Matéria publicada na Revista Veredas, do Centro Cultural Banco do Brasil
Sem Identificação do Jornalista – Rio de Janeiro – julho 1996

O Sapo Virou Príncipe

O teatro infantil se livra do feitiço que o mantinha em segundo plano e se profissionaliza com ideias e produções criativas, mas ainda luta para ser reconhecido

Ludi é uma menina levada. E vidrada em televisão, como toda criança. Por um descuido do técnico que conserta o aparelho de TV, ela vai parar dentro da tela que tanto a atrai, provocando um grande alvoroço: muda o final da novela, fica enjoada durante um programa de culinária e, flamenguista doente, altera o resultado de um jogo de futebol. Quando finalmente consegue voltar para casa, está acompanhada dos personagens da novela que, horrorizados com os problemas do mundo real, resolvem voltar para a televisão.

A peça Ludi na TV, com estreia este mês no CCBB, naturalmente não apresenta toda a sofisticação técnica de que dispôs Woody Allen para criar A Rosa Púrpura do Cairo, referência de Luciana Sandroni ao escrever o livro (editora Salamandra) em que a peça é baseada. O diretor do espetáculo, Dudu Sandroni, irmão da autora, contou porém com um recurso de valor inestimável para sua adaptação: a criatividade do público infantil.

Para situar as cenas na sala ou dentro da TV, Dudu Sandroni não criou uma moldura vazada, que poderia parecer ridícula, nem investiu em modernos efeitos especiais, mas optou por um simples jogo de luzes, que define os diferentes ambientes. Além disso, os próprios personagens conduzem a narrativa da história, mantida como no livro, mudando apenas a postura no palco para trocar de função. “O jogo é aberto” afirma o diretor.

O “jogo aberto” representa a opção de apostar na inteligência do público e não subestimar sua capacidade de compreensão. É uma prova da maturidade atingida pelo teatro infantil brasileiro. Houve um tempo em que os palcos eram sempre altos o suficiente para impedir o acesso de pirralhos exaltados, os cenários compostos por terríveis castelos de papelão e os atores, enfiados em trajes semelhantes a fantasias de carnaval, procuravam a participação das crianças com perguntas do tipo ‘onde está o lobo”?

No CCBB as próprias características físicas da sala destinada ao teatro infantil, onde o público fica no mesmo plano que os atores, justificam a preferência por peças com encenação interativa.

Em Ludi na TV, a plateia se acomoda em poltronas e almofadas, na casa da própria personagem. Esta proximidade marcou também montagens como as de A Mulher que Matou os Peixes e Curupira, em que as crianças se sentavam em sobre troncos da floresta que compunha o cenário.

Hoje em dia, dramaturgos, diretores e atores recusam até mesmo o rótulo de infantil. A exemplo dos franceses, preferem acreditar no teatro para “les jeunes années”. A intenção é atingir o público jovem de uma maneira geral, e até mesmo os pais e responsáveis, com textos inteligentes, montagens sedutoras e boas interpretações. Os novos espetáculos enfrentam o desafio de cutucar a mente e os sentidos de crianças da geração de Ludi, que navegam em telas de computador, assistem ao Jornal Nacional e sabem direitinho o que é sexo seguro. Por isso, é um teatro mais rico e maduro.

Desafiando Padrões

Em Mitos, Mundos e Lendas, a diretora Alice Koënow criou um roteiro sem linearidade temporal, com personagens que ao mesmo tempo contam e interpretam três lendas da criação do mundo. Ninguém achou complicado. Em A Mulher que Matou os Peixes, adaptação de texto de Clarice Lispector, tapete vira cachorro e Zezé Polessa faz de uma almofada um gato, sob o qual revela uma “ninhada” de almofadinhas, que distribui à plateia para que as escondam. “É um perigo achar que se deve descer ao nível das crianças. Elas têm uma imaginação muito maior do que se supõe”, diz a diretora do espetáculo, Lúcia Coelho.

Esta convicção é compartilhada pelo diretor Gilberto Gawronski, que desafiou os padrões ao oferecer a velha história de O Patinho Feio em monólogo, formato que poderia parecer pouco atraente aos pequenos espectadores. Ricardo Blat não se vestiu de pato nem evitou uma interpretação “mais aprofundada”. Rogério Blat, que adaptou o texto, terceiro de uma trilogia de peças baseadas em contos de Andersen, manteve o vocabulário “difícil” e acha enriquecedora a atitude de algumas crianças que se viram para os pais, no meio do espetáculo, para saber o significado daqueles termos. O patinho feio continua virando cisne, mas é também um ser humano que enfrenta a crise do crescimento. Por isso mesmo a peça foi convidada para se apresentar no Festival de Teatro Jovem de Lyon.

A maturidade do teatro infantil brasileiro não aconteceu de uma hora para outra. Foram necessárias pelo menos duas décadas para que esse gênero deixasse de ser apenas um trampolim para atores iniciantes chegarem ao teatro de adultos ou uma alternativa de renda para profissionais desempregados. Grupos de atores como Hombu, Navegando e Cia. de Teatro Medieval buscaram a profissionalização, optando por novas formas de linguagem em produções bem cuidadas.

Para esse crescimento, contribui o Projeto Coca-Cola de Teatro Jovem, que desde 1988premia anualmente as melhores peças em cartaz por mais de 30 dias no Rio e, a partir deste ano, também em São Paulo. Os prêmios contemplam doze categorias, o que representa um incentivo à especialização de profissionais de luz, som, figurinos e cenário em teatro infantil.

A Coca-Cola realiza ainda um festival com peças infantis brasileiras, estrangeiras, seminários e workshops, a cada dois anos, no Rio. Além disso, patrocina espetáculos: este ano, doze no Rio e sete em São Paulo.

Em dez anos, subiu de 30 para 70 o número médio anual de espetáculos infantis apresentados no Rio, já considerado uma espécie de polo irradiador do gênero. Juntamente com o aumento da quantidade de peças, ampliam-se as formas de linguagem que passeiam por gibis, animação com bonecos, cultura popular e temas medievais.

Reunindo a Categoria

A satisfação dos profissionais de teatro infantil com esse desenvolvimento registrado nos últimos anos esbarra, entretanto, num velho problema da categoria: o tratamento diferenciado em relação ao teatro para adultos. Os patrocínios são muitas vezes menores, assim como os cachês, o preço dos ingressos e o número de refletores disponíveis. Para se manterem em cartaz, os espetáculos contam com os oportunos projetos-escola, que levam peças aos colégios ou estudantes ao teatro. “Em teatros do governo os aluguéis e o percentual sobre a bilheteria são menores, mas ainda assim são esses projetos que garantem a sobrevivência”, diz o diretor Carlos Augusto Nazareth.

Em busca de reconhecimento e valorização foi criado em dezembro do ano passado, o Centro Brasileiro de Teatro para Infância e Juventude (CBTIJ). Trata-se de uma organização não governamental que pretende reunir a categoria em reuniões mensais, a primeira delas no dia 4 deste mês, no CCBB. Presidente do Conselho de Administração do CBTIJ, Alice Koënow quer promover ações para que essa atual efervescência do teatro infantil encontre apoio em instituições governamentais.

A Secretaria Municipal de Cultura estipula, por exemplo, cachês mais baixos para os profissionais do chamado teatro jovem. Outro assunto na pauta do CBTIJ é a lei de incentivo ao teatro (Caixa Econômica Federal/Funarte), que garante menores verbas para peças infantis por levar em conta que o número de apresentações é inferior ao dos espetáculos para adultos. “O que está em jogo é o produto. É preciso ampliar o conceito de respeito à criança”, argumenta Alice Koënow.

As instituições governamentais poderão se confundir para se adaptar à nova realidade do teatro infantil brasileiro, como aconteceu com a imprensa carioca. Alguns jornais chegaram a publicar o tijolinho com a programação de O Enganado, Surrado e Contente nas sessões de adultos e crianças, simultaneamente. Baseada em conto de Boccacio, a peça mostrava a condição desfavorável da mulher na sociedade medieval, mas de maneira bem-humorada, conduzida por um divertido bobo-da-corte. Marcia Frederico, que nos últimos anos adaptou e dirigiu esta e uma série de outras farsas medievais, se divertiu com a trapalhada. A intenção era mesmo atrair crianças e adultos.