Crítica publicada no Jornal do Brasil – Caderno B
Por Lucia Cerrone – Rio de Janeiro – 24.08.1991
Uma peça que fica no meio do caminho
A literatura clássica infantil, invariavelmente, tem um toque de terror que parece agradar muito a seu público. São madrastas que exigem que se traga numa caixinha o coração de sua enteada, que é linda e branca como a neve, ou, numa outra proeza, manda enterrar viva a filha do primeiro casamento de seu atual marido, por que esta não tomou conta de sua figueira. Ali mesmo desabrocha uma flora capilar que a cada ameaça de poda, canta uma música de cortar o coração.
Se a madrasta faz isso, o que dizer da irresponsabilidade de uma mãe que manda a própria filha levar doces à vovó, cinicamente avisando: “Cuidado, tem um lobo no caminho!”
Com todas essas histórias mirabolantes sendo contadas e recontadas ao longo da infância, as crianças, talvez para se vingarem, inventaram uma brincadeira muito interessante, que consiste em juntar uma pergunta bem simples numa palavra só, dando a elas os mais divertidos sotaques – em russo: seaquinevasseesquiavasse? Ou em inglês: oquesentem? A pergunta só é entendida quando o prodígio separa palavra por palavra, ou quando se escuta várias vezes.
A Bela e a Fera, em cartaz no SESC, também precisa ser decifrada. A história entra em cena supondo que o espectador já conheça o enredo e, talvez por isso mesmo, demore um pouco a montar o quebra – cabeça. O texto de Luca Rodrigues dispensa os ganchos convencionais da trama original, substituindo-as por metáforas psicanalíticas.
Bela, o pai e duas irmãs perdem toda sua fortuna e vão morar no campo. Por lá aparece o jovem Azor, que, por “casa, comida e carinha”, fica trabalhando para a família. Bela e Azor se apaixonam. As irmãs, não sabendo como explicar a sociedade e envolvimento de Bela com o serviçal, preparam um flagrante forjado (no caso um colar de pérolas) e despedem o rapaz. Azor pede a Bela que fuja com ele, ao que ela responde: “Não posso deixar meu pai”. Azor vira literalmente uma fera, e é aí que tudo se complica.
O texto de Luca Rodrigues, em perfeita sintonia com a direção de Gilberto Gawronski, mostra um espetáculo plasticamente belíssimo. O palco está dividido em dois planos, proporcionando a ação simultânea, comprometida apenas pelo volume de som da trilha incidental, que apesar de muito bem cuidada abafa os diálogos, tornando impossível seu entendimento.
Jaqueline Sperandio faz uma Bela misteriosa e sensual, deixando bem claro que a Fera de Luca Rodrigues não lhe agrada só com flores e presentes. Flávio Bruno, como nobre decadente pai, compõe sua personagem com peso exagerado e longas pausas dramáticas.
O humor fica por conta das insuportáveis irmãzinhas: Adelaide (Ana Acher) e Felícia (Fabiana de Melo e Souza). Esta última destacando do texto à medida exata do tragicômico que lhe cai muito bem.
A Bela e a Fera não é só um espetáculo para o público infantil, e é por isso que fica no meio do caminho. Toda a sua ousadia parece que foi cortada pela metade para que se adequasse ao horário vespertino. Mesmo assim, ele se revela em sua ambientação cênica, na proposta visual e na sua música minimalista que pontua a sua encenação. É só uma questão de acertar os ponteiros.
Cotação: 1 estrela
(regular)