Crítica publicada no Jornal do Brasil
Por Flora Sussekind, Rio de Janeiro, 01.10.1982
Quem disse que as Conversas não Chegam na Cozinha?
Colocar toda a cultura popular do país em cena num espetáculo infantil de apenas uma hora beira o impossível. Beira e parece mesmo coisa irrealizável para quem assiste a Navegando Rios, Mares e Corações, em temporada no Teatro Glauce Rocha. A história é simples. Trata-se de um barqueiro que, ao apaixonar-se por Maria, desafia, por um lado, os preconceitos raciais e morais de uma comunidade e, por outro, a vaidade da “Rainha das Águas”. Desafio ritual e luta contra uma visão de mundo estreita combinam-se, assim, na narração das aventuras do barqueiro em busca da amada escondida no estomago da boiúna. E o que poderia ser uma ação dramática eficiente e aventuresca perde muito de seu ritmo pelo excesso de referências a personagens de nossa mitologia popular. O espetáculo padece de uma estranha erudição. Ao invés de exageradas referências à “cultura oficial”, aqui também cita-se demais. Só o que se convencionou chamar de “cultura popular”. Só que o popular perde todo o seu vigor quando convertido apenas em instrumento de exibição. As entidades míticas que surgem nem sempre obedecem a uma necessidade teatral. Ao contrário, funcionam apenas como uma série redundante de citações.Tão redundante que às vezes as crianças até esquecem o objeto primeiro da busca do barqueiro. E todos os seus percalços passam a beirar o nonsense. Pena que um nonsense reduplicador e bem pouco crítico.
Mais estranho ainda é que, num espetáculo onde se pretende traçar uma caricatura dos preconceitos raciais e sociais de uma comunidade de visão estreita, surjam menções tão “infelizes” aos índios e àqueles que trabalham na cozinha. Não dá mesmo para entender como, no meio de uma discussão com duas beatas que exigiam o fim do seu romance com o barqueiro, Maria grite em alto e bom som: “Cala a boca. A conversa ainda não chegou na cozinha!”. O que significa isso? Será que o grupo responsável pelo espetáculo acha que preconceito étnico não pode, mas de classe pode?
A confusão do espectador só tende a piorar quando, durante a busca da amada desaparecida misteriosamente, o barqueiro trava contato com um grupo de índios que resolve ajuda-lo. Mas, diante das sugestões do grupo, o único comentário do barqueiro é: “Que ideia maluca. Só podia ser mesmo ideia de índio!”
Mais uma pitada de preconceito num espetáculo que se crê respeitoso para com a produção cultural e as crenças das camadas populares. Estranho respeito este que os faz chamar índios de malucos e desvalorizar aqueles que trabalham nas “dependências de empregadas”. Conscientemente ou não, jogam por terra deste modo, o esforço gasto numa produção cuidada com alguns interessantes bonecos de vara e figurinos adequados que vestem, no entanto, estranhas e preconceituosas contradições.