Fernanda Bertoncello Boff

Nesta edição do nosso Bate-papo, teremos uma troca entre as artistas, educadoras e pesquisadoras Brenda Campos (*), da Insensata Cia. de Teatro – Belo Horizonte/MG e Fernanda Bertoncello Boff (**), da Pequenices: Arte e Educação – Porto Alegre/RS. A conversa reverbera indagações de ambas acerca das artes cênicas – especialmente a dança, o circo e o teatro – para e com crianças. O CBTIJ/ASSITEJ Brasil agradece a ambas pela disponibilidade em colaborar com nosso site e a riqueza das reflexões apresentadas. Boa leitura!

Brenda: Antes de mais nada, gostaria de agradecer ao CBTIJ por ser essa importantíssima referência no teatro para a infância e a juventude e por possibilitar mais um intercâmbio entre artistas e pesquisadores que se dedicam às infâncias em suas investigações e proposições. Tive a imensa alegria de conhecer o trabalho do “Pequenices: Arte e Educação” em 2019, na primeira edição do FeNAPI – BH. Desde então acompanho o trabalho desses artistas e percebo nitidamente importância que o grupo dá ao protagonismo das crianças em seus processos artísticos e pedagógicos.

Fê, hoje fomos convidadas, pelo CBTIJ, a bater um papo sobre o trabalho {Entre}, uma produção audiovisual que registra o processo de criação do novo espetáculo do grupo Pequenices, mas que é muito mais que um simples registro processual, configurando-se num resultado autônomo que se situa entre a dança, o circo e o teatro, entre as artes cênicas e o audiovisual, entre o seu corpo, o do Gabriel e o do público, entre o processo de criação e o espetáculo final. Gostaria de começar essa conversa ouvindo você apresentar ao leitor esse trabalho. Fale-nos sobre ele, em linhas gerais.

Fernanda: Brenda, que prazer conversar com você! Bem, a proposta do {Entre} surge inicialmente desse desejo por uma nova produção cênica do grupo. Eu recém tinha voltado do Festival Cradle of Creativity (África do Sul) nutrida por tantas experiências enriquecedoras, que cheguei em Porto Alegre cheia de vontade e energia para criar. Ah, vale ressaltar aqui que essa oportunidade incrível de viajar para o Festival se deu graças ao CBTIJ! A partir disso, em meados de setembro de 2019, comecei a elaborar uma proposta cênica partindo da palavra “entre” e de seus dois possíveis significados: o primeiro, da ideia de um lugar de encontro, diálogo e mistura, e o segundo de um convite para entrar e se movimentar com a gente! Eu e Gabriel começamos a ensaiar logo em seguida, no entanto, alguns meses depois, início de março de 2020, a pandemia nos obrigou a reorganizar a vida, deixando de lado esse processo pensado para um espaço cênico e o desdobrando em uma produção audiovisual. {Entre} é jogo e experimentação, uma proposta que visa brincar com as emergências do encontro: entre corpos, objetos, diferentes fazeres artísticos… O que é possível no entre? O intuito foi mesmo de estabelecer uma concepção bastante aberta nesse início, para que a investigação pudesse tomar corpo durante seu andamento.

Brenda: Em “Pequenices: minipeça viajante de dança” vocês exploram possibilidades de fazer um espetáculo de dança COM crianças, ousando colocá-las em cena, brincando e dançando junto com você, do início ao fim do trabalho. Assim, o que vemos em cena é uma “aglomeração” de crianças ativas, que se relacionam com você, com o espaço e umas com as outras, a partir dos estímulos e movimentos propostos. Isso tudo só se torna possível a partir da presença física de seus corpos no palco do teatro. Diante do contexto pandêmico, muitas dessas relações precisaram ser ressignificadas. {Entre}, entretanto, mantém aberta essa brecha para a relação, mesmo no contexto da mediação tecnológica. Gostaria que você falasse um pouco sobre como vocês encararam esse desafio, quais foram as estratégias usadas para dar abertura à participação do público e como você tem percebido, até aqui, a recepção das crianças a este trabalho.

Fernanda: Foi um desafio e tanto! Como tornar visível esse convite para “entrar” na brincadeira sem a presença física? Por vídeo? Como instigar as crianças a se moverem COM a gente? As telinhas por si só já nos impelem uma postura tão passiva diante delas, né? A primeira das estratégias que adotamos foi com relação à organização do roteiro, o qual foi pensado para ser composto por cenas curtas e que intercalassem momentos mais agitados com outros mais tranquilos e contemplativos. Na cena de abertura, já buscamos romper com essa ideia de sentar “bem confortável” e “bem comportado” para assistir o vídeo, propondo outros modos de ocupar o assento: podemos assistir nos colocando em movimento! Algumas outras estratégias adotadas foram: criação de coreografias com movimentação acessível; repetição de cenas modificando a perspectiva do espectador a partir do olhar da câmera; utilização de referências de jogos da cultura infantil; brincadeiras de movimento com regras claras e flexíveis; ferramentas de edição para composição de imagens inusitadas. E, bem, tem sido muito gratificante receber o retorno das famílias sobre como foi assistir o {Entre} com as crianças em casa: desde registros em vídeo e foto dos pequenos e pequenas dançando conosco em frente à televisão, até lista de perguntas que as crianças fizeram sobre o trabalho! A receptividade tem sido bastante positiva, cheia de afeto e reverberações.

Brenda: Algo que chamou muito a minha atenção ao assistir a esse trabalho, foi a energia dos corpos em cena, que se colocam em situação de jogo e investigação. Longe dos estereótipos observáveis em algumas produções artísticas voltadas para crianças, vemos corpos que realmente se divertem e contaminam o espectador dessa vontade de brincar e experimentar. Acredito que a experimentação de movimentos e enquadramentos deve ter sido (ou estar sendo) a tônica desse processo de criação. Você poderia nos falar um pouco sobre os caminhos percorridos, nesse sentido?

Fernanda: Linda tua percepção, Brenda. O início do nosso processo também foi impulsionado pelo texto de um amigo, do qual destaco a seguinte citação: “No processo de experimentação somos lançados no ‘entre’, ou seja, passamos a nos movimentar entre o que somos e o que ainda podemos nos tornar.” (FERRAZ, 2014). Então, sim, {Entre} é sobre esse mergulho na experimentação, sobre permitir movimentar-se em uma direção talvez desconhecida. É construir o caminho caminhando. Tornar-se outro a cada instante, a cada nova relação. Por vezes o que nos guiou foi uma inquietação, por outras apenas uma música, mas o que de fato acredito que transborda nas cenas, nessa energia que você comenta que sentiu, é curiosidade!! Essa curiosidade crianceira que buscamos manter viva e que nos traz sempre muito mais perguntas do que respostas.

Brenda: Um dos pontos fortes de {Entre} está no hibridismo de sua linguagem e na forma como o trabalho incorpora os recursos tecnológicos como parte da criação artística, a partir da brincadeira com enquadramentos, montagens e sobreposição de imagens, que constroem e desconstroem realidades possíveis. Esse é um aspecto que vocês pretendem continuar explorando no trabalho presencial? De que maneiras o público pode esperar encontrar o hibridismo das linguagens cênica e audiovisual no espetáculo que está por vir?

Fernanda: Super interessante você trazer isso, pois foi um aspecto bastante discutido durante as filmagens. O fato de termos incorporado o audiovisual no processo (e nesse resultado) foi, ou melhor, está sendo muito marcante na construção do trabalho, é como se não desse mais para voltar atrás. Sim, as ferramentas do vídeo deixaram de ser apenas uma outra alternativa de viabilizar a obra e se tornaram parte desse diálogo entre as linguagens. Não há dúvidas de que o espetáculo vai explorar essa mescla, especialmente no diz respeito à relação com o público e às possibilidades de interação.

Brenda: Há algum tempo acompanho o seu trabalho também junto ao projeto “Pequenices: Arte e Educação” e vejo a atuação do grupo junto às crianças e profissionais das artes e da educação, por meio oficinas e cursos de formação. Como essa experiência pedagógica junto às crianças reverbera no seu trabalho artístico? E a experiência artística, reverbera em sua prática pedagógica? É possível dizer que se afetam mutuamente? Em que medida? Você consegue separar as duas coisas?

Fernanda: Esse assunto move a minha vida!!! Artistar e educar, pra mim, caminham lado a lado. Não sei onde um começa e o outro termina, pois vejo ambos como percursos criadores e transformadores. Você citou a “minipeça viajante de dança” anteriormente, né? Bem, um dos feedbacks mais frequentes que recebo sobre o espetáculo é de que ele se parece com uma aula, mas não é, na verdade pode ser. Algumas pessoas ficam confusas, cheias de dúvidas. Eu sempre respondo: é também! Por que não? Bem, aqui vale dizer que estamos falando de uma perspectiva contemporânea de arte e de educação, que nada se parece com os modelos tradicionais. Uma perspectiva democrática e mais horizontal, que exercita a partilha, a troca, a escuta sensível… Aliás, acho que esse pode ser um assunto para desdobrarmos em uma outra conversa, hein?

Brenda: Para finalizar nossa conversa, gostaria que falasse mais sobre a ideia do entre, que dá nome ao trabalho. Por fim, deixar aberto o convite para que o público entre, e que muitas outras pessoas tenham a linda oportunidade de vivenciar esse trabalho tão gostoso e inquietante!

 

Fernanda: Ah, acho que acabei respondendo essa na primeira e na terceira pergunta… O fato é que eu adoro brincar com as palavras, especialmente quando elas não entregam o jogo de cara, mas sim abrem possibilidades de serem compreendidas (e experimentadas) de diferentes formas. Entre é um lugar onde tudo é movimento.
Aproveito esse finalzinho para deixar registrado o meu super agradecimento. Obrigada ao CBTIJ, em especial ao Cleiton, por esse lindo convite e pela incrível iniciativa desses bate-papos. E obrigada à Brenda, pelo olhar sensível, pela amorosidade nas palavras e pela elaboração de perguntas tão instigantes.

Grata e honrada aqui!

(*) Brenda Campos é artista de teatro, pesquisadora, pedagoga e mãe do Francisco (4) e do Caetano (1). Mestre em Teatro pela Universidade Federal de Ouro Preto investiga, por meio de sua pesquisa acadêmica e da prática artística junto à Insensata Cia de Teatro, o “Teatro entre infâncias”. @insensatacia

(**) Fernanda Bertoncello Boff é bailarina, circense, professora e brincante. Licenciada em Dança pela UFRGS e Pós-graduada em Ed. Infantil. Idealizadora e coordenadora do projeto Pequenices: Arte e Educação. Desenvolve o curso Educação Criadora: práticas corporais e ludo pedagógicas com Wagner Ferraz. Gestora do Estúdio Amplo. @pequenicesarte