Esta entrevista fez parte do 7º Seminário Permanente de Teatro para Infância e Juventude, realizada no Teatro Ziembinski, 22 de julho de 1997.
Roberto Dória
Com o vídeo que acabamos de passar, quisemos mostrar um pouco como a gente faz, em vez de falar do que a gente faz. Começamos em 1989, a partir de um curso. Na ocasião, montamos Sonho de Uma Noite de Verão como espetáculo de fim de curso e a vontade das pessoas de desenvolverem um trabalho juntas foi tão grande que o grupo se formou.
Dudu Sandroni
O curso inicial foi ministrado por você, Roberto?
Roberto Dória
Por mim e pela Célia Bispo. Mas o importante é frisar que o processo continua. O trabalho original se desenvolve permanentemente e é tão importante quanto o espetáculo que resulta desse trabalho. Isso significa que não me interessa produzir um espetáculo porque o texto é interessante ou porque as condições são favoráveis, mas porque a gente tem esse espetáculo na gente, organicamente, de alguma forma. Cada pedaço, cada parte desse espetáculo é fundamental para cada um dos atores que compõem esse espetáculo. Se a gente acrescenta ou tira alguma coisa, as pessoas se sentem mutiladas. O mesmo acontece quando a gente bota alguma coisa além daquilo que naturalmente surge. E as coisas vão acontecendo assim.
Dudu
Então o primeiro espetáculo foi o Sonho de uma Noite de Verão.
Célia Bispo
No fim das aulas, construímos um espetáculo para papai, mamãe, aquela coisa toda. Já existia a vontade de entrar profissionalmente no mundo artístico. Nós fazíamos aquele circuito Grajaú Tênis Clube, sabe? Aquela coisa que todo mundo faz quando começa… Depois fomos para o Museu da República, numa época em que não se fazia nada lá. Montamos o Sonho na gruta do Museu e, quando chovia, tínhamos que tirar água da gruta com lata. Depois da chuva, entrávamos naquela lama e limpávamos tudo para poder fazer o espetáculo. Era uma loucura. Montamos o Sonho também no Teatro de Lona e na UFF (Universidade Federal Fluminense). Foi lá no Teatro da UFF que a Lúcia Cerrone nos viu pela primeira vez. Nós nem entendíamos direito essa coisa de crítico, de jornal. Na época, a Lúcia nos disse que não entendia como é que conseguíamos fazer um bom espetáculo se tínhamos um monte de atores ruins no elenco. O Bruno Bessa tinha 10 anos e era um gordinho que falava só: “Oh! Hérmia.” Era muito engraçado… Continuamos o curso. Aí veio Inspetor Geral, de Gogol, também no Grajaú Tênis Clube. Com o Inspetor, aconteceu uma coisa interessante. No último espetáculo, eu passei mal, desmaiei, e o Roberto, que também estava em cena, me levou para o hospital. O pior é que nós deixamos o grupo de pivetinhos sozinho – era tudo pequenininho – dizendo: “Vocês façam o espetáculo, atenção na bilheteria, tem que fazer o espetáculo.” E eles entraram em cena sem dois personagens, se viraram. O pai do Bruno, que ia tirar o menino do curso “porque teatro atrapalha a vida”, ficou entusiasmado com o imprevisto e corria pela coxia, gritando: “Façam, entrem em cena…” Virou sócio de carteirinha e o Bruno está com a gente até hoje. Mas, até a época do Inspetor, era um processo bem de curso, mesmo. Quem faz teatro, sabe como é: exercício de arte cênica, improvisação. Com o Arlequim, começamos a estudar a Commedia dell’Arte e a trabalhar sem texto. O Roberto pode falar sobre isso.
Roberto
Fomos atrás de uma série de roteiros de Commedia dell’Arte, e começamos a distribuir os textos para o grupo, aleatoriamente. Cada um escolhia o roteiro que tinha achado mais interessante. Nós explicávamos: “olha, isso aí não tem fala, vocês vão ter que improvisar, mas não pode falar. Pode ter som, música, pode ter o que quiser, mas não pode ter fala.”
Dudu
São aqueles exercícios que a gente viu no vídeo?
Roberto
Sim, uma parte do vídeo era sobre isso. A gente cria alguma coisa, mas também quer que o grupo participe do processo para misturar e ver se funciona. E assim vai se construindo o espetáculo. Então, num dado momento, um dos atores é o Arlequim. No outro, ele é o Pantaleão. Há esse revezamento e aquele que se sair melhor, naturalmente, acaba ficando com o personagem. Mas sem essa preocupação de testar quem é o melhor. É todo um processo, com unidade – não adianta ter um puta Pantaleão e os outros personagens não funcionarem bem em relação a esse Pantaleão. Depois, filmamos para ver o que funciona e o que não funciona naquele roteiro improvisado e tentamos aperfeiçoar. A criação vai acontecendo, com a participação de todos.
Célia
A partir do Arlequim, com a Commedia dell´Arte, fomos em busca do Eugênio Barba, em busca da antropologia teatral, da criação, da forma e não só do verbo. A coisa da sonorização também surgiu nessa época. Começamos a comprar instrumentos de percussão. Todos os nossos espetáculos têm sonorização – O Barbeiro de Sevilha tem ópera. No vídeo que assistimos, quero chamar a atenção para a cena muda do Arlequim. Quando gravamos, os atores não sabiam ainda que aquilo era o Arlequim, mas estava tão bom que aquela foi exatamente a marcação da cena que usamos no espetáculo. Quer dizer, quando a gente marca, não é propriamente uma marca, pois o grupo já trouxe uma solução para o processo. Nós aproveitamos o que o grupo traz e apenas limpamos a cena. Na realidade, os atores são codiretores de todos os espetáculos. O uso da máscara nasceu com o Arlequim – tinha que ter máscara. Nunca tínhamos usado máscaras, mas, como todo bom ator, a gente adora uma máscara, não é? (risos.) Então, resolvemos produzir as máscaras, coisa que nunca tínhamos feito. Foi um sufoco engessar a cara de todo mundo… e aí saíram as máscaras do Arlequim. Nós gostamos tanto que resolvemos levar a coisa a sério. Começamos a estudar e participamos de uma oficina de máscaras por quase três meses. Durante o processo de preparação dos espetáculos, usamos também a máscara neutra, para tirar a expressão do rosto e trabalhar só o gesto.
Dudu
Além da questão do fascínio pela Commedia dell’Arte, parece que existe um trabalho minucioso de pesquisa para adaptar clássicos da dramaturgia para a linguagem do teatro infantil. Em que momento isso pinta? Desde o Sonho ou só a partir do Arlequim?
Roberto
Começou com o Sonho e veio até O Barbeiro de Sevilha. Inicialmente, não tínhamos como fazer um espetáculo para adulto – os meninos eram muito novos – e nem era vontade nossa fazer. Então optamos pelo teatro infantil. Foi uma escolha. Sempre gostamos do Sonho e tínhamos vontade de montá-lo mesmo antes do curso que originou a companhia. Resolvemos fazer a adaptação do texto para o público infantil. A priori, seria um espetáculo apenas para o encerramento do curso. Só que ele funcionou e a gente foi tentando abrir espaço em outros teatros.
Da plateia
Fala um pouquinho sobre a adaptação dos clássicos.
Célia
Sou professora de arte cênica e tenho desde alunos bem pequenos – seis, sete anos – até marmanjos de 18 anos. Há uns doze anos atrás, eu e Roberto íamos muito a teatro e sentíamos falta de espetáculos voltados para crianças de nove, dez anos. Aí nasceu a ideia. Gostávamos muito dos clássicos e resolvemos fazer adaptações para essa faixa de público. Também houve a criação, minha e do Roberto, de um projeto universitário de extensão sobre adaptação de textos da dramaturgia clássica para a linguagem de teatro infantil.
Roberto
E aí foi assim com Sonho, Inspetor, Arlequim e Barbeiro. Uma coisa curiosa em relação a esses espetáculos é que existia – não sei se ainda existe – um festival carioca de novos talentos em que não era permitido inscrever espetáculos infantis. Resolvemos participar com Arlequim, pegamos o formulário e apostamos que o festival não iria julgar o espetáculo, mas sim o texto. O texto, de fato, era adulto e apresentamos. Ganhamos prêmio, pauta em teatro, foi ótimo. O curioso é que as apresentações do infantil eram aos sábados e domingos, às cinco horas da tarde. Às terças e quartas-feiras, nós o apresentávamos para o público adulto. Para não parecer que era o mesmo espetáculo, usávamos uma capa preta no adulto – que, no início, não havia no infantil. O ingresso, claro, era mais caro no adulto. Dava mais dinheiro fazer teatro infantil para adulto do que para criança.
Célia
Adulto aplaudia…
Roberto
E achava ótimo.
Célia
Era engraçado, as pessoas perguntavam: “qual é a diferença?” A gente ficava meio assim…
Roberto
E dizia: “vai assistir… ”
Célia
Na verdade, não tinha diferença. A história das capas é legal. Um dia, cortamos as cortinas todas, fizemos umas capas pretas, pegamos um chapéu de feltro preto, botamos na cabeça no fim do espetáculo e, pronto: estava lá a diferença. Parecíamos uns urubus com aquelas capas pretas. Mas, na verdade, as capas eram tão interessantes, que acabamos incorporando a novidade também ao espetáculo infantil – lá se foi, de novo, a diferença. E ganhamos o Mambembe em 1996.
Dudu
Como é a organização interna do elenco? O elenco assume outras tarefas além do trabalho de ator?
Roberto
Em tese, quem centraliza o trabalho de produção sou eu e a Célia. Só que todo mundo faz tudo: monta cenário, conserta cenário, pinta cenário, desmonta, carrega caminhão, descarrega caminhão, sobe escada, desce escada. Existem setores mais ou me nos definidos, mas isso varia de um espetáculo para outro. No Barbeiro, quatro atores também trabalharam como aderecistas e receberam por isso. Outro ator atuava também como músico.
Célia
Realmente, somos autoritários. Dois leoninos juntos é carga demais pra muita gente. Mas todo mundo faz tudo e, dependendo de cada espetáculo, as coisas vão se somando. Tem sempre aqueles que carregam mais, os que cuidam dos figurinos e há também os que de vez em quando resolvem não fazer nada e ganham esporro.
Roberto
A gente insiste muito para que os nossos atores não sejam limitados, para que eles desenvolvam um horizonte maior. Uma das coisas que a gente propôs é que eles aprendessem a tocar ou arranhar algum instrumento. “Ah, mas eu não tenho dinheiro”, reclamava um. Perguntávamos: “o que você quer tocar?” “Saxofone”, respondia, “Então, toma o saxofone.” Piano não dá, né? Fica complicado. Não sou milionário. Por acaso, o cara queria tocar um instrumento que estava disponível naquele momento. Não sei se é uma boa tática, porque, muitas vezes, por causa dessa facilidade, a coisa corre um pouco frouxa. Mas é desse jeito que a gente tenta fazer. Na medida do possível, procuramos suprir as necessidades do grupo.
Da Plateia
Vocês se reúnem todos os dias?
Célia
Todo dia, infelizmente, não dá. O que a gente gostaria – e precisaria – era de trabalhar oito horas por dia, como um operário. Mas aí fica complicado, porque não tem quem banque isso. Todo mundo aqui trabalha e estuda. Quer dizer, todo mundo tem a sua vida. Nós nos encontramos duas vezes por semana, cinco horas por dia. Portanto, basicamente são dez horas por semana, isso num ritmo normal de trabalho de oficina. Não trabalhamos só para montar o espetáculo, trabalhamos muita teoria, lemos muito, estudamos. Recentemente, os atores fizeram oficina de clown – foi assim que nasceram aqueles bonecos do Barbeiro. A última atividade do grupo foi uma oficina de perna-de-pau – todos eles estão andando em pernas-de-pau, com exceção da diretora aqui, que morre de medo. Construímos as pernas e, provavelmente, em algum próximo espetáculo, elas vão estar em cena.
Da Plateia
Como vocês avaliam o próprio trabalho e toda essa trajetória?
Roberto
Na semana passada, ficamos o tempo todo discutindo, eu e a Célia, o novo espetáculo que estamos construindo. Em casa, foi uma loucura – pensando, brigando, porque isso, porque não aquilo -, para poder construir alguma coisa, um alicerce. Dificilmente, colocaríamos alguma coisa no espetáculo, pelo menos em sã consciência, que não sentíssemos como legítima. Temos sempre essa preocupação. Os textos que adaptamos não foram escritos por brasileiros ou em português e um dos problemas é tentar diminuir essa distância cultural. No caso do Barbeiro, em que o texto tem uma série de inserções relativas a manifestações folclóricas de cultura bem diferente da nossa, a dificuldade era descobrir a maneira de neutralizar essa diferença, aproximar, sem perder as características do texto original. Quando elaboramos o espetáculo, vamos além do texto escrito. Tentamos descobrir qual a ideia que queremos passar com o espetáculo, qual é a mola mestra. Não começamos pelo texto, mas pelas ideias que são oriundas do texto. Não sei se respondi a você, mas essa é uma pergunta complicada, porque esse é o tipo de questionamento que fazemos o tempo todo.
Ator da Companhia
Tenho uma preocupação que, acho eu, deve ser a de todos os atores da companhia. Como todas as propostas iniciais, apesar da nossa participação no processo, são feitas pelo Beto e pela Célia – eles são diretores e, naturalmente, definem a linha do espetáculo -, acho que nosso objetivo maior deve ser o de transformar, acreditar no que eles estão falando, ver se procede e contribuir. Acho que esse é o nosso papel. Roberto e Célia têm uma postura crítica, nunca passiva. É por isso que a gente trabalha junto há oito anos.
Dudu
E a coisa do folclore, como começou?
Célia
No Barbeiro, começamos trabalhando com um pouco de cantiga de roda, tentando inserir um pouquinho de folclore. Estudamos muito, lemos sobre Revolução Francesa. Percebemos que o Barbeiro, para aquela época, funcionava como um trabalho de cultura popular – tinha muito do folclore espanhol no texto original. Nossos espetáculos mantêm sempre as mesmas características. Um grupo de atores chega para representar alguma coisa. Tem sempre um narrador, um personagem mudo, tem aquele que faz a cena e tem o grupo que critica a cena através do gestual. Com o Barbeiro, veio a opção pelo folclore: usar a festa de Bumba-meu-boi – nessas festas, os bonecos sempre contam uma história. E foi isso que nós tentamos fazer. O folclore corria por fora e a música da ópera, as inserções, corriam por dentro, porque não queríamos deixar de passar para as crianças a questão da inserção. Nada é gratuito. Pode não funcionar, pode não ser a melhor solução, mas não é gratuito. Sempre fechamos com a mesma música que abre o espetáculo. Eu e Roberto não sabemos escrever para teatro. O único texto que escrevemos foi tão ruim, tão ruim que a gente não tirou da pasta até hoje. O nome é Blouse e Mouse, mas é horrível. Então, adaptar é mais fácil. O Roberto pega os originais, faz as traduções, mas a gente sabe que não é o ideal. O Barbeiro, agora, está indo para as ruas, praças, shoppings, para tudo que é lugar. Tiramos três cenas para adaptar a peça aos novos espaços e o entendimento da platéia não ficou prejudicado. Se fizermos uma avaliação, fica a dúvida: será que aquelas cenas eram tão necessárias ou será que elas entraram como reflexo da dificuldade de quem fez a adaptação e não conseguiu ser conciso?
Da plateia
Por que o nome Nósconosco?
Célia
No curso, nós queríamos um nome. Apesar de ser um curso, nós já tínhamos assim uma mania de grandeza. Eles já queriam camisa, queriam tudo. No primeiro curso, nós tínhamos botton, camiseta, plástico, bandeirinha, chapeuzinho. A Danielle Russo vendia tudo – era impressionante. Mas o problema continuava. Que nome nós vamos ter? Aí, surgiram várias ideias: Suba nesse palco, Compre essa briga, Faça teatro. Cada um dos componentes tinha que trazer uma proposta de logomarca e de nome. E aí saiu o Nósconosco, ideia da Daniele Russo. E esse nome tem muito a ver com a gente, porque é “nós conosco” mesmo. Somos egoístas, fechados, ninguém pode mexer no nosso cenário, quem varre nosso camarim somos nós, quem lava o banheiro do camarim somos nós. Tem equipe de limpar camarim, de limpar banheiro, tem tudo. O Nósconosco, ideia da Daniele, foi aceito pelo grupo e ficou.
Dudu
Não me lembro direito, mas acho que vocês receberam o Prêmio Coca-Cola de melhor produção por Arlequim e foi muito marcante quando vocês agradeceram, em público, pela caderneta de telefones da Eveli Fisher. Achei muito sintomático porque era a caderneta de uma produtora. Como é essa questão da produção de vocês? Pelo vídeo, a gente vê claramente a evolução dos espetáculos em todos os níveis – e também a evolução do cinegrafista: o vídeo do primeiro espetáculo era meio torto, já o do último… (risos.) Como é essa evolução, o que mudou?
Lúcia Cerrone
Eles sempre foram assim. O Sonho de uma Noite de Verão, no teatro da UFF, era um escândalo. Acho que aquele teatro nunca teve nada parecido até o momento em que eles chegaram. Quando saí de lá, perguntei: “quem fez isso?” Eles responderam: “Nós, os atores.” Eu nunca mais vou esquecer, porque era uma coisa faraônica, uma produção enorme. Eles fazem tudo, estão produzindo o tempo todo, é uma coisa obsessiva. Digo para a Célia que ela é obsessiva. O Arlequim é um marco importante na trajetória do grupo, no crescimento dos atores. Mas a Célia sempre foi assim. Quero ver sua resposta, Roberto, se é diferente da minha.
Roberto
Bom, completando o que a Lúcia disse, também acho que a gente sempre teve a preocupação de fazer bem. Da mesma forma que o cinegrafista melhorou e os atores cresceram em altura e amadureceram, nós dois também aprendemos muita coisa…
Célia
A gente descobriu a cola quente…
Roberto
A gente descobre materiais, processos, conhece pessoas e observa. Se o cara fez diferente e funcionou, será que, se eu fizer assim ou assado, também funciona? E vai tentando. A coisa do apoio, do patrocínio é gradativa, não é? A gente não gosta muito de vender. Esse negócio de ser produtor é muito chato – não gosto de ser isso, não -, mas às vezes é preciso. O caso da carroça, do Sonho, foi assim: fui ao então IBAC (Instituto Brasileiro de Artes Cênicas), que a gente já conhecia, e falei que queria fazer uma carroça assim, assim. Perguntei se eles podiam me dar uma assessoria técnica, me explicar qual era a melhor maneira de fazer, qual a melhor madeira para não ficar muito pesada e poder desmontar. Como resposta, me disseram que ia haver um estágio nacional de cenotécnicos lá, e que eles tinham planejado criar umas escadas para o Zé Dias, mas que podiam reconsiderar essa decisão porque o meu cenário parecia ser mais interessante. Fiquei feliz, até o momento em que me perguntaram quando eu entregaria a madeira necessária – é claro que eu não sabia que teria que arranjar a madeira, mas segurei. “Na próxima semana”, respondi. Aí, foi uma loucura. Procura na lista telefônica, não acha, faz trezentas mil ligações… Naquela época, já conhecíamos a Eveli. Pedimos socorro. “Você conhece alguém que pode nos dar umas madeiras?” Aí ela dava o nome, a gente ia atrás. Às vezes funcionava, outras não… Então, valeu o agradecimento. É difícil, nesse negócio de teatro, alguém dar algum tipo de informação assim, sem cobrar nada. Ela foi ótima.
Dudu
Aí vocês conseguiram a madeira…
Roberto
É, lá em Nova Iguaçu.
Dudu
E a carroça foi montada nesse curso do IBAC para cenotécnicos?
Roberto
Foi, depois de muita confusão. Uma parte da madeira que eu consegui era de obra, cor-de-rosa. Quando cheguei ao IBAC, o cara olhou a madeira e disse: “Você não quer que eu construa nada com isso, né?” Respondi: “Não, imagina, vou trocar essa madeira”. Ele não sabia que eu não sabia como trocar aquilo. Acabei conseguindo e a carroça foi feita. Corríamos atrás de tudo e comemorávamos sempre que conseguíamos alguma coisa – tecido, almoço, sapatos. Com o tempo, percebemos que aquilo que chamamos de produção, na verdade, é sair com um pires na mão pedindo tudo para todo mundo.
Bruno Bessa
No caso do Barbeiro, apesar do nível de ajuda ter sido muito maior, nós, os atores, ainda tivemos que pôr a mão na massa, ficar no sinal pedindo dinheiro, fazer pedágio, vender camiseta, passar aquele chato do Livro de Ouro, dizendo: assina aqui, pelo amor de Deus.
Célia
Quando o Bruno volta do pedágio, reclama. Aí, a gente diz para ele não ir, e ele responde: “Não, eu vou. Vou, mas reclamo”. É horrível mesmo fazer pedágio em plena Praça Afonso Pena. Mas aquele pedágio deu muito dinheiro. Nós fomos a Florianópolis – eram dez mil reais de passagem e cinco mil de caminhão só para levar o cenário. Nós conseguimos o dinheiro todo vendendo camisa, passando o Livro de Ouro, fazendo rifa e máscaras para vender. Ninguém ganhava nada.
Ator da companhia
Mas não é só o dinheiro. A gente também batalha pelo público. Na temporada do Inspetor Geral, no Teatro Tereza Rachel, que abria com duas pessoas na plateia e terminava com sete, a gente ia para a Praia de Copacabana, aos sábados e domingos, com uma malha do pé até as orelhas, e distribuía cerca de mil filipetas por dia, debaixo de um sol de quarenta graus, para ter de volta duas ou três filipetas. Teve uma vez, na época do impeachment do Collor, que nós estávamos vestidos de rato e houve toda uma identificação popular com os ratos naquele momento de corrupção e as pessoas gritavam: “É isso aí, vocês estão dando a maior força para o impeachment”, e a gente nem sabia o que era aquilo e dizia: “Não, não é impeachment, é a nossa peça. Vai lá hoje, às cinco horas”.
Célia
Outra coisa. Nunca deixamos de fazer nenhum espetáculo. Se alguém quebrar a perna, outro faz, nem que seja no grito. Teve uma vez que a Flavinha Reis quebrou a perna, no Cacilda Becker, durante a temporada do Inspetor geral. O Roberto, nessa época, fazia a luz. Então, o jeito foi trocar: a Flávia teria que fazer a luz e o Roberto a substituiria no palco. Numa das cenas, o Jorge fazia uma pergunta ao Roberto, que não sabia o texto, e a resposta vinha clara: “E eu com isso?” (risos) Essas coisas acontecem. E importante saber que qualquer um pode ficar doente, bem doente, que a gente segura.
Da plateia
Meu nome é Leão, sou professor de Teoria da Literatura, atualmente vivendo no Ceará, e vi O Barbeiro de Sevilha. Como vocês pensam o imaginário infantil e como trabalham em função dele?
Roberto
Quando construo o espetáculo, tenho que responder uma outra questão: como fazer tudo funcionar? O imaginário da criança, a forma de comunicação com esse público, acaba sendo uma consequência. Não vou fazer o espetáculo em função da criança, não posso fazer isso porque não é bom. Tenho uma ordem de valores a ser seguida em função do processo criativo e de certa forma de linguagem. Quando a gente fala em linguagem, pensa em comunicar alguma coisa a alguém. Para que isso ocorra, tem que haver um código. Mas eu não tenho essa clareza e assumo isso. Não tenho a clareza do tipo de imaginário que eu quero atingir quando construo meu espetáculo. Não sei se não tenho essa clareza! Por ingenuidade ou porque realmente essa é uma questão que não me preocupa, pelo menos por enquanto. Não sei se funciona ou não funciona mas, em determinados momentos, as respostas têm sido satisfatórias. Não sei se respondi…
Célia
Vamos ver se eu consigo… Todo espetáculo passa pelo crivo da criança antes de ir para o palco. O Arlequim passou. Foram três dias de trabalho no Museu da República, de graça, para todo tipo de criança. Tinha muito menino de rua, crianças de orfanato e crianças ricas. Foram três dias em que a gente sentou com as crianças, conversou. E, no Arlequim, elas tinham um espaço para trabalhar as questões que viveram na peça, através de um questionário. Constatamos, assim, que o Arlequim atingia as crianças. Tenho vinte turmas de crianças, dos 6 aos 18 anos. Durante a criação do espetáculo, conforme íamos filmando as cenas mudas, eu ia levando as fitas para a sala de aula e as crianças iam discutindo, trabalhando, vendo o que era bom, o que entendiam e o que não entendiam. E, com esse trabalho, muita cena deixou de entrar no espetáculo em função do que as crianças percebiam.
Da Plateia, Aderbal Freire-Filho
Desde o primeiro dia de seminário, temos visto uma grande diversidade entre os grupos convidados. Mas há uma característica que parece comum a todos, até agora: são sempre grupos numerosos. O que é legal desse encontro com vocês é ver esses grupos e confiar que eles vão sobreviver e ter muita estrada pela frente. Por isso essa questão financeira é importante. Vocês falaram de como fazem ginástica para conseguir dinheiro – pedágio, rifa. Mas percebo que vocês não dão a devida importância a isso. Aí, pergunto: isso não é vergonhoso, não é amador, não é tolo, não é subdesenvolvido? Será que esse é o único jeito de conseguir dinheiro para fazer teatro em grupo? É uma ilusão acreditar que um dia seu espetáculo se pagará? Minha reflexão é que herdamos os efeitos da política de mercado brasileira, imposta de cima para baixo, e estamos vendo todos os perigos e riscos que isso representa. Estamos vendo os danos provocados por um governo que estabelece à força uma sociedade de mercado absoluta. E, curiosamente, o teatro brasileiro tem um pouco esse pudor de resolver seus problemas com recursos do mercado. Conheço gente que diz, com orgulho: “Sou do tempo em que não havia patrocínio, não existia Shell, Coca-Cola.” Claro que a independência financeira nos deixa orgulhosos, mas mais curioso seria dizer “eu dependo só do mercado para fazer meus espetáculos” e ficar feliz com isso. Mas isso, hoje, nessa estrutura econômica, é impossível. O único jeito mesmo, se vocês lotam e não têm bilheteria para sustentar essa companhia, a produção, o salário e a manutenção, é correr por fora. Eu digo isso para fortalecer o entusiasmo de vocês – não é para ter vergonha nem pudor de inventar maneiras de buscar dinheiro. Já disse aqui que, nos Estados Unidos, é assim que funciona. Fora da Broadway é assim. No dia em que fui ver um espetáculo no Arena Stage – uma das mais importantes companhias de teatro dos Estados Unidos, que existe desde os anos 50 – os produtores estavam rifando um barco para conseguir dinheiro. Claro, eles todos têm salário, o diretor da companhia tem carro do ano, tudo sustentado pela bilheteria – que cobre 30% das despesas – e pela contribuição dos sócios. Quando a coisa aperta, rifam barco – no caso, doado por um sócio – ou outra coisa qualquer. E isso é uma coisa própria da cultura americana. Então, o que eu quero dizer é: fazer rifa, fazer baile, fazer festa, vender o que der pra vender, qualquer coisa é válida para montar o espetáculo.
Célia
Mas a gente não tem vergonha, não. Na hora de correr atrás do pedágio, a gente vai com a maior garra.
Da Plateia, Aderbal
Vergonha talvez tenha sido a palavra errada. O que eu quero dizer é que não devemos achar que isso seja amadorismo.
Roberto
Mas eu não acho que seja coisa de amador. A gente já andou de avião com dinheiro de pedágio, rifa e Livro de Ouro. E muito bom (risos).
Da Plateia, Aderbal
A diferença entre nós e os americanos é que eles organizaram esse setor. Com a maior naturalidade, eles dizem: “Vamos agora fazer uma campanha porque houve um problema na refrigeração, que não foi previsto no orçamento, e precisamos de novos sócios”. Também devemos organizar esse sistema de captação de dinheiro. Por outro lado, existe uma coisa meio cínica no meio teatral carioca. Algumas pessoas se orgulham de não depender de patrocinadores, mas na verdade, dependem muito, mas são cínicas o suficiente para tentar parecer que não dependem. Por exemplo: existem aqueles que pedem a um amigo que trabalha numa agência de publicidade para fazer a arte para o anúncio do espetáculo na hora do almoço, mas não pagam a agência de publicidade; outros pedem almoço no restaurante para a equipe durante os ensaios, para diminuir um pouco a folha de pagamento, e avisam aos atores: “Olha, você vai ganhar menos para ensaiar, mas não precisa trazer lanche nem gastar na esquina porque vamos ter o apoio da lanchonete tal.” Acho que a gente deve organizar isso e não ser tão cínico, tentando parecer que é independente. É preciso fazer isso com profissionalismo. Somos profissionais para ensaiar, mas brincalhões para captar recursos.
Célia
Recebemos um convite para fazer um espetáculo e, pela primeira vez, vamos receber salário para ensaiar – um salário mínimo por mês para cada um. Isso é uma novidade, porque a gente nunca ganhou salário para ensaiar. A gente sempre pede patrocínio, sempre. Mesmo que a Coca-Cola não nos contemple todo ano, sempre apresentamos projeto. Onde a gente sabe que pode pedir dinheiro, Aderbal, a gente vai.
Da Plateia, Aderbal
Só pra terminar, uma observação: eu estou nessa cruzada, achando que os grupos têm que sobreviver. Viver muito, ter vida longa, porque é bonito ver essa diversidade, essa chama. É importante que eles encontrem meios de continuar. Infelizmente, não assisti aos espetáculos de vocês, mas fiquei curioso para ver O Barbeiro de Sevilha, porque acho que vocês fizeram uma relação com o folclore que não podia ser mais natural. Me chama muito a atenção porque, no Nordeste, o teatro é basicamente espanhol. Todas as manifestações populares do teatro nordestino são ibéricas. É uma associação muito natural.
Da Plateia
Meu nome é Gilson de Barros e trabalho na Lona Cultural Hermeto Paschoal. Como é o relacionamento do grupo?
Ator da companhia
Nós procuramos contribuir participando das discussões, sempre colocando o nosso ponto de vista. A gente tem uma coisa muito boa, que é não guardar nada. É como um mandamento: sentiu, falou. A gente discute desde a concepção até problemas que surgem no dia-a-dia. Existe uma relação de respeito.
Atriz da companhia
Eu fazia parte de outro grupo e entrei na companhia de carona, porque meu namorado entrou. Isso tem três anos. Eu não sabia fazer nada, não sabia costurar, colar, recortar. Aí, me disseram: tem que fazer uma mala. Peguei o material, comecei a enrolar, colar, recortar. No fim, a Célia elogiou: “Era isso o que eu queria fazer”. Eu não sabia como fazer e fiz com a minha falta de jeito. Saí de um grupo me achando uma porcaria. Cheguei lá e tinha alguém esperando para receber aquilo que eu achava que não tinha para dar e a gente conseguiu unir. Foi super legal.
Ator da companhia
Uma coisa tem que ser ressaltada: é o sentimento de amizade que existe dentro da companhia. Eu já trabalhei com outras pessoas e nunca vi grupo tão unido. Não tem essa de eu sou o ator, eu sou o diretor, eu sou isso ou aquilo. Um ajuda o outro. Se alguém está com dificuldade, as pessoas conversam. Acho que é isso que me prende à companhia. Não é só o trabalho, é a amizade. É raro, num grupo de teatro, haver uma ligação de amizade tão forte – um é a escada do outro pra tudo, em cena e fora dela. Não rola uma competição… Talvez seja até por isso que fazemos esses espetáculos felizes, alegres, com tesão mesmo. Aliás, a melhor palavra para definir essa companhia é tesão – tesão pelo teatro, tesão pela companhia, tesão pelo outro… Acho que é por isso que é legal, que vale a pena a gente estar sempre junto, ralando, discutindo e se amando.