Matéria publicada em O Globo
Por Sheila Kaplan – Rio de Janeiro – 18.12.1982
A atualidade de Maria Clara com O Rapto das Cebolinhas, 30 anos depois
Volta à cena, no Tablado, uma peça infantil escrita em 1953, mas que encanta ainda as crianças, com personagens inesquecíveis como o Camaleão Alface.
Escrito em 1953 e encenado pela primeira vez no ano seguinte, no Tablado, O Rapto das Cebolinhas de Maria Clara Machado, está sendo novamente apresentado sob a direção da autora, depois de um intervalo de 24 anos, época da última montagem da peça neste teatro, de que ela é a diretora. Neste espaço de quase um quarto de século, O Rapto foi levado em vários outros locais, principalmente escolas – “até já perdi a conta do número de apresentações”, diz Maria Clara – transformando-se numa espécie de piéce de resistence do repertório dos grupos amadores de teatro infantil.
A história do roubo das cebolinhas, cujo chá dá vida longa e alegria a quem o toma, já foi vista também em diversos países da América Latina e da Europa. Orgulhosa, Maria Clara mostra o pôster da montagem na União Soviética – lá, a peça esteve em cartaz por cinco anos consecutivos – e, divertida, aponta caracteres do alfabeto russo, dizendo que compõem seu nome. Ao lado, o cartaz alemão destaca também o nome da autora, desta vez de forma mais compreensível para nós.
Segunda peça escrita por Maria Clara – a primeira foi O Boi e O Burro No Caminho de Belém, uma farsa-mistério de Natal, de acordo com sua definição – O Rapto das Cebolinhas foi criada em condições muito especiais. Conta Maria Clara:
– Partiu de uma sugestão da cronista Eneida, que me incentivou a participar do concurso anual de peças infantis da Prefeitura do então Distrito Federal. Para ganhar dinheiro, escrevi o texto de um jato, em 20 dias. Meu pai (o escritor Aníbal Machado) até se zangou, mas acabei ganhando os vinte contos do primeiro prêmio.
Um período ainda mais curto do que o empregado para escrever a peça foi o de sua remontagem agora, para a atual temporada. Maria Clara não esconde que O Rapto das Cebolinhas surgiu como uma solução de última hora para aliviar o rombo financeiro sofrido pelo Tablado com a encenação de Leonce e Lena, do alemão Buchner. Como ela diz, a peça foi lembrada por ser um espetáculo de sucesso garantido e por não exigir uma produção complicada.
– Há muitos anos – conta Maria Clara – que não pensava no Rapto, mas agora, quando o reli, achei a peça bem escrita e bem urdida dramaticamente.
Foi aproveitando o mesmo cenário de Leonce e Lena cuja floresta serve igualmente de ambientação à horta do coronel, em que as cebolinhas são roubadas.
Os figurinos – “muito simples”, diz Maria Clara – ficaram sob a responsabilidade de Kalma Murtinho, que já os havia assinado na montagem de 1954, quando iniciava sua carreira. E os atores do Tablado – “mais afiados”, graças às muitas aulas de improvisação e expressão corporal, do que os participantes da primeira produção, na opinião da diretora. (Destacavam-se, no elenco da peça, na primeira montagem, os atores Cláudio Corrêa e Castro, Roberto de Cleto, Napoleão Moniz Freire e Carlos Murtinho, que faziam sua estreia em teatro).
No mais, um total de 16 ensaios deu conta do espetáculo que agora se pode ver no Tablado.
– Mas foram 16 ensaios sofridos – explica Maria Clara – até ficar tudo perfeito.
Ela não se arrepende do risco que assumiu, com a opção de montar Leonce e Lena. Atribuindo o pouco sucesso da peça, em parte, à ideia equivocada da maioria das pessoas de que o Tablado se ocupa somente de teatro infantil, ela diz que a experiência valeu a pena.
Mães que assistiram à peça levam filhos
– O Tablado é um teatro-escola e, por isso, embora difícil, foi válida a montagem do texto de Buchner. Mas, como não somos subvencionados pelo Governo, é preciso que as peças paguem seus próprios custos, para podermos sobreviver.
Há pouco mais de um mês em cartaz, O Rapto das Cebolinhas – que prossegue carreira até fim de janeiro, retornando a partir de março – tem conseguido mais do que pagar seus próprios custos, liquidando já quase totalmente os prejuízos deixados por Leonce e Lena. Além da compensação financeira, existe também, como conta Maria Clara, a de ver na plateia pais e mães que assistiram à peça quando jovens e hoje levam seus filhos para também se divertirem com as trapalhadas do Camaleão Alface. A cada vez que as cortinas se fecham, ao fim do espetáculo, a diretora é procurada por muitos destes pais – e, uma vez, também por uma avó, acompanhando o filho e uma neta – que lhe contam ter experimentado a mesma emoção sentida da primeira vez em que viram a peça. Diz Maria Clara:
– Isso tem me dado um prazer enorme. Ver que a peça continua atual e que o Tablado já desenvolveu uma tradição que passa por três gerações.
Em que medida, porém, O Rapto continua atual, para uma geração formada pela televisão, pelas histórias em quadrinhos, pela violência da vida e dos filmes modernos? Não pareceria hoje ingênua, a essas crianças, a trama do assalto às cebolinhas quando tantos outros assaltos ocorrem diariamente? Baseada na reação do público, que vem acompanhando a cada fim de semana, a diretora responde:
– A peça conta a história de um bandido que se disfarça em detetive – quer coisa mais atual do que isso? A cebola é apenas um símbolo, poderia tratar-se de um tesouro ou de qualquer outra coisa. E há também todo o lado do humor, que não se perdeu com o tempo. O público de hoje é bem mais barulhento do que o daquela época, mas eu não acho educativo deixar o berro solto. Pergunto sempre às crianças se elas ouvem com a boca ou com o ouvido. Aí, elas ficam quietas e adoram a história.
Por causa do aumento da violência, porém, Maria Clara resolveu fazer uma modificação – a única – no texto original. “Para não incitar as crianças”, retirou a cena em que, descoberto o ladrão, todos se atiram sobre ele. “No contexto de hoje”, diz ela, “ficava parecendo um linchamento”. A outra transformação fica por conta da plateia. Ao contrário do que ocorria com Napoleão Moniz Freire, o intérprete do Camaleão Alface na primeira encenação da peça, que era apedrejado pelas crianças na saída do teatro, o seu substituto, Jorge Guinhos, pode hoje deixar o teatro tranquilamente. Embora igualmente entretida com o espetáculo, a nova geração parece estar mais familiarizada com as falcatruas do esperto antagonista.