Entrevista retirada da Revista São Jorges (Fanzine da Companhia São Jorge de Variedades), número quatro, de 2005 e realizada por Georgette Vidal e Rogério Tarifa
Chegamos ao Ventoforte para fazer a entrevista, Ilo nos deu a informação de que o dinheiro do Programa Municipal de Fomento ao Teatro mais uma vez não havia sido depositado, ele estava muito revoltado e triste com a situação. Fomos para a casa dele, uma casa simples e muito simpática que conta nas paredes toda trajetória de vida desse artista. Preparou um café, sentamos em volta de uma mesa de madeira e sem que fizéssemos nenhuma pergunta ele começou a dizer de sua insatisfação de mais uma vez não ter recebido o dinheiro do Fomento…
Ilo: Porque é muito sério isso que aconteceu hoje, muito sério, não iria me resolver todos os problemas, mas iria resolver os problemas por dois meses, por um mês e meio… estão gravando?
Rogério: Estamos gravando.
Ilo: tudo bem, é que sou muito exibicionista (risos). Em 1961, eu estava fazendo teatro de bonecos na feira de Cuzco, no Peru. Eu morava lá, passei 8 meses trabalhando lá. Numa sexta-feira fomos presos porque nossos documentos não estavam em ordem, e também porque a polícia já havia implicado desde que entramos pela fronteira. Então, nesta sexta-feira, nós tínhamos um espetáculo programado na própria prefeitura, no salão nobre da prefeitura, e que eu considero seja um espetáculo histórico meu, nosso, porque era a primeira vez que… não era nada do outro mundo, mas era! Fazíamos teatro de bonecos. Durante dois anos viajamos pela América Latina, então nesse dia a gente pediu ao prefeito para nos liberar. O prefeito liberou e nós fomos fazer. O espetáculo que nós fizemos era assim: de bonecos, nós tínhamos uma espécie de tablado, era feito de pedaço de madeira que ia parafusando e formava uma grande janela. E lá acontecia o espetáculo. No meio do espetáculo, éramos os dois trabalhando (Pedro Domingues e Ilo Krugli com o Teatro Cocuyo), a gente virava o cenário e se via o objeto por dentro. O público vendo e começávamos a fazer ao espetáculo para o fundo do palco, para um público imaginário. Quer dizer, a partir daí o público assistia aos dois caras representando um espetáculo de bonecos para uma plateia imaginária e eu acho que sim, que aí é que foi a virada, a minha virada… Eu vou abrir, senão ela não vai desistir… (Ilo levanta e vai abrir a porta para a sua cachorra, que estava do lado de fora. Falando com a cachorra: Ô Estrela, não vou colocar cadeira pra você… (risos).
Então, outro dia, voltamos a ser presos dentro de casa e tinha um policial que nos controlava. E no domingo pela manhã nos levaram até o trem, nos convenceram que chegaríamos até a fronteira, Bolívia, Lago Titicaca, atravessaríamos para o outro lado e renovaríamos os papéis. Mas quando chegamos na fronteira um cara subiu, nos procurou, disse que não conhecia a renovação de permanência no Peru e carimbou: proibida a entrada por seis meses. E nós tínhamos deixado tudo o que era nosso. E assim mesmo fomos para a Bolívia, dormi durante semanas na Pinacoteca, conhecia o diretor. Há um depósito de quadros, eu dormia lá no chão e então eu e meu amigo fomos falar com alguém da cultura na Embaixada da Argentina e na do Brasil também, que a gente conhecia. Já tínhamos estado em La Paz também, e aí ninguém podia fazer nada. Estávamos em terra de ninguém, porque o Peru nos tinha expulso, lá era a Bolívia, éramos argentinos e sei lá… Então um de nós voltou pelo Lago Titicaca, passou por outros lugares, foi lá e numa semana juntou tudo que era nosso, teatro de bonecos, 80 livros, desenhos de crianças do Cuzco, não sei quantos quadros. Cheguei ao Brasil com 80 livros, porque eu idealizei que ia morar um tempo na Bolívia e depois passamos para o Peru e depois já pensava em ir para o México, e não sei o que mais…
Georgette: Ilo, conta a origem da história toda.
Ilo: Tá, mas não… é que o que hoje estou sentindo, como naquele momento, é a terra de ninguém… não é? É que quando cheguei lá na Bolívia, em La Paz, e meu amigo aí foi procurar os bonecos e o resto, eu estava sem grana, sem direitos… como se estivéssemos em terra de ninguém. É por decisões assim… decisões na qual não houve um diálogo. Ninguém me perguntou; qual o seu problema? Porque se você está em frente a um ser humano, e um ser humano que é criador, que produz, se está na frente de um mendigo também, você tem que também perguntar pra ele: qual é o seu problema? Claro que vai ser difícil de resolvê-los… vocês que trabalharam em um albergue sabem como é isso, né… e sentiram de perto essa coisa. Então é uma coisa assim, que cai assim, alguém que está administrando políticas culturais, políticas sociais, tem que perguntar para os atores: o que está acontecendo com vocês? Não é verdade? Então é isso… O que está acontecendo? Ninguém nos pergunta, só em tese, só por isso discutir mais Lei de Fomento é muito importante. Muito importante que se perceba o que é um trabalho de continuidade, a importância de um grupo que nasce e um grupo histórico, mas o que também tem que se discutir, os diálogos necessários para as comunidades… Nós somos uma comunidade… não é? (…).
Muitos de nós somos parte do patrimônio cultural do Brasil.
Naquela época, em 58, eu fui viajar com esse teatro de bonecos para o norte da Argentina e estando lá, trabalhando num lugar muito bonito que se chama Quebrada de Humauaca e tem muita influência boliviana, lá é nas cordilheiras, numa serra chamada Jujuy… Estávamos lá e a tentação de ir até a fronteira era muito grande… Porque fronteira, primeira vez na minha vida… Eu já tinha estado nesse lugar, mas nunca havia chegado até a fronteira. A fronteira é uma coisa fantástica, você está na fronteira das coisas… do outro lado… passar… e aí estávamos lá, nesse momento éramos três. Então uma menina que trabalhava com a gente tinha uns amigos que moravam em uma comunidade numa cidade no interior da Bolívia, tinham uma gráfica, imprimiam livros, e tinham um grupo de teatro, acho que o grupo talvez ainda exista, chamava-se Novos Horizontes, e era coordenado por um uruguaio que chamava Liber, de liberdade, não sei se ele inventou… é capaz que os pais dele fossem meio comunistas ou anarquistas… Como muitos dos filhos, como se diz?… Os filhos dos imigrantes que chegaram da Europa, com ideias socialistas, militantes, todos esses filhos… A mim me foi dado um nome bem tradicional, Antigo Testamento…
Ilo: Elias, mas é judeu polonês, meu pai era marxista, materialista. Mas me deu esse nome e também a tradição, deveria ter algum avô que chamava assim e tem que voltar a dar o nome… mas falavam silenciosamente, as pessoas falavam que eu… e eu entendia que eu era… porque eu brincava muito, fazia teatro, fazia teatro com bonequinhos, com coisinhas… sempre tava ocupado e era muito bom aluno na escola.
Falavam que eu era… eu entendia isso: que eu era um santo, que é uma palavra em hebraico: “tzadie”. Depois de muitos anos de adulto, e não faz muito tempo, descobri que não é “santo”. Essa palavra significa um homem justo, são os candidatos a ser juízes, profetas, conduzir o rebanho, era um “homem justo”. Então fomos ali para a Bolívia, atravessamos a fronteira, fomos até essa cidade, quando chegamos lá o grupo de teatro tinha saído de excursão. Mas tinha algumas pessoas. Fizemos espetáculo lá e procuramos eles em Luís de Potosi, a 5000 metros de altura, nas cordilheiras, a cidade mais antiga das Américas. Quando chegamos lá os outros já tinham partido (rindo), aí a gente foi para uma pensão e outro dia apareceu um professor ou diretor de uma escola e um líder sindical. Que naquela época tinha um agito aí meio de revolução social e disseram: Vocês fazem teatro? Vocês vão fazer espetáculos aqui para o sindicato (…) vão para um outro hotel, aqui não podem ficar, vocês vão trabalhar…E aí fomos para um hotelzinho bastante melhor, simpático e fizemos espetáculos. Ficamos um mês, seis semanas, todos os dias fazíamos espetáculos. Juntamos bastante dinheiro. Tanto que quando voltei para Buenos Aires ainda ficamos dois meses com dinheiro e cobrávamos apenas moedas das pessoas… e era lindo porque era nas minas e no sindicato, emocionante… e todos os mestiços, as índias com crianças, sentavam-se no chão, em cadeiras, assistindo(…).
Aí, quando voltamos novamente para o sul da Bolívia, que era onde estava esse grupo, um dia eu subi em cima de uma montanha, fiquei assim olhando o horizonte e disse: eu vou voltar para aqui, eu vou sair de Buenos Aires, não quero mais a grande cidade. Então esse meu amigo disse: Então eu também vou. Aí foi a decisão de voltar para a Bolívia. Nos tinham oferecido trabalhar nessa cidade a 5000 metros de altura, a Universidade nos tinha oferecido trabalho, porque também eu era ceramista… é, eu fazia um pouco de tudo: cerâmica, pintura, bonecos, sei lá o quê… trabalhava com crianças no domingo, dava aulas para elas, era um santo (risos) era um homem justo. Aí, voltamos para Buenos Aires, tinha um atelier de cerâmica, vendi… mentira que vendi… repassei para minha mãe, e ela ia acabar de vender, depois não quis vender nada, sei lá o que ela fez com todas as minhas coisas, com os meus quadros, deixei tudo por conta dela e foi quase um ano que fiquei ainda elaborando coisas e me mandei novamente para a Bolívia e como não consegui ir lá para San Luís, fui pra La Paz e de La Paz percorri grande parte da Bolívia e tenho histórias de lugares que eu andei muito assim… lugares… que quando vi, faz até pouco tempo… como se chama? Esse filme…
Marcelo: Diário de Motocicleta?
Ilo: Sim…
Marcelo: Eu ia até perguntar se você não cruzou com Che Guevara no caminho (risos).
Ilo: Foi sete anos antes que ele andou por aquela parte, o Che. Porque éramos todos uns carinhas que saiam de Buenos Aires para ir para o caminho do México, pra cima, e para encontrar identidade, não queríamos ser europeus.
Rogério: Que idade você tinha?
Ilo: Eu acho que eu tinha, deixa eu ver… em 59 eu fui pra lá, em 59 eu tinha… (fica fazendo as contas durante um tempo)
Georgette: Que ano você nasceu, Ilo?
Ilo: É final de 30 (…) eu tinha 27, 28 quando eu saí. Saímos então novamente pela Bolívia e o Peru para ir para o Brasil, e o Thiago de Mello disse: Você tem que ir para o Rio de Janeiro e conhecer Augusto Rodrigues, que trabalha com crianças! E aí a gente foi indo para vários lugares, chegou Santa Cruz de la Sierra, lá em Santa Cruz pegamos o trem que chamava-se Trem da Morte, fomos indo, indo, indo, paramos aqui… se contar tudo isso não acaba mais… (risos)
Eu sou apaixonado por palavras
Georgette: Vai indo, tá bom…
Ilo: Passamos por São Paulo e fomos para o Rio e no Rio, dois, três dias… encontramos o Museu de Arte Moderna, tava lá o Augusto. O Augusto nos levou para a escolinha dele. Agora, curiosamente, o Augusto tinha um histórico, foi quem deflagrou o movimento arte-educação nesse país… eu já estava fazendo coisas, mas o destino tecia coisas demais. Tinha um poeta que fazia bonecos, e tinha trabalhado com Garcia Lorca e que foi professor de minha professora primária, que me ensinou a fazer bonecos. Ele saia viajando pela América Latina, e veio até o Brasil. Ele continuou vindo até anos atrás, até morrer, chamava Javier Villafañe. E lá no sul tinha um festival em Gramado, ele vinha sempre e aí ele subiu até o Rio e ficou amigo de Augusto Rodrigues. Sairam viajando e Augusto vendo ele trabalhando com bonecos, com crianças, e depois do espetáculo fazia as crianças desenharem, disse: Eu quero fazer uma coisa parecida… vou trabalhar com crianças, e deflagrou esse movimento de arte-educação (…) Aí ele viu os bonecos : Era tudo que eu queria, ter bonecos aqui… e aí fiquei 11 anos trabalhando com ele, até… acontecer muita coisa… saí novamente do país, depois de 11 anos, fui para o Chile quando o Allende ainda estava no poder. Lá criei um grupo de teatro, grupo Manos… fazíamos teatro. Aí veio o golpe. No golpe fui preso etc. Consegui sair felizmente, e aí retornei.
Aí ele viu os bonecos: Era tudo que eu queria, ter bonecos aqui.
Marcelo: Isso em que ano?
Ilo: Já era 74, 73… final de 73, porque dois meses depois da queda de Allende eu saí, passei por Buenos Aires e só queria voltar aqui.
Marcelo: Você também pegou um período duro de ditadura, né?
Ilo: Peguei… golpe de estado na Argentina, no Brasil.
Marcelo: Você deixou de fazer alguma coisa em função disso?
Ilo: Não, eu continuava fazendo… é que quando éramos pequenos, meus pais eram militantes de esquerda. Então tinha uma lembrança assim… a polícia… na casa do lado, que eram amigos nossos. Domingo pela manhã tinha uma reunião e todos tinham sido dedados e a polícia apareceu… e minha mãe dizia para minha irmã e eu: Fiquem lá, era um sobrado, fiquem lá na sacada, na varanda, não sei o que mais, e fiquem olhando, fiquem rindo, minha mãe falava. E ela, na cozinha, acendeu o fogão e ia queimando jornaizinhos, é… suspeitos (risos). Então isso eu sabia, que frente à polícia eu tinha que ser muito comedido, muito… fui criado nisso. Já quando era jovenzinho e pertencia aos jovens comunistas, eu vim em 55 dessa forma para um festival aqui em São Paulo, que foi proibido (…) Então tinha um pouco dessa vivência, mas nunca eu me encaixei bem puramente na atividade política. Para mim era essencial fazer… fazer teatro, pintar, eu era um rebelde reflexivo, não é? Entrei num lugar para fazer… talvez esse quadro ainda tenha alguma influência, né… (mostra um quadro que pintou e que está na parede). Para fazer pintura, eu não frequentei nenhuma escola, nenhum curso acadêmico e nada, mas ateliers, escolas assim (…) Eu acho que fui muito feliz… não tive escolas. Tive assim recursos. Na minha rua tinha gente de 10 países diferentes, falavam línguas diferentes, era a Torre de Babel: armênios, espanhóis, italianos, galegos que pareciam com português, ucranianos, judeus, italianos… então todos eles falavam… e isso tudo era muito rico. Eu acredito ser muito importante falar mais de uma língua para perceber: Ah, minha língua… Não, não existe isso: existem línguas… Sabe o que é isso? (mostra um dicionário) Eu sou apaixonado por palavras. Então tudo isso eu acho que me preparou… e realmente a sensação minha agora, com essa informação de hoje (sobre o não pagamento do fomento), meus Deus! Daqui uma semana eu não sei o que vou fazer de minha vida e realmente a gente não merece isso… Então lá… onde já estava, na terra de ninguém, não ter nem pátria nem nada, nem país tínhamos… Isso é história, de que talvez a terra prometida era o Brasil. Assim como em 61, a história se repete nas fronteiras da vida, Bolívia, Peru, o golpe do Chile, os golpes da América Latina… Fomos para o Brasil, mas tínhamos que resgatar, tínhamos uns 20, 30 bonecos, uns 80 livros, e quadros, etc… Trouxemos tudo isso na bagagem, para o Brasil.
Rogério: Não era o Grupo ainda? Não era o Ventoforte?
Ilo: Não, naquela época chamava… primeiro chamou Ta te ti… Sabe o que é Ta te ti? É o jogo da velha. Era como se o grupo se chamasse jogo da velha (risos), depois chamou Cocuyo, que já é língua indígena, é um besouro um… como é que é? Que tem luz… um vaga-lume, mas grande.(…) Então depois se chamou O Teatro de Bonecos de Ilo e Pedro, já fazia tempo que eu me chamava Ilo, não me chamava Elias fazia tempo. Nunca fiz espetáculo me chamando Elias, e o Pedro não era Pedro, se chamava João, mas ele mudou para Pedro (risos).
Georgette: E seu pai, sua mãe? Você se comunicava com eles?
Ilo: Meu pai tinha falecido em 55 e foi justamente o que eu me lembrei aqui com vocês, eu não sei muito bem o porquê… ah, porque vocês falaram… você morando aqui, (no Ventoforte) que bom, é tudo perfeito. É o seguinte, com minha mãe eu me comunicava, minha mãe mandava cartas para Ilo Krugli. Minha irmã não aceitou isso, mandava carta para o Elias Kruglianski. Então minha mãe mandava carta para o Ilo krugli e ainda me criava situações constrangedoras… como receber cartas de Cuba para mandar para uma amiga dela. Botava noutro envelope, para a amiga dela, que tinha um filho em Cuba. Depois veio 64 e eu ainda durante dois meses recebia cartas de Cuba e eu dizia: Meu Deus o que eu vou fazer com isso. Depois pararam de mandar, se tocaram de que não era legal e minha mãe escrevia cartas assim: Vocês sabem, as coisas não estão boas, porque enquanto estiver mandando aquele pais do norte… ela era anti-americana, era pró-soviética, e aquele país do norte e pôs uns pontinhos assim (risos), que quem pegasse a carta não ia entender nada o que ela estava falando (risos). E minha mãe… muito bonita. Depois que eu fui embora ela se dedicou muito trabalhar, é… chamava A Liga de Los Derechos Humanos, era coisa dos direitos humanos e cuidava de um desses clubes, cuidava do clube de crianças no sábado. Enfim tinha toda essa história assistia show da… como se chama? Uma cantora argentina, como se chama? Folclórica… mais conhecida… a Mercedes, ela ia ver a Mercedes. Até que ficou velhinha… eu ainda visitei ela… partiu. Ah, e eu fui com um espetáculo para Buenos Aires, já com o Ventoforte, chamava Sonho de Coração Brejeiro Naufragado de Ilusão, é um folguedo, (…) mas quando tava lá em Buenos Aires o pessoal perguntava pra ela: Gostou? “Gostei claro…” O que você acha desse espetáculo? E então ela falava: “Eu não sei… não digo nada… agora aqui em Buenos Aires não tem nada igual”, era um espetáculo meu (risos). Então eu me escrevia com ela e a minha irmã reclamava de que eu tinha abandonado a família (…).
Em São Paulo tem uma grande amiga que escreve para criança, ela é arte-educadora, chama Fanny Abramovich. Ela falava para mim: “Que nada, você foi mais coerente com a história da tua família. Vocês passavam parte do dia nessa biblioteca e tal, fazendo teatro, brincando e desenhando”. Lá também tinha grupos ligados ao partido comunista que não eram nem judeus e ficavam um pouco se escondendo (…) “Você é o mais coerente e foi tão coerente que você acabou criando, recriando esse lugar de encontro…” Que eu fazia teatro, fazia cultura, teatro na biblioteca… “Você mudou dentro dela… você agora mora dentro dela, desse núcleo aí de trabalho…” E até hoje escondendo outros subversivos, como a São Jorge… (risos). Então eu ainda me comunico com minha irmã, com minhas sobrinhas, não muito… é distante, o presente me absorve…
Rogério: Você não vê eles há quanto tempo?
Ilo: Eu fui a Buenos Aires o ano passado e estive com uma de minhas sobrinhas, com os filhos dela, com a minha irmã, estive com eles sim. Ainda que não acreditem, eu fui no ano passado e voltei ao bairro onde me criei, fui com o Dinho e mostrei pra ele. Descemos de um táxi, na praça. Aí tinha a igreja de um lado e depois uma escola. Essa foi a escola que eu frequentei. Aí vou até escola e sempre a pessoa que eu levo não sabe, eu nem falo nada, depois é que ela percebe, a escola é “República do Brasil”.
Ela falava para mim: “Que nada, você foi mais coerente com a história da tua família. Vocês passavam parte do dia nessa biblioteca e tal, fazendo teatro, brincando e desenhando
Georgette: É mesmo? Chama Escola República do Brasil?
Ilo: Sim sim sim… “República do Brasil”. Mas eu acho que sou o único que viveu essa história… Não deve ter mais que vieram para o Brasil. Tinha uma amiguinha da escola que era exótica, muito exótica para mim, que chamava Estela dos Reis, era filha de brasileiros. Aí sim meu imaginário indagava o que essa gente fazia numa periferia de Buenos Aires. A mãe e a tia dela eram mulatas, o “rr” delas era assim como da Elizete Cardoso, esse “rr” assim carioca, me fascinava. E o que eles faziam nessa periferia de Buenos Aires? E eu fantasiava que eram gente que tinha se desprendido da Coluna Prestes e se tinham refugiado na Argentina, eu fantasio isso… mas conheci o embaixador do Brasil chamado Rodrigues Alves. Ele vinha para uns festejos, eu carregava a bandeira, era abandeirado, e eles passavam a mão na minha cabeça. Mas eu nunca consegui carregar a bandeira do Brasil por preconceito dos professores, eu não… brasileiro tem que ser mais moreno, você é muito clarinho…(risos), como se os argentinos fossem brancos, tem também caboclo por aí. Mas eu acabava mesmo ficando com a bandeira da Argentina. Aí eu mostrei a escola ao Dinho, a Biblioteca Popular, essa era outra biblioteca que eu também frequentei. Porque dividíamos nossas vidas entre iidich (dialeto germânico) e spanich. A nossa biblioteca e a escola era spanich porque aprendíamos espanhol, e se chamava Biblioteca Popular Sarmiento. Eu li tudo o que você possa imaginar, desde os 11, 12, 13 anos, Eça de Queiroz. Eu já tinha lido tudo, antes dos 20 anos eu já tinha lido Eça de Queiroz. Lia tudo que era possível. Muito russo, muito Victor Hugo, aos 13 anos eu já tinha lido Os Miseráveis. (…) então essa é a relação com esses espaços. Também frequentei outros, o centro da cidade. Eu saía muito da periferia, me refugiava nela, mas saía muito também. Mas com a minha família era essa, né, sempre me sentindo um pouquinho culpado, não é? Foram muitos anos. Faz quarenta e tantos anos que estou no Brasil, e acho que fiquei mais 2 anos andando pelo Peru, Bolívia e Argentina. Cada vez que eu chegava lá, minha mãe falava: “Sabe quem morreu? Sabe quem está muito mal?” Essas coisas né, a vida deve ser assim com todos que saem do grupo familiar e vão para o mundo…
Rogério: Você acabou de falar de culpas, em relação à família, né?
Ilo: Nem tanta, não sei… às vezes tento ser como todo mundo, mas eu tento… não tinha tanta culpa. Porque é o seguinte: minha mãe ficou com uma pequena pensão, o médico disse… deixem ela sozinha na casa que ela morava, minha família nunca teve casa própria. Eram casas alugadas muito grandes, minha família comprou uma agora e não está conseguindo pagar. Então ela morava sozinha e se virava, saia… Depois ficou muito doente e foi morar na casa de minha irmã, e depois foi para um lar de idosos. Mas eu sentia que não tinha saída, que eu tinha que ser coerente com a minha caminhada e minha mãe me estimulou muito, muito, muito (interrompe para pegar um livro com poemas). Eu estudei numa escola de graça, durante dois anos, sei lá, eram 5 anos, eu não acabei… Fui trabalhar em fábricas, oficinas de artes gráficas, potes, cerâmicas, era operário e frequentava alguns clubes de artes, essas coisas… me expulsavam… Em um era “Neocubista, éramos de esquerda, nos rebelamos, “tinha que fazer uma arte mais social”, nos expulsaram… aí fui para um atelier de gente ligada ao partido comunista e aí fiquei uma semana, não esperei ser expulso e me mandei também. Aí eu rodava, fazia um monte de coisas… mas é isso, a minha mãe me estimulava, mas eu conto nesse poema (do livro que pegou) uma série de coisas. Desde minha infância até a minha saída para a América Latina. E minha mãe chamava Rosa, e chamava Rosa Zacharias. É o sobrenome do avô dela que às vezes eu uso, eu gosto. Já usei, quando não posso botar meu verdadeiro nome, concorrer a alguma coisa… eu usava Dreher, que era do avô dela. Então ela me acompanhou até o trem que partia para a Bolívia, e aí ela me disse, e botei isso no poema. Rosa Z, Rosa Zacharias me disse: “ Mas não vai ser só isso que você vai fazer na vida…” assim mesmo ela quis ainda que eu tivesse uma profissão… e acabei fazendo só isso, não é?
“… para ser imortal você tem que viver muito o presente. Eu acho que arte, sobretudo o teatro, é do presente. O futuro é, como se diz, a projeção que isso tem”
Rogério: Agora Ilo, pegando sua vida principalmente aqui no Brasil, sendo você uma pessoa tão importante pelas coisas que realizou em nosso país, fico pensando: alguma vez já passou pela sua cabeça, que você deveria ter feito todo esse trabalho que realizou aqui no Brasil na Argentina? Que é um país tão pobre quanto o Brasil…
Ilo: Não, é o seguinte, eu acho que quem faz artes está muito relacionado com o presente, claro com o futuro também. Curioso, eu falei isso e logo me corrigi. Um amigo que é editor de livros, disse que a primeira vez que ele me viu, pensou: “Este cara pensa que é imortal”, mas ao mesmo tempo para ser imortal você tem que viver muito o presente. Eu acho que arte, sobretudo o teatro, é do presente. O futuro é, como se diz, a projeção que isso tem. Quando estava na Argentina, na periferia de Buenos Aires, frequentei lugares da elite também, mas me refugiei numa periferia. Tinha um atelier de cerâmica, eu sou muito operário da arte, meu pai era operário, minha mãe fazia tudo com as mãos. Meu pai falava: “Deus não existe, isso aqui é Deus, isso aqui é Deus. As minhas mãos que trabalham… é Deus”, então me refugiei num atelier de cerâmica, na periferia, e lá fazíamos cerâmicas e reunia a garotada do bairro, não sei, eu achava isso natural. Claro, eu frequentei a outra escola, tínhamos duas escolas. E a outra escola era mais isso, éramos mais livres, mais aleatório, não tinha essa organização… numa sala de aula tinha todas as crianças de todas as idades, estudávamos o Antigo Testamento do ponto de vista marxista, não sei o que mais, a literatura também, coisas assim mais livres.
A primeira peça que fiz, de Ibsen, Os Espíritos não é? Os Espectros, isso… Então meu papel era um pintor na rua pintando quadros (risos). Eu era muito pequeno, aí ficava desenhando no palco, e também o primeiro espetáculo que fazia com as crianças brincando era O Príncipe Feliz, de Oscar Wilde. Mas eu não sabia quem era Oscar Wilde.
Porque nos convidaram, a escola, para assistir a um espetáculo no centro da cidade. Mas tinha que levar grana para a condução, grana para o lanche e para o ingresso e minha mãe e meu pai eram muito duros, eu não pude ir. Então depois eu falei com as crianças: “Como foi?” O professor nos contou a história, eu fiquei super feliz e depois as crianças nos contaram do espetáculo, aí comecei a brincar, durante anos, meu espetáculo era O Príncipe Feliz, mas eu não sabia quem era Oscar Wilde, soube sei lá quando que estava fazendo Oscar Wilde. Isso é um dos meus primeiros teatros que fiz. Então trabalhava com as crianças do bairro, desenhava, pintava, fazia bonecos, no final de semana, e aí foi surgindo… aí eu lia muita coisa, nesse poema que eu te falo, eu digo que eu cheguei, eu parti ou cheguei com Herbert Reed. Eu levava esse autor debaixo do braço e Federico Garcia Lorca no coração, essa era a minha bagagem. Mas eu lia esse cara quando eu estava na Bolívia, andava com ele debaixo do braço. Depois, quando cheguei no Brasil, eu perdi… alguém me roubou. Herbert Reed esteve aqui no Rio com o pessoal da Escolinha de Arte e Augusto Rodrigues.
Tinha um tio de minha mãe, os cadernos da guerra… como se chama? Crônicas… Na época do nazismo também, a família toda foi exterminada em campos de concentração… da minha mãe e do meu pai. Então, o gueto. Eu fui lá fazer teatro na cidade dos meus pais. E tinha o tio da minha mãe que estava paralítico, mas ele continuava dirigindo a escolinha. E ele falava: “Uma escola, aconteça o que acontecer, uma escola tem que continuar funcionando, até o último momento…” Ele sabia que ia acabar tudo a qualquer momento, né? Tinha até uma tradição dessas coisas, outro tio que se suicidou, irmão de minha mãe, era meio filósofo, mas eram operários, intelectuais da minha família.
Georgette: Seu pai faleceu como, Ilo?
Ilo: Meu pai tinha uma doença que se chamava asma e ele era tecelão, ninguém nunca disse que para um asmático ser tecelão era a pior coisa do mundo… porque solta poeira da lã, o algodão vai soltando… nem o médico disse. Então de repente teve um inverno que ele estava mal, e de repente de madrugada ele partiu, se foi. Então foi isso.
Georgette: Ilo, fala um pouco o que você pensa sobre arte-educação.
Ilo: Eu penso o seguinte, bem como eu comecei a conversa com vocês, o princípio básico Herbert Reed nos fala: a natureza do ser humano é só o que nós temos… só a linguagem de comunicação, de expressão, ou seja, a gente desenha, escreve, fala, canta, não é? Pinta, a imagem é muito importante! Eu acho que a imagem é quase tão forte quanto o teatro. Então é isso. Eu trabalho com imagens, com os desenhos, com os movimentos do corpo, com a palavra. Tudo isso está na nossa natureza. O resto é conhecimento que se pode adquirir. Então eu percebo que tem um fundo de conhecimento dentro do ser humano, que está no inconsciente. Porque a gente é depositário do conhecimento do ser humano, da história da humanidade. E eles justamente falam disso, que no sonho você se conecta com todas as mitologias, não é? Que o homem se elaborou através das mitologias. O que não pode ser expressado racionalmente, não é? Então, aqui no Brasil, o encontro com a Nise da Silveira me afirmou isso, ela fala de Jung… Herbert Reed também era junguiano. Eu me interessava por arte popular. Me sentia comovido com tudo que era trabalho artesanal, minha mãe bordava, costurava, fazia crochê, tercia, meu pai era tecelão, eu fazia artes gráficas e também fazia cerâmica. (…) Então vê como eu comecei, o que eu estava reclamando, que tem que dialogar… que não adianta fazer teorias que passam por cima, não é? Projetos que passam por cima. Eu tenho que saber, vocês são três, se vão continuar trabalhando comigo, eu não posso deixar de tomar contato individual com vocês. Porque cada um tem uma sensibilidade, a natureza e a liberdade de cada um… esse ser é… além de ele ser depositário de toda essa cultura arcaica, da história da humanidade – isso todo mundo tem em comum – tem um comportamento, um conflito, um desejo, um sonho. Então a arte-educação … por isso que tem vezes que eu brigo. Porque esse projeto… vocês passaram por estudos acadêmicos e não sei o que mais, informações, formações que não bastam. Claro que se fazem exercícios, técnicas. E eu detesto essa palavra…(…) Aquecimento, não, aquecimento é para botar fogo (risos). É alguma coisa parecida com adestramento, (…) treinamento… sim, treinamento. Mas são todas essas palavras treinamento, adestramento, que mais parecem para os bichinhos do circo, né? Como também não gosto de “faz de conta”, não faz de conta, se não faz de verdade não existe, não tem o “faz de conta”. Porque que a gente entra nessa? Não somos mentirosos… fazemos tudo sinceramente de verdade. Agora só eu sei quem eu sou em cena e sei qual é a minha profissão. De sedução, enganador, de dar dicas falsas…para depois reconduzir. Somos isso, né? Somos artistas, dessa linguagem não é? Artífices (…)
Havia a lembrança que eu tinha quatro anos, mais ou menos, andava de mãos dadas com minha mãe, de noite, numa esquina, vi um rapaz de 14, 15 anos, era negro, isso tem a ver também com a Estela dos Reis e a mãe era mulata… Esse era negro… porque tinha poucos em Buenos Aires e aí eu falei: eu quero! E minha mãe: quer o quê? Eu quero, quero que me pintem assim! E minha mãe: não pode! (risos) E como foi que pintaram ele? (risos) E isso passou a ser assim, durante anos, em casa, quando chegava visita, contava-se uma piadinha de filho, né? Então, mas era isso, dos Reis (para o Marcelo Reis).
Eu trabalho com imagens, com os desenhos, com os movimentos do corpo, com a palavra. Tudo isso está na nossa natureza. O resto é conhecimento que se pode adquirir.
Georgette: Ó Ilo, fala pra gente, quais são os seus procedimentos na montagem de um espetáculo ou “vareia” em cada espetáculo que você faz? Como é que é?
Ilo: Não, acho que eu me repito muito! Essa coisa que eu disse que… eu procuro ao máximo ser consequente comigo mesmo. Então, não é que “ah, agora descobri sei lá o quê…” Primeiro que os “ismos” todos apesar de ter influências tanto de socialismo, comunismo, não sei que outros “ismos”…existencialismo, isso… o Sartre calou assim bem fundo… os “ismos” todos. Então, mas eu nunca disse: “Agora é isso!” Tanto que eu ria quando me perguntavam em Cuba: “Você é mais Stanislavsky ou Grotowisky”? E eu dava risadas… já alguém disse: “ Ah, ele é ele mesmo…” mas é… a gente deve ser um pouco Stanislavsky, Grotowisky e cada vez entender melhor eles. Quando fui ver o pessoal do Berliner Ensemble, lá em Berlim, eu vi um distanciamento que não era o que as perssoas falavam… que quando tem que chorar em cena olha ao largo… mas isso não está no jeito de expressar… isto está em como conduzir a máscara, isso que se oferece para os outros, e o que corre por dentro… a gente se assiste também trabalhando e pode também ter emoção, paixão. Não baixa um santo assim inconscientemente. A gente tem consciência, e não se emociona com isso, não é? A gente percebe que está fluindo. Então, eu acho que tem uns processos de continuidade, sim, mas teve vários processos, porque em alguns processos eu faço o texto e em outros poucos , menos, pego o texto pronto. O texto pronto eu mexo dentro dele… o texto para fazer é complicado, porque muitas vezes escolho caminhos muito… como dizer… como se escalasse uma montanha, eu não sei o que tem lá em cima e do outro lado.
Georgette: Você termina um texto antes de começar a ensaiar ou continua trabalhando o texto?
Ilo: Geralmente ensaiando. Isso é muito trabalhoso. Pode cansar também os atores, mas continuo.
Rogério: E como que é a tua relação com o resto do grupo? Como que é esse diálogo com as pessoas, como que funciona? Tudo é discutido?
Georgette: Os seus atores improvisam?
Ilo: Muito… muito… muito. Mas eu não gosto muito de racionalizar. Então por exemplo… alguém disse: “Ah, saquei isso…” e aí começam a discutir muito um personagem ou uma situação. Acho que tem que ir na intuição, e como eu trabalho muito com simbolismo, então isso pode ser menos racionalizado. Então, eu não gosto realmente quando vamos parar cada momento para pensar se estamos certos ou errados em cima do que significa um personagem. Tem que desenvolver. Mas eu gosto de construir, não é? Às vezes sai numa tirada, entende? O Lenços e Ventos foi feito em treze dias… doze dias, no décimo terceiro já fomos para um festival. Em dez dias acho que se acabou o texto. Cada dia escrevia uma cena, duas canções e dava para musicar e íamos integrando aos poucos.
No primeiro dia não sabia o que ia sair, não sabia absolutamente nada, mas eu partia tendo uma coisa que era muito legal, que era o que eu fazia com os bonecos. O boneco sim, tem a ver muito com uma espécie de… como chama? Commédia de’ll Arte. Você trabalha com um repertório de respostas e situações e com isso você improvisa, não é?
É uma espécie de fórmula para construir um espetáculo. Mas ainda hoje (ontem? hoje de manhã?) eu pensei isso, estava na rua, estava andando na rua e pensei… pensei… é diferente de você contar… o realismo para mim é um flagelo, não é? Me faz mal, não me deixa produzir legal… e estou à frente dessa história do Museu do Inconsciente… se eu tenho que fazer historicamente, produzir isso, vai me dar um trabalho… pode ser que saia alguma coisa legal… então crio logo a situação – o teatro dentro do teatro – não começa um espetáculo com personagens … o espetáculo começa com uma cia., um grupo de atores que vão representar uma história, não é? Então você já está com meio caminho andado. Você já colocou a convenção: esse cara agora está fazendo um papel de sei lá o quê… senão eu tenho muito mais trabalho de colocar um personagem, não é? Já se percebe, são atores… agora são outros personagens… então… isso facilita no lugar de complicar, não é? (…) uso muito de prólogo, uso muito de folguedos, uso muito assim de “situações iniciáticas”, preparatórias da linguagem. (…)
Então talvez não respondi. Talvez não respondi ainda… mas de tanto em tanto eu adoro ver os atores improvisando. Isso me enriquece, me dá uma puxada, me dá um fio, longos fios… de tanto em tanto, parece que está muito estruturado e temos que desarmar. Entramos no caos novamente para voltar a enriquecer com aquilo. Ah, uma palavra, uma frase que eu detesto é : “aquela marca… “ “aquela marcação”! (…)
A intimidade das pessoas é tão poderosa que é fascinante. Os improvisos mínimos podem ser incorporados.
Georgette: Existem pessoas que estão no grupo desde o início dele junto a você?
Ilo: Não… não, nesse momento não. A Marilda está… (pausa) vinte anos… vinte e poucos anos… (risos)
Georgette: É que é outra escala de tempo, né…
Ilo: É, o Beto, o Beto não é tão velho. Ele faz a luz. O Dinho já deixou de ser novo, por volta de oito anos, não é? Tem os novos também, não é… mas, por exemplo, a continuidade de trabalho. Tem um espetáculo que você viu de pequena, que vamos fazer no encontro… eu decidi que no encontro com vocês, antes de acontecer o encontro, vamos fazer As Quatro Chaves. Então, tem vinte anos esse espetáculo. Passou muita gente… Acho que nesse momento temos um grupo que eu adoro muito as pessoas que fazem. Tanto que um dia, que talvez a Lilian não podia fazer, falaram: “Então substitui…” “Não! não quero!” Não é que seja impossível… só se ela não fizer mais. Porque é muito trabalho e eu gosto de sentir-me cúmplice de tempos, pequenos tempos. (…) É um espetáculo em cima de improvisos. É um espetáculo que escrevi em duas tardes… em 3 dias preparei. É uma brincadeira que fazíamos na Bienal, depois começamos a desenvolver As Quatro Chaves, que com roteiro, com personagens, assim, parece tudo muito organizado, mas vira uma grande farra. A intimidade das pessoas é tão poderosa que é fascinante. Os improvisos mínimos podem ser incorporados. Então teve uma vez (…) com um grupo assim afinado, fomos para a Suiça. Chegamos lá, montamos, fizemos. Quando acabou fizemos um debate. E a criança falava (com tradutor, não é?): “Vocês são uma família? Vocês moram todos juntos? Não é?” Essa percepção de uma coisa muito ligada , toma sempre algum sentido. Por mais que seja a pior da família ou a melhor, a menos que seja muito formal, uma família nunca é muito canastrona porque sempre tudo é meio escancarado, escondido escancarado, só parece uma coisa: um teatro.
Rogério: Você imagina o grupo, o Ventoforte sem você?
Ilo: Aí… Faz pouco tempo, esse carinha que morreu, que era cenógrafo, como se chama? Que era da USP. O Hamilton Saraiva! Ele perguntou: “E o Ilo? Você acha que o Ventoforte sem o Ilo…” Olha, eu não sei. Acho que tem desdobramentos. Entendeu? Tem desdobramentos. Então, possivelmente não será inútil. Tem gente, ah… tem gente que faz, que fez comigo e está fazendo, e ano passado foi dirigir novamente, que são os que saíram, do pessoal da primeira época. Saíram quatro ou cinco pessoas, era pequeno o grupo. E eles se fecharam no Embu. É… trabalham diferente eles… Eu sei que eu centralizo. Eu… eu sei, hein! Tenho minhas virtudes aí para desenvolver desse jeito, não é? E as pessoas gostam de confiar em mim. Poucas vezes as pessoas me resistem muito…
Georgette: Você nunca foi dirigido?
Ilo: Pelo Gianni Ratto. Fizemos bonecos. Duas vezes eu fui dirigido por ele. Fizemos uma ópera, El Retábulo, de Manoel de Falla. O texto, meio elaborado pelo Lorca, é do Cervantes, é do Dom Quixote, com Orquestra Sinfônica do Municipal do Rio, com cantores, com bonecos, era muito lindo. E outra vez fizemos Ubu Rei (…). Eu não desisto muito nem de mim nem dos outros… Procuro transformar, mas não desisto. Tenho uma fidelidade ao ator, conservo falas, descobertas… (…)
Georgette: Fala um pouco o que você pensa de televisão aqui no Brasil…
Ilo: Eu acho que a televisão… ela ocupa um espaço muito… não “importante”, porque eu não quero que se dê mais importância do que ela tem. Ocupa um espaço muito grande dentro do nosso contexto social. Ela determina muito. Publicidade não é teatro, não é arte teatral, cênica. Me irrito com os atores que fazem publicidade e não são nem personagens. Não quero nem falar, uma atriz que gosto muito dela. Está fazendo uma publicidade, junto com as filhas dela, então é ela, a filha, essa mistura… vendendo telefone! Pelo amor de Deus! Então se vende muito. Muito produto, muito comércio. Agora o que é evidente é que a pessoa que vem do teatro, do teatro pra valer, essa pessoa tem uma presença muito mais rica que a pessoa que vem de outra formação, não é? Tem outra formação. É muito incoerente a televisão. Não tem fidelidade nem compromissos. Mas eu acho que é uma pena que o compromisso seja tanto com produto. De ser um bom vendedor de produto. E tem que se tomar cuidado de ser um bom vendedor de almas também, não é? (…) Eu respeito totalmente a pessoa trabalhando, sobrevivendo, não é? Mas acho isso… acho isso! Um ator dessa qualidade sacrificado (…)
Georgette: Você faria alguma coisa na televisão?
Ilo: Eu fiz uma vez. Foi difícil. Porque não me davam… eu não me dava… Porque tem uma hierarquia: então os primeiros papéis são mais cuidados, mais trabalhados… mas nem sempre também. Eu fiz O Pagador de Promessas, era o Galego. A Tizuca foi assistir um espetáculo meu, que casualmente também era um Lorca, e ela me convidou. Me convidaram, não fiz teste. Se eu tiver de fazer teste eu não vou. Uma vez me enganaram, não sabia que era teste e deu uma confusão, depois saí correndo! Então, não se ensaiava, apenas se passava um pouco e vamos lá. Quando acabava eu dizia: bom, amanhã eu vou fazer, mas eu não tenho o amanhã. Essa coisa assim, não gostei muito. Olha, eu disse o seguinte: a televisão pode ser uma boa possibilidade de sobrevivência de muita gente, não é?…
A gente nunca sabe em que situação de vida está. Eu nunca, quando andava pela América Latina – o que ficou muito claro ultimamente – nunca pensávamos em sucesso. Você está numa cidadezinha perdida na selva, na cordilheira, que sucesso você vai almejar?…E que milhares de pessoas vão gostar de mim, vou ganhar dinheiro. Não! Não pensávamos em sucesso, mas adorávamos o que estávamos fazendo. E até eu escrevi, que os nossos patrocinadores eram os bonecos…. Bonecos de cabaça e papelão, papel machê, eram eles que bancavam tudo (risos). Eles que bancavam as viagens da gente. Então, não pensávamos em sucesso. Era tão bom! Isso não quer dizer que a pessoa não tem, como dizer, sonhos, desejos, não é? Pode ter, sem pensar no sucesso. Pior ainda, é ficar derrotado sem ele.
Rogério: E como é pra você Ilo, chegar nesse momento da sua vida e não ter o reconhecimento financeiro e até…
Ilo: sim, sim… faz tempo que não temos…(risos)
Rogério: Não ter o reconhecimento financeiro e ao mesmo tempo ter pessoas que tratam você como se estivesse acima de tudo. E você não tendo nem o básico… E depois queria que você falasse também, mais uma vez, dessa coisa dos atrasos do pagamento do Programa Municipal de Fomento ao Teatro para a Cidade de São Paulo e de toda indignidade que a gente está passando.
Ilo: Uma pessoa muito importante, não quero dar nomes, e acho que ela tem razão, talvez… que me chamou de… conversou, conversou comigo e disse: “Você é muito outsider”. Pensei: “marginal”, não é isso? Então, enfim, não sei se me xingou ou se me elogiou. E sem dúvidas podia até ser elogio também, não é? Podia ser. Mas acontece o seguinte… eu não sei se eu sou um marginal. Acho que, de alguma forma, os que produzem arte e cultura nesse país muitas vezes são marginais, no sentido de que para eles parecem ser mais importantes os compromissos de nível econômico que compromissos com a grande qualidade ou a boa qualidade de trabalho. E a marginalidade dá indiferença com princípios éticos e estéticos. Então… Você me fez uma pergunta que… acho que pedi ela. Ah, da situação econômica (risos)
Estou rindo sabe por quê? A tendência é que tem algumas pessoas mais próximas, que até me xingam: “Você é muito burro, muito não sei que mais”, porque eu não pensei nunca apenas … apenas não, não pensei mesmo. Eu faço pinturas e não vendo quadros. Porque eu não sei se é para vender, entendeu? Não sei se é para vender. Eu faço porque tenho uma necessidade preciosa, forte, de criar. Então, eu fui fazer teatro porque não conseguia… não conseguia sobreviver de pintura. Não conseguia nem me propor isso. Então pensei que teatro era fácil, depois teatro para mim também foi difícil. A única coisa que eu digo, pode ser que se surgisse uma oportunidade econômica boa e ao mesmo tempo me assegurasse um nível de qualidade, pode ser que eu topava, mas não sei se isso é possível. Então eu me sinto satisfeito? Não. Porque partindo do princípio que todo mundo tem direito a ter… a ser bem pago, não é? Agora o que pode acontecer? Eu tenho reconhecimento, isso o que você pergunta. As pessoas dizem.
Eu vou a um hospital que cuida de mim – o Sírio-Libanês – e tem uma pessoa ligada à instituição, eu agradeço, ele diz: “Não se preocupe, você deu para nós muito mais do que você está recebendo nesse momento”. Então, isso é um Sírio-Libanês, não é? Que está pulando todos os preconceitos, salva a vida de um judeu (risos). Não é verdade? Então, mas o resto realmente é um descaso com a cultura muito grande. Descaso com criadores de cultura é muito grande. E sabe o quê, querido? Vou te dizer uma coisa mais. Muitas vezes me sinto jogado fora, não por não ter tudo o que se precisa para sobreviver. Tem que haver condições. Condições para trabalhar. E neste momento estão faltando condições para trabalhar. Sempre faltaram. Mas esse momento está mais claro, porque o trabalho vai evoluindo, porque eu estou amadurecendo, porque são muitos anos de trabalho, porque foi uma Lei de Fomento que mostrou a necessidade da existência de grupos e de continuidade clara de trabalho. É continuidade, não tem discussão. Isso que é cultura. A cultura é um processo.
Tanto que você descobre as influências. Todo artista é influenciado pelos que antecederam. Então é importante que tenha em quem o jovem se inspirar, não é? E teatro não é uma coisa assim tão improvisada. É um trabalho artesanal. É talvez uma das artes mais… como te dizer, mais antiga, mais arcaica, é a raiz da expressão do ser humano. Então isso não é reconhecido. As pessoas não têm condições, eu gostaria de ter condições, bem muito mais que isso. E me sinto um pouco jogado fora, sabe por quê? Porque acho que poderia devolver muito mais do que estou devolvendo. Não só não tenho condições de trabalhar, também não percebem quanto eu podia contribuir repassando experiências (…) o Estado jogando fora… jogando fora as experiências. Já não chamo de qualidades (…) Mas a pessoa que acumula conhecimentos, como que ela repassa essas experiências? Não só isso: eu percebo sim, a força do meu trabalho. No Rio de Janeiro, até mais do que em São Paulo, quando eu vou… sabe, quando surgiu o Ventoforte, foi assim uma explosão, então as pessoas me encontram na rua, em estreias, e não sei em que lugares, falam: “ Foi sua culpa! Por sua culpa! Por sua culpa que eu faço teatro. Eu vi cinco vezes, vi seis vezes, vi dez vezes”. Isso é uma escola viva. Mas ainda assim, para continuar, essa escola precisa de espaço onde você possa fazer os espetáculos, não é?
Se você não tem onde fazer os espetáculos, se você não tem com o que fazer os espetáculos, se você não tem como manter um grupo na sua continuidade,. Você então inventa, se reinventa a cada dia. A Nise da Silveira falava: “Eu começava todos os dias tudo de novo!” E até, não sei se isso responde, ela falava por ela – é o sonho dela – o Museu do Inconsciente não é? Então todos os dias recomeço o Ventoforte. Eu acredito nisso. Eu acredito que o centro de formação de uma sociedade, do ser humano, é a arte. É o centro. Não é a guerra. Não é o lucro. Não é o capital. É a arte. É a expressão – claro, aí entram muitos níveis de expressão. Isso é o centro de evolução da humanidade (…) E tem que ser retomada dia a dia.
Georgette: Você acha que a gente tem perdido coisas? Você acha que tem piorado a nossa situação?
Ilo: Não, isso eu não diria. Eu sempre penso na criança e penso: a criança tem muita saúde, felizmente para ela. E o ser humano, na parte dele, tem coerência, saúde, luta. Agora, me preocupa mais no plano da educação, que não se avance. Eu estava fazendo um espetáculo em Belo Horizonte e num ensaio chamaram crianças para assistir, então uma criança… (…) ela foi descendo e chegou até a cena, se aproximou de uma atriz, que também tocava flauta, cantava, chegou, se aproximou e disse: “ É de verdade?” Então… a televisão não é de verdade? Não estou querendo nem colocar o debate. É um meio que entra com menor profundidade, menos essencialidade. Um brinquedo, se não permite um jogo que a criança participe, invente, ele não é de verdade (…) Agora, o teatro é de verdade, ainda, não é? E só poderá ser de verdade porque tem toda essa humanidade, a respiração, o toque, o suor, tudo o que passa pelo sangue, por dentro e por fora. Como a afetividade…O teatro é afetividade direta, não é? Isso com o público… sobretudo esse teatro que nós acreditamos. Porque tem um outro teatro que não, que é mais formal. É um produto bem realizado… então… esse é de verdade? (…) Vão achar que sou excessivamente idealista, que estou idealizando demais. Não, eu acredito nisso… acredito, acredito até que tem gente que tem inveja dos atores, (risos) porque percebem uma existência muito precária, mas cheia de liberdades, não é?
Rogério: E essa sede aqui, Ilo? É mais uma resistência. Parece que em São Paulo… é que São Paulo tem muita mistura, mas parece que não teria mais como existir isso em São Paulo.
Ilo: Então, uma vez, quando cheguei em São Paulo e comecei a trabalhar aí, e um dia me cansei e nessa época havia um psicanalista, um terapeuta psicanalista – eu disse: “ Olha, eu tenho vontade de largar tudo e ir embora”. E ele me disse: “Não, não faz isso. É importante o grupo de vocês. E como São Paulo precisa de coração, de corações. Vocês são um coração para São Paulo”. Ele colocou isso. Agora, tem outro… outros profetas, filósofos, que falam da importância das utopias, e das importâncias – esse já era o Foucault, que fala da “heterotopias”. O Ventoforte é isso. Uma heterotopia – um lugar que não foi planejado para um resultado definitivo. É um lugar onde cabem as descobertas. Onde se procura idealizar coisas que não foram idealizadas.
Integrar os sonhos das pessoas. Isso pode ser um teatro, pode ser uma praça, uma rua. Depende do que acontece nela. Ele fala também dos prostíbulos, para dar uma largura a tudo isso. Agora que estou lendo a História da Loucura – fala das naus à deriva em que colocavam os loucos dentro e saíam navegando. Então, o Ventoforte é um espaço resistência. É isso, é um espaço resistência. Mas uma resistência pra quê? Para depois nos transformarmos numa grande empresa, que vai ganhar… vai ficar cada vez mais rica? Não. Não passa pela nossa cabeça que mude, que podemos criar sei lá o que aqui, um grande investimento. Ainda que dê, porque aqui no Itaim Bibi, tem espaços de divertimentos. Mas entretenimento e divertimento não é igual teatro, é outra coisa. Espaços que vendem consumo e não sei que mais, que o máximo que duram é um ano. Abrem, investem dinheiro. Não sei se é lavagem de dinheiro ou o quê, e gasta, gasta, fecha. Aí vem outro que derruba a parede, se constrói um pouco diferente e aí novamente vai vender seu produto, mas não deixa nada…não deixa lastros, não deixa herança, não deixa nada – a arte deixa. Então você me fez a pergunta do Vento sem mim, acho que isto vai continuar existindo. Pode ser que fique. Mas meu sonho não é assim. Eu fico preocupado. Eu acho que eu conquistei espaços e fora disso acho que conquistei experiências. Eu gostaria de repassar tudo, tudo isso. Acho que é importante sim. Mas porque a cada vez que eu tento repassar abre mais uma resposta. Cresce mais. Isso não tem fim, entendeu?
Rogério: Esse é o seu sonho agora, repassar essas coisas?
Ilo: Mas ainda tenho muito… quando já estava no Rio, em viagens de avião com turbulências, morria de medo e dialogava com Deus (agora morro menos de medo): “Meu Deus, ainda tenho que montar esse Lorca, preciso fazer não sei quê. Deixa eu acabar minhas coisas, não é”? Ainda tenho vontade de fazer muito teatro e também de pintar muito. Precisa de tempo. Atualmente não sei se eu sou mais complexo, tenho menos tempo, menos energia física. Me falta tempo. Mas, a continuidade é isso. Então, tem uma coisa do jardim aqui da gente, que ainda não sei. Uma vez chamávamos de Museu da Imagem, Memória e Liberdade de Expressão da Criança, e não sei se vai ficar nisso, se vai acabar. (…) O pessoal do teatro de bonecos diz que eu não faço bonecos. Mas eu não digo que eu faço bonecos. Eu digo que eu tenho bonecos. E também não crio seres humanos, tenho e trabalho com seres humanos, num teatro bem orgânico. Então essa história de museu é para que respeitem um pouquinho o que estavam fazendo, o lugar onde se pode ir ver as coisas. Museu da Imagem, Memória e Liberdade de Expressão da Criança, e talvez seja isso. Sou um grande viajante, acho que o caminho do teatro é andar, andar, andar. (…) Eu não sei o que vocês vão fazer com todo esse material… só quero que vocês saibam que quando eu era pequeno, tinha 3 anos, minha mãe me levou ao médico, porque achava que eu iria ser mudo, eu quase não falava (risos).
Marcelo: Ainda bem que ela estava enganada… Obrigado, Ilo.