sobre temas os mais diversos (ex: com foco em ou crítica à Escola e à Educação, ou à Família, ou à TV, à Cultura, ou ao próprio Teatro); ou textos sem qualquer ligação com a vivência infantil ou jovem (ex: o adultério, a velhice); ou textos que apenas faziam a releitura de contos e folguedos da cultura popular. Textos que davam a impressão de serem apenas um “desengavetar” de obras já escritas que “se arriscava” a mandar para um concurso na esperança de, quem sabe…

Como decorrente desse equívoco, um outro: o de identificar tabu com censura e daí surgirem textos tolos, de pura pornografia, em palavreado chulo e carregado de palavrões, com personagens vaidosamente alardeando ou supondo estarem “quebrando tabus”…

Em outro extremo, a tentativa de em uma mesma e única peça tratar de inúmeros temas relacionados a um tabu sem desenvolver dramaturgicamente nenhum, ou seja, alinhavando relatos, notícias, denúncias, mini cenas, discursos sobre, situações não desdobradas em ação, conflitos só apontados ou pontuados etc. Por exemplo, em termos de sexualidade, uma mesma peça falar de pedofilia, estupro, assédio sexual, homossexualidade, homofobia, gravidez na adolescência, Aids e DST etc. O curioso é ter isso sido recorrente em vários textos, dando a impressão de que a repressão anterior a tais temas era, realmente, sufocante… E lamentável que a dramaturgia falha tenha prejudicado autores que, ao que se podia perceber, demonstravam sensibilidade, ou tinham conhecimento de causa, e ideias ou “comentários” válidos e pertinentes sobre os temas escolhidos.

Impressionou igualmente o júri o número de autores que, mantendo a atitude hierarquizante, vertical e autoritária que hoje se busca superar, assumem ainda a postura de alguém supostamente “superior”, em termos de idade, cargo, ou de um pretenso “saber”, que se sente obrigado a “explicar”, “ensinar”, a dar “lições” artificialmente inseridas ou não decorrentes da própria ação dramática, a impor regras e normas em “mensagens” cheias de “você deve” ou “tem que”, ou de obrigatória “moral da história” ao final, ou de falas “didatizantes” inseridas, até forçadamente, nos diálogos, enfim, de toda uma “doutrinação” muitas vezes expressa em desgastados “chavões”. Postura essa que, em última instância, caracteriza a própria criação do tabu, representando, como tal, o avesso da mesma atitude.

O que, por vezes, vem ligado à inadequação ou desconhecimento da linguagem dramatúrgica. Houve autores que esqueceram que teatro é lugar de ver, que a re-present-ação teatral não apenas descreve, narra algo ou disserta sobre um tema, mas mostra, presentifica, torna presente e presença o que quer dizer. Foi o caso de inteligentes e bem redigidos “ensaios”, discursos em tom de aulas ou de “palestras”, diálogos em tom de debates de ideias e argumentação, de “depoimentos” verbalizados, ou de narrativas que exigiriam toda uma “adaptação” para serem levadas à cena – o que já foge à alçada de um concurso de dramaturgia.

Foi também o caso de autores visivelmente iniciantes, muitos dos quais aparentemente falando de experiências ou vivências pessoais, de seus sonhos, dúvidas, incertezas e inseguranças, geralmente em diálogos breves, que pontuam fatos estanques referentes a sexo, drogas, relações afetivas, busca de identidade, emprego ou desemprego, etc. sem conseguir articulá-los em um todo coerente com um mínimo fio condutor, com personagens sem consistência ou definição na ação, que entram e saem sem que nem porque, Em alguns textos, a tentativa de “teatralizar” consistindo na inserção, entre essas cenas ou partes soltas, de uma figura cômica, ou colorida, ou ruidosa, ou de músicas ou coreografia igualmente desconectadas do possível desenvolvimento de um tema ou ação.

Também digna de nota se mostrou a influência da linguagem de TV e da Internet. Linguagem e grafia ora reproduzem o universo “internauta”, sua rapidez, desconexão e superficialidade, ora trazem não só na temática (em geral ligada a relações interpessoais, namoro, sexo e drogas) como na impostação, na linha de diálogos, na tipificação de personagens, nas músicas e suas letras, características dos inúmeros seriados americanos de TV voltados para a faixa adolescente e jovem. Pena que, com isso, mantenham igualmente sua superficialidade, “borboleteando” de um tema a outro, sem nada desenvolver ou aprofundar.

Por fim, uma ambivalente característica de nosso momento: a fusão de linguagens. O concurso comprovou, mais uma vez, que estamos em uma fase de experimentação e de hibridização, em que a fusão de linguagens, quando bem articulada, pode contribuir para uma escrita cênica dinâmica e rica, ou um espetáculo multimídia atraente e vivo. Mas pode, igualmente, gerar uma con-fusão que torna a ação dramática um mero fiapo condutor, incoerente, cheio de cortes, nós, inserções e desvios dispensáveis e indesejáveis.

Em vista do exposto, o júri, depois de demorados debates, discutiu caso a caso, sobretudo os que foram selecionados como “finalistas” em razão da seriedade na abordagem do(s) tema(s), da validade do material trazido, da sensibilidade, imaginação e potencial de criação demonstrados pelos autores. Mas, por fim, optou por não conceder o prêmio, considerando que:

– a premiação, e consequente publicação e distribuição em termos de Brasil e de América Latina, tornaria o ganhador representativo da própria dramaturgia brasileira atual voltada para a criança e o jovem, ou comprometedor para a mesma, já que há consensual reconhecimento de que não têm tal representatividade;

– e que, por isso, distinguir e premiar um texto com qualificação insuficiente seria injusto para com tantos outros autores mais qualificados que ainda buscam fazer chegar à cena obras inéditas.

Mas decidiu acatar uma sugestão de alinhavar as principais observações e comentários levantados, esperando, assim, oferecê-los aos que neles talvez se reconheçam ou dar margem à reflexão dos muitos autores que hoje se dedicam ao teatro para a Infância e a Juventude.

Comissão de Seleção

Ine Baumann
Marcia Frederico
Maria Helena Khüner