Bate-papo com os diretores indicados ao Prêmio CBTIJ de Teatro para Crianças de 2019: Débora Lamm, Duda Maia, Marcela Andrade e Saulo Sisnando
CBTIJ: Diante de dificuldades de toda ordem, como a absoluta escassez de programas de fomento e de patrocínios, e a retração do público em função de questões como recessão econômica e falta de segurança, além da precariedade de boa parte dos nossos espaços teatrais, especialmente aqueles administrados pelo poder público, porque continuar fazendo teatro para crianças e jovens hoje em dia?
DEBORA LAMM (Suelen Nara Ian): Porque teatro pra criança é construção, educação, é formação de plateia e não deve parar.
DUDA MAIA (Vamos Comprar um Poeta): Eu vejo a arte como um lugar de transformação e diálogo, quando faço as minhas escolhas para o público infanto-juvenil esse é o meu desejo. Trazer temas necessários, que mereçam reflexão e que sejam interessantes para toda a família. A criança e o adulto têm percepções e entendimento muitas vezes distintos, e percebo que a troca entre eles é extremamente rica, buscando novos olhares, outros significados para fatos e sentimentos que permeiam nosso dia a dia. Teatro é mexer no afeto, na memória, na lembrança e se fazemos isso desde cedo, podemos ver o mundo de forma mais aberta, menos intolerante. Cultura faz parte de nossa identidade e nossa identidade nasce conosco.
Em relação a escassez dos programas de fomento, estamos vivendo um momento horroroso, um descaso, um desmonte escancarado da cultura, porém tenho tido a sorte de encontrar excelentes parceiros, junto com a Palavra Z, do produtor Bruno Mariozz. Fizemos nossa trilogia com o Centro Cultural Banco do Brasil, continuamos nossas parcerias com Sesc e Sesi, as premiações nos ajudam a continuar abrindo portas. Vou em frente sempre, porque independente de qualquer situação não saberia não fazer, sou movida por uma sala de ensaio e enquanto tiver uma boa história, um produtor apaixonado, um ator disponível e uma pessoa querendo ouvir essa história, eu não vou desistir.
MARCELA ANDRADE (Ana Fumaça Maria Memória): O teatro é uma oportunidade para que pessoas convivam, tanto durante sua criação profissional quanto na partilha de uma peça com diferentes públicos. Acredito que, mediante convivências teatrais, nós – seres humanos desse mundo atual, tão confuso e ferido – podemos descobrir possibilidades mais saudáveis e criativas para seguirmos juntos. Essas possibilidades são tecidas por narrativas, memórias e imaginários coletivos (re)feitos.
Na maior parte das vezes, criar para crianças se torna abertura para que nós, adultos, busquemos nosso “ser criança”, isto é, ser fonte de invenção e de descobertas de percepções e sentimentos que transitam nesse mundo. Por isso, acho fundamental valorizar a arte direcionada para infância como oportunidade poética tanto para criadores quanto para o público.
Com a mesma importância, temos que refletir sobre o teatro para a juventude, pensando em como ampliar as relações de afeto, visão crítica e diálogo com adolescentes de hoje. Essa geração é fundamental pro que vem pela frente no nosso país. Pela conjuntura triste que vivemos de descaso do poder público com fomento e com desenvolvimento de espaços e práticas artísticas para quaisquer faixas etárias, cabe a nós, fazedores de teatro, insistir na qualidade de peças para juventude, já que, através dessa formação de público, as relações humanas, sociais e o próprio futuro da nossa prática cultural podem ser renovados.
SAULO SISNANDO (O Príncipe Poeira e a Flor da Cor do Coração): Fazemos arte porque precisamos fazê-la. Embora seja necessário lutarmos contra o desmantelamento da cultura no país e para termos mais incentivos, programas de fomento e melhores condições de trabalho, fazemos arte porque é necessário. Arte faz nosso coração bater e é nosso destino nesse planeta. Por isso tantos governantes nos odeiam, pois não importa o que eles façam e o quanto tentem nos calar, sempre continuaremos fazendo arte e lutando pelo que acreditamos. Enquanto houver um ator para falar e um espectador para ouvir, continuaremos fazendo teatro!
E, convenhamos, o campo nunca foi fácil para a arte. Como elemento que faz a população pensar e catalisador de mudanças sociais, poucas vezes a arte foi vista com bons olhos pelos detentores do poder. Mas arte, e sobretudo teatro, é uma planta que nasce e dá belos frutos em qualquer terreno. É uma flor que brota até sobre as pedras da ignorância!
Nesse contexto de fundamentalismo, intolerância e obscuridade não há momento mais importante e indispensável para fazer teatro para crianças e jovens senão este. Se quisermos mudar o país – o mundo! – é indispensável discutir tolerância, respeito e cidadania desde muito cedo… e agora!
CBTIJ: Como se deu o processo de criação do espetáculo? Quais foram as inspirações e as principais referências durante o processo?
DEBORA LAMM: O processo de criação do espetáculo, antes de qualquer outra prioridade, era um ambiente leve, amoroso e divertido para a partir daí trabalharmos. Sempre que trabalho com teatro para o público infantil, penso na melhor forma de nos comunicarmos com as crianças e ao mesmo tempo com os adultos que as acompanham.
DUDA MAIA: Vamos Comprar Um Poeta é a terceira história da Trilogia sobre amor para crianças, e eu estava procurando algo que não falasse sobre amor entre duas pessoas apaixonadas, pois tinha feito isso em A Gaiola e de outra forma em Contos Partidos de Amor. Comecei a ler muita coisa, e queira encontra uma história sobre amizade e depois e muito procurar, tive o prazer de encontrar esse livro, escrito por um autor português magnífico, Afonso Cruz. Afonso escreveu uma linda história de amizade entre um Poeta e uma família, que a medida que conviveu com a poesia abriu os horizontes, encontrou uma forma mais bela e prazerosa de ver a vida, e especialmente resinificou a ideia de produtividade.
Entramos numa sala de ensaio animados, querendo falar dessa mudança que a poesia gera dentro da gente, dessa necessidade de ciência e cultura caminharem juntos, como era um tema muito político eu queria uma encenação mais lúdica, junto com o cenógrafo André Cortez chegamos na gangorra, e com isso também conseguimos criar uma linguagem pela fisicalidade, que é a marca do meu trabalho. Tudo foi feito em sala de ensaio, horas diárias, os atores pesquisando o movimento para chegar na história. E as marcas surgindo dessa pesquisa.
MARCELA ANDRADE: O texto foi inspirado por uma vivência minha junto com minha avó paterna, que, entre 2011 e 2014, já bem velhinha, começou a ter perdas de memória. Durante esses anos, eu rascunhei a narrativa da peça, que é guiada pelos sentimentos de uma menina de 7 anos – a protagonista Ana, que quer recuperar a memória que sua vó Maria está perdendo. Durante a criação inicial do texto, eu fiz uma associação entre memória e a imagem de um trem: diversos vagões com pedacinhos de vida. A partir dessa associação, a narrativa foi ganhando elementos fantásticos, capazes de levar Ana até o “Maria Memória”, o trem de lembranças da avó. Nos vagões, ela tem a chance de encontrar sua mãe e seus avós quando eles eram mais jovens e, até mesmo, crianças.
Escrevi a versão final da peça no início de 2019, ou seja, anos mais tarde, quando finalmente houve o patrocínio do espetáculo. Escrevi durante uma viagem solitária pela Bahia e lá, uma prática de criação que adotei foi fotografar crianças e velhinhos juntos, principalmente em pracinhas. Além disso, todo elenco dividiu comigo memórias pessoais que, em fragmentos, estão na dramaturgia. Durante 3 meses de ensaios, a desenhista Adriana Seiffert foi convidada para, junto com o elenco, criar ilustrações de personagens e cenas. Assim, há na peça interação entre desenhos projetados, atrizes e atores. Os afetos “de risco” que podem surgir na infância são abordados, especialmente sentimentos vinculados à fragilidade ou à morte de um familiar muito querido.
SAULO SISNANDO: Como todos os meus espetáculos, O Príncipe Poeira é uma explosão de referências e paixões. O texto, a priori, surgiu de uma adaptação de O Príncipe Feliz, de Oscar Wilde, com referências claras a A Aurora da Minha Vida, de Naum Alves de Souza, dramaturgo pelo qual tenho grande admiração.
Em A Aurora da Minha Vida – por ter sido escrita e encenada pela primeira vez no regime militar – acompanhamos a necessidade morte do autoritarismo e da austeridade. Quando o personagem Quieto morre, temos uma clara alusão ao imperativo do fim daquele Regime que aterrorizava nosso povo. Em O Príncipe Poeira, quis fazer o inverso, na contramão do personagem Quieto, Poeira é um ser livre – um menino que só sabe amar – que morre para dar espaço à rigidez, ao autoritarismo e ao militarismo de uma escola que aprisiona em vez de libertar. Um sistema que tantos parecem querer de volta! Junto com isso, o texto traz inúmeras lembranças de minha infância, reminiscências de uma época em que tinha medo de ir à escola e apanhar por ser uma criança delicada.
Se por um lado, a criação do texto foi caótica e solitária, o processo de montagem foi uma das melhores experiências que tive no teatro. Os atores e técnicos estavam empenhados na necessidade de contar essa história, sobretudo nos tempos em que vivemos. Como diretor, tentei dar o máximo de liberdade para que os técnicos e atores pudessem, num movimento de criação e cura, colocar em cena suas memórias, experiências e mensagens mais pessoais. A produção do Marcelo Nogueira e da Cacau Gondomar deu apoio a essa criação íntima dos técnicos e atores, tornando a obra incrivelmente pessoal para cada um dos envolvidos. E as atuações preciosas de Fabrício Polido, Nedira Campos, Daniel Dias da Silva e Amanda Melo deram voz a personagens fantásticos e ao mesmo tempo tão reais.
CBTIJ: Para os criadores, técnicos e produtores da área de teatro, e especificamente da área de teatro para a infância e juventude, qual é a relevância de uma premiação?
DEBORA LAMM: Festejar o teatro infanto-juvenil é uma excelente forma de incentivo, tanto para quem faz, como para quem assiste. Vida longa ao CBTIJ!
DUDA MAIA: Então, como falei anteriormente, o prêmio faz com você tenha um destaque no mercado, que seu trabalho seja reconhecido, não que isso só seja possível com um prêmio, mas ele é um canal que facilita bastante a sua projeção. Essa projeção ela é extremamente bem-vinda para carreira do premiado e para a duração do espetáculo, para que a vida dele não seja curta. Hoje em dia é muito mais fácil vender um espetáculo premiado. É um selo de qualidade. Abre muitas portas para o projeto. Falando da minha experiência, tem sempre um momento no processo que você se sente muito solitária, mesmo com muita gente do seu lado, que cria junto com você. Mas tem aquele momento em que você acha que não vai conseguir, não vai achar o caminho, não vai resolver uma cena, é horrível. A aceitação do público, a boa crítica e os prêmios me deixam mais confiante. Quando você ganha um prêmio é como se alguém falasse no seu ouvido: Vai lá, continua não desiste. Faz mais um. O prêmio é um estímulo.
MARCELA ANDRADE: A ocorrência de uma premiação específica para criações direcionadas para infância e juventude desperta a atenção da classe teatral e de todas as pessoas interessadas nesse setor cultural para a importância de pensarmos as possíveis vivências que podem ocorrer nessas primeiras fases dos seres e, principalmente, de experimentarmos cenicamente como variadas percepções de infâncias e juventudes reverberam em linguagens teatrais também distintas. Ou seja, reúnem-se artistas realizadores e reflete-se sobre arte criada para crianças e adolescentes, no passado, no presente e para o futuro. Na minha percepção, toda premiação é uma oportunidade de reunião afetiva e de concentração de forças de visibilidade. Essas forças podem ser mais coletivas do que ecoicas, já que, mais do que quaisquer concorrências, são as cumplicidades e celebrações que ainda fortalecem nosso setor. Nos tempos atuais, dadas as raras oportunidades de estrutura, realizar profissionalmente um espetáculo já é um prêmio. Por isso, celebremos as sortes e as resistências de cada ano. Torço para que, em muito breve, tenhamos mais motivos coletivos para comemorar o teatro no Rio de Janeiro e em todo país.
SAULO SISNANDO: Fazer arte é difícil. Difícil demais! Acredito que, vez ou outra, nós artistas precisamos de um abraço, de um afago, de um carinho. Diante de todas as dificuldades, receber um prêmio ou mesmo uma indicação, para mim, é como se alguém chegasse bem perto, te desse um abraço e te dissesse: “não está sendo em vão”. Não fazemos espetáculos para ganhar prêmios, fazemos para mudar o mundo, para tocar as pessoas, para salvar nossas crianças do fundamentalismo… Mas ser abraçado e premiado, nos dá forças para continuar seguindo e a certeza de que, desse mundo tão louco e dividido… estamos do lado certo.