Crítica publicada em O Estado de São Paulo
Por Tatiana Belinky – São Paulo – 30.08.1986
Uma Antipecinha Para Toda a Família
Domingo à tarde mal dá para entrar com o carro naquele trecho da Rua Major Diogo: na frente do TBC há um verdadeiro comício. Também pudera, com três peças infanto-juvenis sendo apresentadas simultaneamente em três dos espaços do teatro, todas três ótimas, com a “propaganda” do sucesso correndo de boca em boca… Todas três são textos de Marco Ghilardi, em produção da Cia. Vento Verde, a saber: Branca de Neve e os Sete Anões (emplacando um ano em cartaz) e Os Três Porquinhos, ambas já comentadas nesta coluna. E agora, na Sala 3, O Rinoceronte Careca, tão boa como as outras duas, só que bem diferente, tanto na forma como no conteúdo.
Aqui já não se trata de adaptação – mesmo modernizada – de conto de fada clássico, e sim de um texto totalmente original. E, se o título evoca Ionesco, não é por acaso: há também outras ressonâncias no espetáculo, ecos de Antunes Filho, quiçá até de Buñuel, “numas”, dentro do seu nonsense inteligente e crítico, no texto e na direção, e também no desempenho – excelente – de todo o elenco.
Mas não se assuste o meu eventual leitor com referências tão “sofisticadas”: este estimulante espetáculo consegue a rara proeza (muitos tentam e poucos conseguem) de atingir tanto crianças e adolescentes como os “adultos corajosos” mencionado no release: todos se divertirão à beça, cada qual no seu próprio nível de “leitura”.
O espetáculo atinge em cheio as intenções dos realizadores – o que não é comum, já que intenções (pra não dizer pretensões) falham mais vezes do que seria de desejar. E as intenções aqui são das melhores: a “antipecinha” de Ghilardi quer mostrar “a trajetória espacial e temporal de um balão… cuja mecha, acesa na infância, vai sendo consumida… pelos ares da estupidez e da hipocrisia sociais”. Que são de fato expostas da maneira mais criativa, irônica e hilariante pelo jogo teatral brilhante dos personagens tipos. São dois casais com os respectivos filhos, menino e menina, servidos por uma… criada? Bruxa? Fada? “Uma espécie de Mulher Maravilha”, a factótum Mary Ervilha (em esfuziante criação de Mayara Norbim) – que serve e manda , e faz o “coro” e agita toda a sequência trepidante de cenas, cada qual mais causticamente cômica, nas quais surgem também outras personagens-caricaturas, satirizando estereótipos e relações sociais, relações criança-família, criança-escola, e otras cositas mas.
A produção é corretíssima, minuciosamente bem cuidada em todos os detalhes, num nível altamente profissional. E a direção de José Ferro – atenção para este jovem diretor! – é tão inteligente, enérgica e espirituosa como o próprio texto, com o elenco correspondendo à altura, com entusiasmado empenho. Um programa imperdível para toda a família.
Tatiana Belinky é colaboradora do Caderno 2.