Crítica publicada no Site da Revista Crescer
Por Dib Carneiro Neto – São Paulo – 05.07.2013
Teatro ao ar livre no tempo da delicadeza
Marias da Luz, com a Cia. As Graças, encanta do começo ao fim com histórias de personagens reais do mais antigo parque paulistano
Não é uma peça infantil, mas também não é uma peça em que não se possa levar crianças. Ao contrário. Marias da Luz, com a premiada Cia. As Graças, é atração para todos, para mim, para você, para sua avó, suas crianças, sua vizinha. É peça que resiste a toda e qualquer tentativa de compartimentá-la em gavetas de faixa etária ou de gênero. É, sobretudo, e antes de mais nada, um tocante exercício de delicadeza – quem há de resistir?
Encenada ao ar livre, no Parque da Luz – o primeiro da cidade de São Paulo, fundado em 1798 –, em frente à Estação da Luz, no Bom Retiro, Marias… encanta do começo ao fim, ao retratar mulheres, sobretudo mães e filhas, em momentos de fragilidade, saudade, solidão e angústia. As meninas da plateia talvez se identifiquem mais com as situações, porém sensibilidade para ver um bom espetáculo não depende de restrições de sexo. “Passeando” com as atrizes pelo parque, o público pode fazer as suas mais variadas e amplas viagens pessoais – mas todas certamente desembocam na região emocional do afeto.
O espetáculo começa subitamente, mansamente, sem nenhum dos três sinais de aviso, tradicionais nas salas fechadas. Sem trombetas, sem campainhas, sem palco. Simplesmente começa, delicado, silencioso, integrado à paisagem e aos frequentadores do Parque da Luz, na área próxima ao coreto. Pode parecer um mero detalhe, mas esse começo suave é importante porque se trata de uma peça que nasceu ali, a partir de pesquisas das atrizes, durante um ano e meio,entrevistando e convivendo com os “habitantes” da praça, mendigos, prostitutas, senhores aposentados, vendedores, figuras desesperançadas da cidade grande. Tudo brotou dali, então nada como iniciar esse evento externo e “invasor” da forma mais natural possível, sem interferir no ritmo e na respiração do próprio parque.
Essa harmoniosa integração arte-espaço é um grande mérito do diretor escolhido desta vez pelas Graças: André Carreira, um estudioso e teórico da modalidade do teatro de rua. Com sua concepção calma e segura, ele retribuiu ao afeto recebido pelas vidas sofridas que circulam pelo Parque da Luz – afeto que virou um ponto de intersecção entre todas as histórias ouvidas, escolhidas e retratadas pelo grupo. Impossível não se emocionar. No mínimo, um nó vai se alojar em sua garganta durante o transcorrer de Marias da Luz.
O risco de o espetáculo se perder em meio a tanta pesquisa e tantas histórias fortes e reais era um risco bastante grande. Mas a dramaturgia criada coletivamente pelo grupo (e depois consolidada por Daniela Schitini e Nereu Afonso) resulta extremamente eficiente, na medida em que o texto tece urdiduras, embaralha épocas (cada Maria é de um tempo diferente), nos enreda e nos intriga. Em nenhum momento, a boa intenção desses artistas de se integrarem à população do parque suplantou o objetivo maior de todos: o de realizar um trabalho artístico bem feito e bem acabado, ou seja, não abrir mão da obra de arte em nome do que poderia ser chamado, só para usar um termo polêmico do meio teatral dos dias de hoje, de “contrapartida social”.
O trabalho das quatro atrizes é primoroso. Simplesmente de arrepiar. Elas se entregam de tal forma ao espetáculo e ao intrigado público local, que é impossível não sair dali com uma reconfortante sensação de potência do teatro e com uma admiração imensa pelo nobre ofício de interpretar. Que atrizes, que mulheres, que Marias elas são! Eliana Bolanho, Juliana Gontijo, Daniela Schitini e Vera Abbud (As Graças) são Marias profundas, Marias solidárias, Marias da lida da vida e da crença na arte. Como se cantassem que “é preciso ter força, é preciso ter raça, é preciso ter gana sempre”.
E por falar em cantar, quem disse que elas também não cantam mesmo? É irresistível o momento em que Eliana Bolanho e Daniela Schitini, sentadas num banco, cantam juntas (afinadíssimas) um lindo arranjo de Umas e Outras, de Chico Buarque.
Marcante também é a participação especial do Grupo Brugalhau, que faz parte da história do Parque da Luz, pois se apresenta ali regularmente. São músicos veteranos que, para o espetáculo, executam Cigano, de Lupicínio Rodrigues e Felisberto Martins, sucesso na voz de Moreira da Silva.
Confirmando a força da música na concepção da peça, há uma singela trilha original incidental, composta por Daniel Maia, que também assina a direção musical de Marias da Luz. Daniel criou sensíveis pontuações musicais que acompanham a sutileza e a amargura das histórias. O requinte da integração do som ao espaço aberto do parque é comovente. Um operador fica à paisana, no meio do público, em locais estratégicos, com o equipamento de mp3 e as caixas de som escondidos – camuflados – dentro de uma sacola de feira.
O projeto faz parte do Programa Petrobras Cultural que contemplará o grupo As Graças até o fim de 2013, por meio da Lei Rouanet do Ministério da Cultura. Neste fim de semana, o grupo se despede de sua primeira temporada no Parque da Luz. Não perca. Mas depois volta em novembro para nova temporada no mesmo parque onde tudo começou. Até lá, você poderá vê-las em várias cidades brasileiras: Goiânia, na Praça Flamboyant (dias 20 e 21/7); Brasília, em Planaltina (27 e 28/7), Palmas (3 e 4/8), Belém (10 e 11/8), São Luís (24 e 25/8), Fortaleza (31/8 e 1/9), Natal (7 e 8/9), Salvador (21 e 22/9), Belo Horizonte (28 e 29/9), Rio de Janeiro (5 e 6/10), Florianópolis (19 e 20/10) e Curitiba (26 e 27/10).
Serviço
Parque da Luz
Rua Ribeiro de Lima, 99 / Praça da Luz, s/n – Bom Retiro
Duração 60 minutos
Classificação etária: Livre.
Sábado (6/7) e domingo (7/7), às 16h
Grátis