Crítica publicada no Site da Revista Crescer
Por Dib Carneiro Neto – São Paulo – 29.09.2017
Cia. Simples adapta com brilho mais um livro de David Almond
Skellig, história de um menino que se sente ‘escanteado’ pelos pais, toca com leveza em um tema pouco explorado no teatro para crianças: educação formal versus aprendizado livre
De novo, a paulistana Cia. Simples chamou a diretora Cristiane Paoli Quito para juntos adaptarem e encenarem outro livro do premiado autor inglês David Almond. O primeiro foi ‘Meu Pai É um Homem Pássaro’, em 2012. Agora é a vez de Skellig. Ambos os espetáculos foram acolhidos, em suas primeiras temporadas, pelo Sesc Pompeia, em São Paulo. E, na ficha técnica, mais nomes são coincidentes nas duas montagens: a iluminação de Marisa Bentivegna, o figurino de Claudia Schapira e a música com participação de Natalia Mallo.
Skellig é outro grande acerto de toda essa gente talentosa. Conta a história do menino Miguel, que muda de casa na mesma época em que sua irmãzinha recém-nascida fica doente e exige cuidados constantes. Ele arranja um amigo misterioso, um ser esquisito chamado Skellig, que encontra na escura garagem da nova casa. Logo, uma vizinha de sua idade, Mina, junta-se a ele nessa aventura de saber quem é e o que quer Skellig.
Pronto, essa é uma sinopse possível. Mas, em essência, peça e livro falam de uma criança querendo ser amada, tendo de lidar com mudanças, com medo de uma perda iminente (a irmãzinha doente) e precisando de mais atenção dos pais. É lindo como teatro e literatura podem alçar voos juntos, falando de temas tão duros e palpáveis de forma paradoxalmente tão imaginativa e fantasiosa. A Cia. Simples tem se esmerado nisso – e conseguido resultados incríveis, ousadias dignas de muito aplauso. É teatro diferente, fora dos clichês estabelecidos, corajoso na estética e na temática. Já é, na verdade, o terceiro livro de Almond adaptado pela Cia. Simples. Houve, em 2015, Mina, com direção de Marat Descartes, inspirado no livro ‘Meu Nome é Mina’.
Todos os papeis da peça (exceto um) são revezados entre o competente elenco, um jogo interpretativo e dinâmico que eu gosto sempre de elogiar, pois permite que a plateia mirim tome contato com as múltiplas possibilidades de se fazer teatro. O papel que só um ator defende é justamente o de Skellig, decisão muito acertada da direção, pois é uma medida que fortalece o personagem e contribui para aumentar cada vez mais a aura de mistério que o envolve. Fabricio Licursi faz um Skellig inesquecível. É o papel de sua vida, arrisco dizer. Esbanja a mesma segurança e o mesmo brilho que Otávio Dantas demonstrava como o pai ‘maluquinho’ de Homem Pássaro. Repare na expressão corporal de Fabricio. A estranheza singular do personagem – beirando o realismo fantástico – ganha contornos físicos muito apropriados, graças ao talento do ator escolhido.
Os acertos da encenação vão desfilando um a um diante de nossos olhos. Menino e menina, pré-adolescentes, Miguel e Mina, são muito bem retratados. Ela, por exemplo, diz várias vezes a frase: “Isso é típico!”, referindo-se ao comportamento do amigo. Com certeza, as crianças da plateia se identificam em muitos momentos. Natalia Mallo fica em cena o tempo todo executando a trilha ao vivo, apenas com seu violão, cujas cordas pontuam as ações ora sutil e suavemente, outras vezes de forma mais impactante e climática.
E por falar em ‘clima’, a ambientação é primorosa, no sentido de que instaura no palco todo o mistério que a trama exige, à base de lanternas e muitas penumbras. O ponto alto da iluminação, por exemplo, é a cena em que os três personagens principais ganham asas imaginárias e voam. O design de luz nessa hora chega a ser envolvente. Os figurinos, em tons de preto e branco, seguem pela mesma linha coerente do cenário, composto basicamente por dois grandes quadros negros (lousas), um na parede e outro no chão.
O negro da lousa e o branco do giz foram escolhas bastante coerentes com a concepção pretendida – mas não só como funcionalidade estética. Lousa e giz fazem parte do ambiente escolar e eis que, aos poucos, vamos descobrindo que o espetáculo também é sobre isso, ou seja, perpassa toda a trama uma discussão subliminar sobre o papel da escola na vida daquelas crianças. É um tema importantíssimo e pouco explorado no teatro para crianças: a educação formal versus o aprendizado livre.
Para que serve uma escola hoje? A personagem Mina, cujos pais não a deixam ir às aulas, por acreditarem mais nos ensinamentos da vida, demonstra saber mais sobre o mundo do que o menino Miguel, frequentador habitual dos bancos escolares. Esse assunto é muito sério, porém, não vira militância nem discurso chato. É outro ponto positivo da peça. Está integrado à dramaturgia na medida certa – e com todas as nuances de um tema que, por si só, atrai muita polêmica.
Ao mesmo tempo em que se questiona o valor da educação formalizada, o garoto Miguel conta à amiguinha Mina que, na sua escola, seu professor foi dar uma aula sobre o coração e começou pedindo que os alunos levassem as mãos ao lado esquerdo do peito. A riqueza temática da peça está justamente em mostrar dois lados de uma mesma questão: por mais que uma personagem conteste a escola, o outro comenta que há professores que ainda sabem manter a sensibilidade na hora de ensinar. O recado esperançoso fica dado sem necessidade de quebrar o ritmo da fábula com dedos em riste. Arrisque sem susto uma visita a ‘Skellig’, mas, diante do exposto aqui, se prepare para uma linguagem conceitual tão forte quanto sofisticada. De simples, só mesmo o nome da companhia.
Serviço
Local: SESC Pompeia.
Endereço: Rua Clélia, 93. Pompeia – São Paulo. Telefone: (11) 3871-7700.
Capacidade: 300 pessoas
Duração: 60 min
Quando: Sábados, domingos e feriado (12 de outubro), às 12h (meio-dia).
Classificação etária: Livre
Ingressos: Crianças até 12 anos não pagam. R$ 5 (credencial plena do Sesc), R$ 8,50 (meia para +60 anos, estudantes e professores da rede pública de ensino) e R$ 17 (inteira)
Temporada: De 16 de setembro a 29 de outubro de 2017