Crítica publicada no Site da Revista Crescer
Por Dib Carneiro Neto – São Paulo – 23.06.2017
A realidade dos exilados em belo espetáculo de bonecos
Com Menino Coragem, a cia. Articularte acerta em cheio na abordagem desse tema bem atual
A Cia. Articularte, que gira em torno da criatividade do casal Dario Uzam e Surley Valério, está na estrada há 18 anos, com espetáculos que costumam valorizar a cultura brasileira, protagonizados por bonecos incríveis, criados na própria companhia. Logo na estreia de seu primeiro espetáculo, a Articularte ganhou o Prêmio Panamco 2000, justamente pela criação de bonecos da peça A Cuca Fofa de Tarsila, um dos hits de seu repertório até hoje. De lá para cá, foram muitas alegrias e também muitos percalços e conquistas, atuando nas mais diversas formas de animação de bonecos, como a manipulação direta, luvas, hastes ou sombras.
Não é diferente em Menino Coragem, o novo espetáculo, que fará no fim de semana suas duas últimas apresentações desta primeira temporada. Todas as técnicas estão lá reunidas em mais uma atração com bonecos nota dez, criados pela bonequeira Surley Valério. E um atrativo extra é que a peça faz parte do projeto Histórias Sem Fronteiras, que a Articularte criou para tentar um intercâmbio e a inclusão do público de “refugiados, exilados, imigrantes e suas crianças”. Muita pesquisa de campo foi feita, até que ficasse pronto esse Menino Coragem, que reúne histórias de vida e relatos desses exilados no Brasil.
Havia mais texto no espetáculo, mas muita coisa foi eliminada ao longo dos ensaios e das apresentações para o público-alvo, pois o português não é dominado totalmente por muitos imigrantes. A história agora é contada quase sem palavras, para que possa ser entendida por qualquer pessoa, em qualquer língua. A dramaturgia de Dario Uzam contou mais uma vez com a preciosa colaboração de Luís Alberto de Abreu, que havia atuado também no recente Jorginho e o Dragão Camaleão, inspirado na obra naif do artista plástico mineiro Ronaldo Mendes. Abreu, na Articularte, é o que se pode chamar de “um auxílio luxuoso”.
Há lindas cenas com bonecos representando seres mitológicos, na história desse menino corajoso que, durante uma certa guerra, tem de cuidar da sobrevivência da irmãzinha e do animal de estimação da família, pois eles se perdem dos pais em pleno mar. É lindo o momento (cena muito bem realizada na técnica de sombras) em que, dentro de uma baleia, um peixe e um polvo brincam de chacoalhar a ‘campainha’ na garganta do enorme animal. O menino, logo no início, brincando com bolas e luas, também é uma sacada poética que encanta o público. A irmãzinha Janaína trocando os nomes dos bichos que encontra pela frente (sapo por perereca, por exemplo) é outro certeiro recurso de humor, que cria empatia com as crianças.
E, claro, no final, a cena de reencontro com os pais é bem emocionante – um ponto culminante, preparado aos poucos pela dramaturgia para que resulte impactante.
Menino Coragem, em essência, fala de saudades, de mudanças, de exílios involuntários que deixam marcas profundas nas pessoas, de gente ilegal que mora em ‘ocupações’ e busca dignidade. O grande mérito da peça é zelar com respeito por seus retratados, dar a eles o valor que eles têm, reverenciar suas culturas e honrar nossas diferenças. Um tema importante, atualíssimo, forte, muito bem desenvolvido em peça que encanta adultos e crianças.
Não posso deixar de mencionar os figurinos do espetáculo, assinados por Deborah Corrêa, uma das profissionais cada vez mais em ascensão no cenário teatral paulistano. Aqui, é sensacional como ela interfere até na roupa preta dos manipuladores de bonecos. A roupa precisa ser preta, mas quem disse que não pode ser bem pensada, bem transada? Deborah cuidou para que houvesse coerência visual entre o preto sóbrio dos manipuladores e os figurinos coloridos dos próprios bonecos, vestidos com o toque de nobreza que esses refugiados merecem. Rendas, fitas, apliques, brilhos – o trabalho é impecável. Quando terminar a peça, aproxime-se do palco para ver de perto esses detalhes nos figurinos. Valerá a pena.
Serviço
Teatro Cacilda Becker
Rua Tito, 295 – Lapa, São Paulo
Telefone: (11) 3864-4513
Sábados e domingos, às 16h.
Classificação indicativa: Livre.
Recomendação da produção: A partir de 4 anos de idade
Duração: 45 minutos
Ingressos: R$ 10,00 inteira e R$ 5,00 meia
Temporada: só até domingo (25/6)